Por André Barrocal.
Até a manhã da segunda-feira 26, a Operação Zelotes era a “prima pobre” dos escândalos de corrupção no Brasil. Enquanto a Lava Jato recebia a atenção quase exclusiva da mídia e revirava o mundo político e econômico, a história do pagamento de propinas por empresas para abater dívidas tributárias, em um esquema estimado em 19 bilhões de reais, vivia relegada a esparsas notas de jornais e breves citações no rádio e na tevê. Salvas as exceções de praxe.
Tudo mudou. E os empresários acusados de oferecer benesses a funcionários públicos em troca da “domesticação” do Leão da Receita só têm a agradecer. As denúncias criminais contra eles não têm prazo para seguir adiante. Já no caso do suposto comércio de leis, novo foco daZelotes, espera-se algum resultado até antes do Natal, em virtude das prisões decretadas na segunda 26 e das buscas e apreensões autorizadas.
Entre os encarcerados por ordem da juíza Célia Regina Ody Bernardes, da 10ª Vara Federal de Brasília, figura José Ricardo da Silva, peça-chave nas apurações. Silva integrava o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, órgão federal no qual se processava o sumiço fraudulento de dívidas, e controla a SGR, empresa que, apontam as investigações, intermediava os contatos entre subornadores e agentes públicos corruptos.
As algemas alcançaram ainda um ex-sócio de Silva, um diretor da associação das montadoras, a Anfavea, e sua mulher, um famoso lobista, Alexandre Paes dos Santos, e um ex-candidato a deputado pelo PMDB do Piauí. Todos unidos pela crença de um delegado da PF e de um procurador que a juíza Bernardes acolheu: os citados negociaram subornos para arrancar do governo e do Congresso a renovação, em 2009, de benefícios fiscais concedidos à indústria automotiva por duas leis dos anos 90.
Uma aprovação que interessava particularmente à Mitsubishi e à Caoa, cujos presidentes, Paulo Arantes Ferraz e Carlos Alberto de Oliveira Andrade, respectivamente, foram interrogados no mesmo dia das prisões.
A desconfiança de que houve comércio de leis colocou nos autos do processo e no noticiário um filho e um veterano colaborador do ex-presidente Lula. O delegado da Polícia Federal que comanda as investigações, Marlon Cajado, concentrou-se em Gilberto Carvalho, chefe de gabinete de Lula por oito anos e ministro de Dilma Rousseff por quatro. Já o procurador José Alfredo de Paula e Silva, da força-tarefa do Ministério Público, mirou Luis Claudio Lula da Silva.
No relatório de 166 páginas que convenceu a juíza a autorizar as prisões, interrogatórios e buscas, Cajado acusa Carvalho de participar no passado de um “conluio” com o diretor da Anfavea preso, Mauro Marcondes. Segundo o relatório, há poucas dúvidas sobre as negociatas de Marcondes com a Mitsubishi e a Caoa para renovar os incentivos fiscais.
Idem para sua tentativa de usar Carvalho. Não há, porém, provas ou indícios de que o petista tenha feito algo ilegal ou sido pago. Talvez por isso, o delegado não tenha solicitado à Justiça sua prisão ou interrogatório, nem buscas em sua casa.
Carvalho depôs à PF por conta própria no dia da operação. Em notas e entrevistas, diz que os sigilos fiscal e bancário dele e de sua família estão à disposição. Que não tem medo de ser investigado. Que deixou o governo com o patrimônio de antes.
E que virou alvo por causa de “interpretações ridículas” do delegado, como a de que uma anotação achada na empresa de Marcondes (“providenciar presentes para as filhas de Gilberto Carvalho”) seria sinônimo de propina. Eram bonecas para duas filhas adotivas do ex-ministro, que conhece Marcondes desde os tempos do Lula sindicalista.
Marcondes também é o problema do filho do ex-presidente. Dados da Receita Federal mostram que, em 2014, sua firma pagou 1,5 milhão de reais à LFT, empresa de marketing esportivo aberta por Luis Claudio em 2011. Para o procurador José de Paula, o pagamento seria “muito suspeito”.
Ele pediu buscas na LFT, autorizadas pela Justiça. O pagamento, crê o procurador, estaria ligado à Medida Provisória 627, assinada por Dilma Rousseff em novembro de 2013 para desfazer um imbróglio jurídico sobre a tributação de multinacionais brasileiras. Hipótese esquisita. A MP foi editada quase um ano antes do pagamento à LFT.
O dispositivo favorável ao setor automotivo não estava na MP. Foi inserido posteriormente pelo Congresso. Luis Claudio não tem poder em Brasília. Ao justificar os pagamentos, seus advogados dizem que a LFT prestou serviços a Marcondes em quatro projetos. Falta explicar a natureza desses projetos.
A metamorfose da Zelotes deriva de descobertas ao longo das investigações sobre o esquema no Carf, principalmente a partir do aprofundamento das apurações sobre o relacionamento de Marcondes e Silva com a Caoa e a Mitsubishi.
