O artigo é de 2013, mas vale a pena recolocar em debate o uso do termo “crime passional”.
Por Nádia Lapa.*
Segundo dados da Organização Mundial de Saúde e do Mapa da Violência, o Brasil é o sétimo país com maior incidência de assassinatos de mulheres. São dez homicídios por dia. Ao abrir qualquer jornal, você verá notícias de algum caso “do dia”. O de hoje é de Iolanda, uma jovem paulistana de 21 anos que foi atacada na academia na tarde de ontem pelo ex-namorado, com quem havia terminado o relacionamento na segunda-feira.
A imprensa costuma chamar casos como o de Iolanda de “crimes passionais”, como se eles tivessem sido movidos por amor. Não são. Amor não mata; o que mata é a sensação de poder que o ex-parceiro tem sobre a vítima. O criminoso tem certeza que a vítima lhe pertence. “Se ela não for minha, não vai ser de mais ninguém.” É a completa desumanização da mulher, transformando-a em um objeto sobre o qual alguém tem propriedade, pelo simples fato de algum dia eles – proprietário e objeto – terem sido um “casal”.
Dizer que um homicídio tem caráter passional não serve de nada ao direito, posto que o tipo penal não reconhece a “paixão” como motivo para um assassinato. Pelo contrário: a pena pode ser aumentada se for reconhecido que o réu agiu com motivação torpe ou fútil, ou ainda sem dar possibilidade de defesa à vítima. Tramita hoje no Congresso o relatório final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) da Violência contra a Mulher, que no seu relatório final tipifica o feminicídio, com pena de reclusão de 12 a 30 anos para assassinatos de mulheres com circunstâncias de violência doméstica ou familiar, violência sexual, mutilação ou desfiguração da vítima.
Porque os “assassinos passionais” não apenas matam suas vítimas. Eles fazem questão de torturá-las, como fez Thiago da Silva Flores, que ateou fogo ao corpo da ex-namorada Pâmela. Depois de um ano passando por diversas cirurgias e tratamentos, Pâmela faleceu em agosto.
O ódio presente nos crimes que dizem serem movidos por amor é evidente. Além do uso de artifícios cruéis, como no caso de Pâmela e na própria Maria da Penha, 6,2% dos assassinatos de mulheres são por estrangulamento/sufocação, enquanto 26% são por objeto cortante ou penetrante. Facadas.
Mas a quem interessa dizer que tal crime é passional, que o réu estava sofrendo com a rejeição, ou que ele não conseguia enxergar a própria vida com a ausência da mulher amada? Com esse discurso, coloca-se o feminicídio como sendo de ordem privada; “em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”. Assim, afasta-se a necessidade de uma discussão geral e mudança social acerca destes crimes. Parece que havia algo entre os dois que justificaria o assassinato, a tortura, a violência. Lavamos as mãos e fingimos que, se chegarmos muito perto, estaremos invadindo a privacidade daquele casal.
Um casal que não existe mais; primeiro porque a mulher quis sair, segundo porque ela foi morta por quem um dia confiou.
O perfil do Twitter Machismo Mata traz diariamente notícias sobre crimes contra a mulher. O relatório da CPMI também analisa de perto casos emblemáticos, como o do estupro coletivo e assassinato em Queimadas, na Paraíba. Na imprensa, poucos casos aparecem. Geralmente de mulheres brancas, jovens, de classe média, quando, segundo o IPEA, 61% das mulheres assassinadas são negras. A própria imprensa invisibiliza outros recortes sociais que são vistos no feminicídio.
Amor não mata. Machismo, sim.
Foto: Governo da Bahia.
*Do blog Feminismo para quê?
Fonte: Carta Capital.