A cidade da Parada da Diversidade não quer incluir o estudo de gênero na escola

Por Paula Guimarães. 

Menino veste azul e brinca de carrinho. Menina usa rosa e brinca de boneca. As características naturalizadas desde a infância de acordo com o sexo, como masculinas e femininas, constroem universos diferentes que colocam a mulher num lugar e o homem em outro: privilegiado. Ela, a fêmea passiva que se liga a ele, o macho viril. Por questionarem as regras do jogo, as mulheres “desobedientes”, os homossexuais e transgêneros são vítimas fáceis das mais diversas formas de violência. Formar pessoas mais tolerantes passa por um ensino que promova o entendimento de que a subjetividade do ser humano perpassa essa binária cartela de cores. Assim pensam especialistas que consideram fundamental o estudo da identidade de gênero na escola para enfrentar o sexismo e o machismo. Do outro lado estão aqueles que querem manter as coisas “como Deus criou” e tratam a questão como de exclusivo interesse privado e ameaça à família.

Florianópolis, que há nove anos realiza a Parada da Diversidade, resolveu seguir a decisão nacional e estadual de excluir o conteúdo do Plano Municipal de Educação – orientador das diretrizes e metas dos próximos dez anos. A principal crítica está na confusão ou sugestão que o tema pode causar na cabeça das crianças: num dia acordar menino e, no outro, menina. Na audiência pública que discutiu o assunto, na última segunda-feira, o procurador geral do município, Alexandre Abreu, afirmou que não gostaria que o filho dele tivesse acesso a essa temática na escola. O advogado indicou a retirada do conteúdo antes mesmo do projeto ser encaminhado à Câmara de Vereadores. Para ele, é possível combater a discriminação sem tocar no assunto. Os religiosos que lotaram a sessão aplaudiram com veemência o discurso.

secretariaNa linha de frente de todo desconforto causado pela simples menção da palavra gênero estão as igrejas católica e evangélicas. Cartilhas contra a tal “ideologia de gênero” multiplicam-se não só em missas e cultos. Um panfleto apócrifo (de autoria logo assumida pelo padre Hélio Luciano da Arquidiocese de Florianópolis) foi distribuído recentemente pela Presidência da Câmara de Vereadores. Dias antes, o vazamento de um cartão em homenagem ao Dia da Secretária enviado por uma funcionária da Secretaria Municipal de Educação (SME) causou revolta nas redes sociais pelo tom machista.

cesar souzaA polêmica envolvendo a religião começou há cerca de dois meses. Contrariando a equipe multidisciplinar que elaborou o plano de educação, o prefeito César Souza Júnior, eliminou a palavra gênero do texto. A decisão ocorreu minutos depois de uma reunião com líderes religiosos, que teve pausa para uma oração com direito a registro e publicação nas redes sociais. “Esse é um tema que, a meu ver, o Estado não tem que se intrometer”, afirmou, em vídeo, o prefeito cercado por religiosos. “Vitória da família, do povo de Deus”, finalizou o pastor Everson Mendes, funcionário da prefeitura.

Diferente do executivo, a gerente de atividades complementares do Ensino Fundamental da SME, Sônia Carvalho, acredita que “o enfrentamento das desigualdades é papel do estado” e, para tanto, discutir gênero na escola seria “imprescindível”.

Para desmistificar o assunto e ultrapassar a fronteira do tabu, entrevistamos Sônia – que também é representante da secretaria junto à Coordenadoria de Políticas Públicas para a Promoção de Igualdade Racial (COPPIR) -, e a estudiosa do gênero Carmen Lúcia Luiz, militante dos movimentos feminista e LGBT.

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Carmen Lúcia Luiz (meio) em recente Campanha do Ministério da Saúde voltada às mulheres lésbicas e bissexuais.

Carmen, o que é identidade de gênero?
Carmen: Identidade de gênero é aquilo que nós acreditamos ser. Ou seja, é autodeterminada. É quando dizemos para nós mesmas/os: sou mulher. Ou: sou homem. A identidade de gênero nem sempre combina com o sexo que nos é designado ao nascermos. Algumas pessoas, embora tenham sido apontadas como indivíduos do sexo masculino ao nascer, sentem-se mulheres e vice-versa. Estas pessoas hoje chamam-se mulheres transexuais e homens transexuais. Existem também pessoas que reivindicam a legitimidade de sua identidade de gênero para além das identificações binárias de homem e mulher.

Por que é importante discutir gênero na escola?
Carmen: A identidade de gênero está ligada aos padrões sociais de exercício da masculinidade e da feminilidade. Há o mito culturalmente construído de que homens têm privilégios sobre as mulheres: Homens falam e mulheres escutam. Homens mandam e mulheres obedecem. Homens são do mundo e mulheres são da casa. E poderíamos dar muitos outros exemplos, que acabam desembocando em uma relação desigual entre homens e mulheres, mediadas pela violência. É preciso que este debate seja feito desde a mais tenra idade, nas escolas, nos locais de convivências de crianças e adolescentes, para que estes/as possam compreender o processo de construção do machismo, do sexismo e da misoginia, e dessa forma, trabalharem na desconstrução destas formas relacionais, fazendo assim o enfrentamento das violências de gênero, buscando sua erradicação.

