Por Elaine Tavares.
Por uma semana – de 28 de setembro a 02 de outubro – a Universidade Federal de Santa Catarina se vestiu das cores autóctones e amanheceu sob o canto ancestral brotado do mais profundo da terra. Eram os estudantes indígenas de todo o país realizando seu encontro nacional. Índios de diversas etnias que estão no ensino superior, nas mais variadas áreas do conhecimento, e que se encontram anualmente para debater os problemas que enfrentam e os desafios que ainda estão por vencer.
Foram muitas horas de discussão sobre o ingresso na universidade, sobre a dificuldade da permanência e todas essas coisas que acometem os empobrecidos. No caso dos índios, negros e alunos de escolas públicas, a batalha sempre parece mais dura, porque ainda precisam vencer também um sem número de preconceito e discriminação. “Esse aí não tem cara de índio. Olha o cabelo dele”, essas são coisas que precisam ouvir em silêncio, sem levantar os arcos, engolindo e respirando fundo. Difícil tarefa de sobreviver num mundo hostil.
Segundo dados do MEC, atualmente, são mais de seis mil indígenas no ensino superior reivindicando outras formas de convivialidade e lutando pelo direito de permanecer nas universidades. Não é coisa fácil. Além dos obstáculos já mencionados – como o acesso e a permanência – é preciso travar batalhas para ter reconhecida sua própria episteme, um jeito de conhecer as coisas que é diferente, mas não inferior. Para os estudantes indígenas o desafio é justamente incorporar os saberes dos não-índios, mas, ao mesmo tempo também deixar a marca dos saberes originários na vida da universidade.
Em Santa Catarina o número de indígenas cursando o ensino superior é bem pequeno, apenas 17, isso sem contar os 140 que completaram um curso especial de Licenciatura Intercultural. E esses 17 estão espalhados em cursos variados, tendo pouco tempo para se encontrar. Misturados aos mais de 30 mil estudantes que circulam pelo campus eles e elas são praticamente invisíveis. Daí a importância de realizar em Santa Catarina esse encontro nacional. Foi uma forma de juntar os parentes e estabelecer vínculos.
Assim, quando chegou o dia do encontro, aos 17 se somaram outros 600 indígenas, com seus cantos e suas cores. Surpreendentemente a invisibilidade continuou. O campus da Trindade seguiu sua rotina como se nada houvesse e quando os indígenas adentravam ao Restaurante Universitário tocando seus maracás, os olhares eram de perplexidade e desconforto. Poucos se conectavam a toda aquela energia, com um sorriso ou um olhar de admiração. As atividades de debate e os eventos culturais também aconteceram com raras participações de não-índios. Até mesmo o tradicional encontro musical da quarta-feira, que enche o saguão do Básico, não atraiu os estudantes para ver a banda Coisa de Índio, formada por estudantes indígenas da Bahia. A imprensa local ignorou olimpicamente o evento e a mídia universitária deu pouco destaque. Nem mesmo a conjuntura de violência em Mato Grosso do Sul com os Guarani Kaiowá mobilizou os que lidam com a informação.
Mas, a despeito de tudo isso, os estudantes indígenas realizaram um grande evento mostrando, inclusive, um outro jeito de organizar seu movimento estudantil. Nas mesas de debates os problemas do ensino superior, o modelo de universidade e os grandes temas indígenas como demarcação, violência, saúde, a ligação com a luta dos parentes latino-americanos e a necessidade de pensar uma universidade indígena, construída desde os interesses das comunidades. Também houve projeção de filmes e debates sobre a conjuntura nacional. Tudo isso acompanhado de muito debate. Em cada tema, não eram poucos os inscritos que faziam fila para dizer sua palavra. E a certeza que assomava era a de que cada um e cada uma tinha algo importante a somar no processo de discussão. Ficou claro que os estudantes indígenas estão nas universidades buscando um diálogo, e não apenas incorporando um saber alheio. Nas palavras da cacica Guarani, Eunice Antunes, uma verdade ancestral. “Não entramos na universidade por status ou para ser alguém. Na nossa cultura nós somos alguém no exato instante em que recebemos nosso nome indígena, o nome que é soprado por Ñanderu. Entramos na universidade para produzir um diálogo intercultural”.
Durante o encontro os estudantes indígenas também demonstraram sua indignação com o apagamento da história dos seus parentes, coisa comum nas cidades brasileiras e que, hoje, provoca tanto preconceito. Cada cidade erguida nessas terras eram, no passado, território indígena. Florianópolis, por exemplo, era espaço do povo Guarani. Por aqui eles andavam e viviam sua cultura. Com a chegada dos portugueses foram sendo mortos ou empurrados para o interior. Mas, o que sobrevive na história é a verdade do invasor e a ele se rendem homenagens e erguem estátuas. Assim é com Domingos Dias Velho, o bandeirante, matador de índios, que ergueu na ilha uma primeira povoação. O sangue índio derramado não é lembrado, mas o matador sim. Hoje ele vive em pedra, na entrada da ponte que dá acesso à ilha, e também empresta seu nome a uma gigantesca obra de elevado.
Numa caminhada da UFSC até o centro – cerca de 15 quilômetros – os estudantes definiram um objetivo. Seguir até a estátua e lá, fazer o seu protesto. Foi bonito de ver. Entre cantorias, bailados e gritos de luta, lá se foram eles pelas ruas, pelo túnel, provocando alarido. Das janelas assomavam as gentes, entre assustadas e admiradas. E no centro histórico, muitos misturaram-se aos índios numa dança de força e de luta. Sob as cores da arquitetura açoriana, o canto Tuxá, Tupinambá, Pankararu, Xokleng, se ergueu e se fez pura beleza. Depois, todos se dirigiram até a entrada da ponte, onde fizeram um protesto contra aqueles que, tal como o homem da estátua, ainda hoje matam e provocam violências em todo o país. Envolveram Dias Velho na faixa que gritava em letras graúdas: DEMARCAÇÃO.
Para quem viveu a semana do Encontro Nacional de Estudantes Indígenas, no profundo de suas instâncias, ficou uma certeza: o mundo indígena é um universo de beleza e diversidade. A profusão de etnias mostra que não é possível pensar o índio dentro de um estereótipo. Há também, entre eles, uma mistura, que um pouco “cabocliza” ou “embranquece” na aparência, embora a essência do pertencer a uma ou outra etnia siga sendo o que os unifica como povos originários, donos dessa vastidão. Fica patente que há também um fortalecimento da resistência, na luta pelo território que é também a luta pela manutenção de sua cultura. A língua, as danças, os cantos, as pinturas rituais, o modo de ser no mundo, tudo isso os torna únicos. Ser e pertencer é uma decisão pessoal para cada um daqueles que, mesmo não vivendo mais nas aldeias ou comunidades, se reconhecem e são reconhecidos como de uma determinada etnia.
Terminado o encontro, a batida do maracá, o barulho do passo cadenciado, o grito de luta e as cantorias, acabaram se colando, de algum jeito, na alma e nas coisas do campus. E, para quem viu e viveu nada mais pode ser como antes. O mundo indígena está vivo e vibra. Ele se levanta das profundezas da cultura e paira chamando para um novo tempo. Que se faça, dessa vez, o diálogo. Que parem as mortes. Que cesse o preconceito e a discriminação.
Fotos: Kuaray Mariano