Por Beatriz Carvalho Diniz.
A ideia é ótima: transformar cocô em água potável, boa de beber! O investimento do Bill Gates na máquina que faz fezes humanas virarem água foi super divulgado no início de 2015, quando estava funcionando um protótipo que ainda seria enviado para o Senegal. Bacana. Mas, o que me chamou atenção mesmo foi, no vídeo de divulgação, a cena em que o dono da Microsoft parece beber a água que era cocô 5 minutos antes de cair no copo. Ele não dá um golão, só encosta o copo na boca, fazendo de conta que bebe a bendita água. Sim, fazendo de conta…
O mundo é dividido entre ricos e pobres, e seus recursos são também assim distribuídos ou acessados. São poucos os ricos e muitos os pobres, convivendo na dinâmica de manter luxo e miséria em seus, quase estáticos, lugares. Um bilionário bebe água mineral engarrafada, de marca tida como chique, e paga caro. Ele não precisa beber água de cocô, mas, pode usar um pouco do dinheiro que acumula para ajudar os pobres a terem acesso a uma água que possam beber. É uma bondade meio que compensatória, faz diferença para quem precisa, só que não muda a dinâmica, continua cada um no seu quadrado. E o quadrado dos ricos não deixa de ser imenso.
No caso de ricaços da Europa e dos Estados Unidos, essa compensação ainda tem os pesos de responsabilidades pela exploração econômica por séculos de recursos naturais e de pessoas. Numa linha do tempo resumidíssima, desde as colonizações e daí com a Revolução Industrial e a construção da sociedade de consumo que somos [medíocres em adoração a coisas feitas para serem jogadas fora], tem muita culpa na história da civilização. Os norte-americanos, aliás, prezam por uma cultura de doação espetacular, talvez na medida da culpa, com certeza na medida das distâncias seguras.
Afinal, mesmo com todas as bondades dos ricos, ainda persistem concentração de riquezas e desigualdades. Os grandes e variados esforços para combater a miséria, a sede e a fome dos pobres parecem pequenos diante dos gigantescos investimentos para os ricos ganharem mais dinheiros, entretendo toda a gente com uma mistura de consumo e diversão para um pretenso bem estar para a geral.
Também no início de 2015, a Liga inglesa de clubes de futebol fechou o contrato com dois canais de televisão para transmissão de seus jogos por 5 bilhões de libras. É muito dinheiro! Deve ser suficiente para…os donos dos canais faturarem mais que essa dinherama para transmitir 188 jogos de 2016 a 2019. Ah, e para os clubes ingleses dominarem o futebol europeu, como divulgado à época. E isso, claro, é muito mais importante que reduzir a miséria, garantir acesso à água, universalizar a educação, tratar diarreias, combater o ebola, acabar com a fome.
Então, entre os contrastes da nossa vida neste mundo, temos aí uma água extraída de cocô, que pode ser bebida por qualquer pessoa mas só serve para matar a sede dos pobres, e um contrato bilionário para transmissão de jogos de futebol na televisão, que rende outros contratos e garante mais dinheiros para alguns que já acumulam muito dinheiros.
Alguém vai morrer se não passar uma partida de futebol na televisão?
Os problemas do mundo são aliviados com generosas doações, isso é lindo e faz parte das soluções. No entanto, não deixa de ser também parte do faz de conta sistemático, em que dinheiros servem para gerar mais dinheiros acima de tudo, inclusive de ampliar condições mínimas de vida digna.
Fazemos de conta que um bilionário que parece beber água de cocô está bebendo água de cocô, como se a promoção pessoal do investimento altruísta não rendesse para o negócio dele a cada compartilhamento. O Bill Gates não está menos rico nem vai ficar pobre por ajudar a levar uma solução a quem precisa tanto, por isso mesmo que não é suficiente a caridade. Gente que sofre com escassez de água vai continuar com sede, lá no Senegal ou aqui no Brasil, porque redistribuir a oferta de água de forma menos desigual não é uma questão de filantropia ou bondade, é uma decisão econômica. Água é negócio lucrativo e tem uns poucos donos, é claro.
Temos bilhões para fazer as pessoas verem jogos de futebol, consumirem produtos associados, endeusarem atletas e jornalistas [que faturam mais servindo ao mercado para nos vender mais produtos associados ou não], acreditarem na normalidade desse exagero e gerarem outros bilhões para os que estão no jogo de manter a sociedade de consumo mais ativa que nunca. Fazemos de conta que investimentos bilionários nessa combinação de sucesso entre esporte e entretenimento é extremamente imprescindível para todo mundo, ainda que seja transformador por vários motivos outros que não o negócio e o consumo. Fazemos de conta que é louvável atores ganharem 50, 60, 80 milhões de dólares num ano para fazerem filmes que custam outros milhões e rendem mais milhões com bilheteria, pipoca, refrigerante, produtos de personagens. E dá-lhe etc.
Não, não é, meu bem. Assim você paga, cordeiramente, para enricar os ricos que nem precisam de milhões para viver, como qualquer pessoa não precisa. Apenas 0,7% da população mundial é dona de 45,2% por cento da riqueza total. Entre esse grupo seleto, pouco mais de 123 mil ultra ricos com 500 milhões de dólares ou mais. Os dados são do relatório do banco Crédit Suisse, divulgado em 13 de outubro desse ano. É a primeira vez nesta série histórica que a riqueza de 1% da população mundial alcança a metade do valor total de ativos, com tanto dinheiro líquido e investido quanto o 99% restante de gente.
A desigualdade entre os privilegiados e o resto da humanidade continua aumentando desde o início da crise econômica de 2008. Ricos garantem suas riquezas até na crise braba, e com ou sem suas doações necessárias, pobres seguem pobres ou mais pobres. E fica cada um no seu quadrado, quer dizer, seguimos sendo mantidos nos nossos quadradinhos, consumidores felizes por ostentar marcas dessa pobreza de espírito que a economia forja com sua moral mercantil.
Fonte: EcoDebate