Por Fabíola Ortiz.*
A tortura dentro das prisões brasileiras por agentes públicos é recorrente, diz o relator especial sobre o tema para as Nações Unidas, o argentino Juan Ernesto Méndez.
“Existem muitas provas de que são usadas diversas formas de coerção e de tortura para obter confissões nos interrogatórios nos primeiros dias de apreensão. É uma prática recorrente”, afirma à BBC Brasil.
Méndez é professor visitante de Direitos Humanos na American University e falou à Assembleia Geral da ONU nesta semana.
Ele esteve no Brasil entre 3 e 14 de agosto e visitou 12 penitenciárias em São Paulo, Sergipe, Alagoas, Maranhão e Distrito Federal.
O relatório final sobre a visita ficará pronto apenas em março de 2016, mas uma das principais observações do relator é que a tortura não é um fenômeno isolado no Brasil, especialmente nos dias iniciais que os detentos ingressam no sistema carcerário.
“Seja em prisões provisórias ou definitivas, vimos condições caóticas. Há grande superpopulação, facilmente 200% ou 300% acima da capacidade. E, quando há superpopulação, todos os outros aspectos pioram”, descreve.
Pedrinhas
O ex-assessor especial do procurador do Tribunal Penal Internacional afirma também que a pior situação carcerária que encontrou foi no Complexo Penitenciário de Pedrinhas, em São Luís do Maranhão. Desde a rebelião iniciada em dezembro de 2013, foram registrados inúmeros casos de mortes e violações de direitos humanos.
A ONU pediu ao Brasil em 2014 que investigasse a violência nos presídios do Maranhão, principalmente em Pedrinhas, onde mais de 60 detentos foram assassinados após motins entre facções criminosas.
Na ocasião, o Alto Comissariado de Direitos Humanos da ONU demonstrou preocupação após saber que detentos haviam sido decapitados.
Neste ano, houve pelo menos três mortes em celas de Pedrinhas – em uma delas havia sinais de enforcamento.
Segundo Méndez, chamou a atenção o fato de agentes penitenciários estarem armados dentro das instalações de Pedrinhas. “O que é muito perigoso para eles próprios.”
Ele opina que a prática da tortura no país poderia ser coibida com o fim das figuras da prisão preventiva ou provisória. “Ainda são muito comuns no Brasil e terminam sendo uma pena antecipada. É um círculo vicioso que, em lugar de resolver o problema da criminalidade, o exacerba.”
Méndez sugere também rever as normas penais para quem comete delitos relativamente menos violentos e que não necessitaria cumprir pena numa carceragem.
Outro grande desafio, segundo o relator, é “romper o ciclo da impunidade”.
“É muito pouco o que se faz para investigar, processar e castigar os delitos de tortura. Existe um falso espírito corporativista que protege policiais e agentes, além da falta de capacidade para detectar a tortura por parte de médicos especializados”, critica.
Maioridade penal
O relator da ONU também avalia que a redução da maioridade penal em discussão no Congresso (de 18 para 16 anos em caso de crimes hediondos e outros crimes graves) vai contra as obrigações internacionais do Brasil.
“Do ponto de vista da política criminal é um grave erro. Reduzir a idade penal irá agravar a situação (nas prisões) e será uma violação das obrigações do Brasil em relação à Convenção sobre os Direitos da Criança”, afirma.
“A redução da idade penal irá resultar em tratamento como adulto de crianças que terão penas mais altas. Reconheço que muitos crimes são cometidos por pessoas de 16 e 18 anos ou menores. Mas acho que é uma solução ruim renunciar à reabilitação de pessoas que ainda estão em condições de serem reabilitadas. Essa não é a reposta ao problema, além de ser uma violação das obrigações internacionais do país.”
População carcerária
De 2004 e 2014, a população carcerária brasileira aumentou 80% em números absolutos, passando de 336,4 mil presos para 607 mil, indica o Infopen (Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias).
O Brasil tem a quarta maior população carcerária do mundo, atrás apenas de Estados Unidos (2,2 milhões), China (1,6 milhão) e Rússia (673,8 mil).
“Em todas as visitas vimos superpopulação, problemas de assistência médica aos presos, violência entre os detentos, falta de alimentação adequada e, claro, falta de acesso à educação e reinserção social”, descreveu Méndez à imprensa.
Ao mesmo tempo, o relator destacou uma iniciativa recente do governo que pode agilizar o julgamento de crimes mais leves de pessoas presas em flagrante. São as chamadas audiências de custódia, que tiveram início em fevereiro, pelo Conselho Nacional de Justiça em parceria com o Ministério da Justiça e o Tribunal de Justiça de São Paulo.
A ideia é que o acusado seja apresentado e entrevistado pelo juiz, em uma audiência em que serão ouvidas também as manifestações do Ministério Público, da Defensoria Pública ou do advogado de defesa. O juiz poderá avaliar também eventuais ocorrências de tortura ou maus-tratos, entre outras irregularidades.
O projeto prevê ainda a estruturação de centrais de alternativas penais, de monitoramento eletrônico, de serviços e assistência social e câmaras de mediação penal, responsáveis por apresentar ao juiz opções ao encarceramento provisório.
“Isso irá reduzir, de alguma forma, a superpopulação e evitará os problemas de tortura que ocorrem ainda com muita frequência nos primeiros dias de interrogatório. Os resultados preliminares são encorajadores”, opina Méndez.
Segundo o relator da ONU, a falta de transparência e a impunidade são resquícios da ditadura militar.
“É um legado que persiste na atuação da polícia e dos agentes do Estado. Há também um forte aspecto racial e de classe, que é preocupante. Mas governos democráticos não devem se esconder atrás do fato de terem herdado a tortura de regimes ditatoriais”, afirma.
Foto: Thinkstock
*De Nova York para a BBC Brasil
Fonte: BBC Brasil