As montadoras tinham dívidas que poderiam desaparecer após a renovação das leis de incentivo fiscal e a inclusão de alguns novos dispositivos. A renovação, acreditam Cajado e José de Paula, tinha o “sórdido objetivo” de “criar um fato novo que viria a fulminar” as dívidas tributárias da Mitsubishi.
A nova linha de investigação garantiu os holofotes à Zelotes. O desinteresse da mídia e do Judiciário havia sido apontado pelo procurador original do caso, Frederico Paiva, em uma audiência pública na Câmara dos Deputados, em maio. Segundo ele, casos de corrupção no Brasil só escandalizam se há político no meio. “Quando atingem o poder econômico, não há a mesma sensibilidade”, afirmara.
O ex-governador paulista Claudio Lembo havia dito coisa parecida à TV Gazeta dias antes. “O que aconteceu no Carf é gravíssimo, mas a imprensa não fala (…) Lá está o núcleo da minoria branca fazendo corrupção efetiva”, mas “há um conluio nacional de preservação de quem está dentro do Carf.”
O Jornal Nacional, da TV Globo, ilustra a opinião de Paiva e Lembo. Quando a Zelotes se tornou pública, em março, o telejornal veiculou reportagem de 2 minutos e 28 segundos. No dia das duas ações posteriores, noticiou em 30 segundos. Após a mais recente ação, o assunto ficou 7 minutos e 24 segundos no ar na segunda-feira 26. Destaque óbvio para o filho de Lula.
O comportamento da Justiça também é outro. O juiz original do caso, Ricardo Augusto Soares Leite, da 10ª Vara Federal de Brasília, tinha uma postura, digamos, cautelosa. Após autorizar grampos telefônicos e de e-mails, vetou sua prorrogação.
Além disso, decretou sigilo do processo, jamais deu aval a pedidos de prisão e negou permissão para uma ação em 8 de outubro. Esta só saiu depois de um recurso do Ministério Público a instâncias superiores. Leite também se recusou a enviar ao Supremo Tribunal Federal as investigações referentes ao ministro Augusto Nardes, do Tribunal de Contas da União, procedimento recentemente determinado pela juíza Bernardes.
Não surpreende o fato de o magistrado ter sido acionado na corregedoria do Tribunal Regional Federal por uma procuradora da República após a Zelotes ir às ruas em março. Por esse motivo, o caso passou às mãos de Bernardes.
A postura do juiz, diz um dos procuradores da força-tarefa, afetará o desfecho da operação. A interrupção dos grampos, em 2014, impediu a produção de mais provas. As denúncias criminais terão valores inferiores ao seu potencial de 19 bilhões de reais, soma do montante de 74 processos sob suspeita no Carf.
A Mitsubishi é uma das mais enroladas, a ponto de seu presidente, Paulo Ferraz, e o antecessor, Eduardo de Souza Ramos, terem proposto em vão ao Ministério Público um acordo de delação premiada. Retransmissora da Globo no Rio Grande do Sul, a RBS devia 150 milhões de reais em um processo de 2009, depositou 11,9 milhões, entre 2011 e 2012, em uma conta da SGR e, em 2013, triunfou no Carf.
A Gerdau livrou-se, em 2012, de 1 bilhão de reais em um julgamento com o voto favorável de José Ricardo da Silva. A JBS tinha três processos que somavam 180 milhões de reais, quando uma escuta telefônica flagrou um conselheiro do Carf a comentar sobre uma reunião que teria com a empresa para tratar de “honorários”.
O setor bancário esbaldou-se. O Santander é protagonista de um caso no qual estariam “mais bem configurados os crimes de corrupção ativa e passiva”, segundo um relatório de Cajado enviado à Justiça no início do ano. O banco discutia uma dívida de 5 bilhões de reais e, conforme grampos, pagou 500 mil a um conselheiro. O Safra teria gastado 28 milhões de reais em suborno para se livrar, em 2014, de um processo de valor dez vezes maior.
Uma negociação feita por um integrante do conselho de administração, João Inácio Puga, revela, de acordo com o relatório de Cajado, “um comprovado caso de corrupção ativa e passiva”. HSBC, Brascan e até o Opportunity, do “famoso banqueiro Daniel Dantas”, também se refestelaram.
Resta saber se a juíza terá o mesmo pulso firme com as empresas. Perfil para tanto ela parece ter. É da Associação Juízes para a Democracia, entidade progressista da qual foi dirigente. Em julho, cassou uma portaria do Ministério Público que liberava a compra de passagens de primeira classe para procuradores em viagem ao exterior, uma “mordomia”, anotou no despacho.
No ano passado, assinou um manifesto de magistrados e acadêmicos contra o trabalho voluntário na Copa do Mundo, descrito como exploração. Por outro lado, há quem aponte o fato de ela ser irmã de um prefeito do PSDB. A melhor forma de a magistrada afastar eventuais dúvidas sobre sua conduta é atuar com isenção e equilíbrio.
Fonte: Carta Capital
Foto: JF Diorio Estadão Conteúdo