Por que algumas pessoas resistem tanto a essa palavra? O que essa resistência revela?
Carmen: Como o resultado do debate sobre as questões de gênero foi um dos que mais mudou as relações entre homens e mulheres no mundo atual e mais promoveu a emancipação da mulher e, portanto mais apontou para a quebra de privilégios masculinos, é demonizado por aqueles que querem a manutenção da machocracia. Os homens temem perder privilégios e dividir o mundo com as mulheres de forma equânime.

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Sônia Carvalho da Secretaria Municipal de Educação (SME)

Sônia, para você o que é violência de gênero?
Sônia: Violências podem ser consideradas opressões que determinados sujeitos sofrem em diferentes contextos e distintas maneiras. Neste caso tratando de violência de gênero, as mulheres que são tais sujeitos, sendo violentadas e invisibilizadas. É possível pensar que os papéis sociais impostos a elas pela sociedade machista, em que o homem ocupa os espaços de decisão, evidencia aquilo que as tornam invisibilizadas. Na medida em que as mulheres buscam ocupar outros espaços sociais acabam sendo oprimidas e psicologicamente violentadas, possibilitando o pensar para além das violências físicas.

Você acredita que existem desigualdades entre homens e mulheres na sociedade atual ou isso é coisa do passado?
Sônia: Sim. Pois as relações entre homens e mulheres num contexto histórico foram permeadas por privilégios para os homens, que ao longo do tempo se naturalizaram e configuraram-se em desigualdades. Neste sentido, tais relações possibilitam a compreensão da situação da igualdade de oportunidade para ambos atualmente, contexto que resulta em reflexões e lutas, como feminismo por exemplo, para busca de equidade de gênero. 

Qual o papel do Estado e suas instituições, especialmente de ensino, na manutenção ou enfrentamento dessas desigualdades?
Sônia: O papel do estado é o de enfrentamento das desigualdades, com a proposição de políticas públicas que promovam a equidade, o que proporcionara a igualdade de oportunidades aos sujeitos independente do gênero, do pertencimento étnico, da orientação sexual, religioso ou de classe.

O estudo do gênero na escola é visto como um tabu. Líderes religiosos se opõem porque acreditam que a temática não deva ser discutida. Você considera importante discutir o gênero na escola? Por quê?
Sônia: Sim. Sendo o gênero uma construção social e a escola o lócus privilegiado de produção do conhecimento, e nela que conseguiremos entender como se deu a construção histórica dos papéis a que homens e mulheres devem desempenhar na sociedade, o porquê da hierarquização desses papéis, somente com o conhecimento poderemos combater o machismo e as ideias misóginas. Discutir gênero na escola é imprescindível, pois é nela que preparamos nossas crianças, adolescentes, jovens e adultos para a convivência e o respeito com as diferenças.

A educação institucionalizada questiona ou perpetua os papéis de gênero que naturalizam as desigualdades entre homens e mulheres?
Sônia: A medida em que a escola propõe currículos que tem como centralidade os sujeitos e o fortalecimento das identidades ela problematiza a desigualdade e questiona os papéis de gênero, entretanto ainda convivemos com escolas onde as meninas  sofrem maior preconceito por serem mulheres e são vítimas de comentários sexistas nas salas de aula.

Nas escolas municipais, a criança que demonstra uma orientação sexual diferente do que impõe a cultura heteronormativa, encontrará apoio, poderá expressar sua liberdade ou sofrerá preconceito por parte de profissionais e alunos? De que forma a escola promove a tolerância?
Sônia: A sociedade brasileira é preconceituosa e trata a diferença como desigualdade, portanto tudo o que for considerado fora da normalidade é passível de ações discriminatórias, que só podem ser superadas com políticas de combate ao racismo e todos os tipos de preconceito, para tanto a secretaria municipal de educação através do programa de diversidade étnico-racial proporciona desde 2005, um conjunto de ações, entre elas a formação continuada centralizada às professoras e professores com a temática da diversidade de gênero, orientação sexual e étnico-racial; aquisição de material didático que respeite a diversidade de gênero e étnico-racial; participação em campanhas como o concurso de desenhos contra o homofobismo; disponibilização nas bibliotecas das escolas do livro  “ Diversidade na Escola”; Seminário da Diversidade que acontece anualmente, criação de rubrica específica do programa de diversidade no plano pluri anual; inclusão do gênero nos documentos oficiais e abordagem das diferentes configurações familiares, entre outros. 

Acreditamos, com isso que proporcionaremos na escola um ambiente onde a diferença não é sinônimo de inferioridade, é apenas uma diferença, pois como diz Boaventura Santos “temos o direito de ser diferente sempre que a diferença nos descaracteriza e o direito a ser igual sempre que a diferença nos inferioriza”. Somente uma escola que livre de preconceito e racismo é capaz de formar homens e mulheres livres e felizes. 

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