Sobre Gênero e outros Demônios

    Por Marino Mondek (texto e foto)*

    Está em discussão, no município de Florianópolis, o Plano Municipal de Educação (PME). Para quem desconhece, o PME é uma das partes do sistema educacional brasileiro. Ele vem em consonância ao Plano Nacional de Educação (PNE) e acompanha a discussão do Plano Estadual de Educação (PEE). A soma desses planos, que teoricamente são construídos em grandes espaços democráticos e de base, e somente depois são levados às casas legislativas, corresponde a como devem ser construídos e constituídos os saberes de base e por onde deve passar a educação no período de dez anos. Portanto, qualquer política que for efetivada nesse PME só será revista, no mínimo, em 2025.

    Importante explicação. Ontem, 5 de outubro, houve uma audiência pública na ALESC, convocada pela Câmara de Vereadores, para discutir o Plano Municipal. Mas, antes de entrar na temática do PME em si, é necessário pontuar algumas questões.

    A primeira, o PME tem como base o Plano Nacional, duramente criticado por não definir nada, colocar todos os pontos na abstração e abrir margem direta para o repasse de verbas públicas para a iniciativa privada. Define como meta 10% do PIB para educação (bandeira histórica da esquerda brasileira), mas não define se essa educação deve ser pública ou privada, emancipatória ou alienante, de caráter público ou de caráter privado (veja bem, há uma diferença entre educação pública e de caráter público)… Não especifica nada e, obviamente, não especifica como vai ser elaborada a matriz orçamentária para essa meta ser cumprida. Resumindo, não fala se vai tirar da saúde ou do pagamento da dívida para se cumprir isso. Esse ponto é só um exemplo. O PNE pode ser facilmente encontrado: uma busca no google pode mostrar o que esperar da educação nos próximos dez anos. Para fechar esse primeiro ponto é importante ressaltar que há uma resistência, principalmente por parte da (puxada pela) ANDES-SN, relacionada aos caminhos que o PNE tem seguido. Há alguns fiapos do pouco que sobra de uma sindicalismo crítico e comprometido com os rumos do país na Associação, e os Docentes fizeram o que lhes foi possível no ano passado para democratizar essa discussão, quem não ajudou foi o Movimento Estudantil.

    Segundo ponto. A esquerda florianopolitana, cadê? Nem eu, nem a maioria das pessoas que estavam presentes viu a esquerda organizada na audiência. Com exceção dos gabinetes dos vereadores, não havia um militante organizado compondo as fileiras das pessoas que estavam enfrentando diretamente os setores conservadores da nossa cidade na ALESC ontem. A esquerda da nossa cidade, em especial a juventude de esquerda, sofre de um mal que assola a sociedade como um todo (não há quem escape do materialismo histórico dialético, ele não é bom nem ruim, ele é), que é o que vulgarmente chamamos da sociedade da aparência. Bota uma #Hastag no Facebook, posta uma foto com uma plaquinha e está abalando, está militando e pode dormir em paz com o seu check list de tarefas revolucionárias do dia feitas. Isso pode ser visto não só nesse debate, mas em diversos outros. Na semana passada, os povos indígenas que ocuparam a UFSC foram magistrais em apresentar e convidar os povos não-indígenas em conhecer e avançar nas lutas dos nossos povos originários, pena que a esquerda oficial, mais uma vez, estava preocupada com coisas mais relevantes.

    Terceiro ponto antes do debate, uma crítica às estudantes de pedagogia da nossa cidade. Vi apenas duas colegas da UFSC e, se tinha alguém da UDESC, sinto muito, não sei dizer. Está acontecendo a reunião da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação (ANPEd), óbvio que ir discutir os temas academicistas com pouco contato com a realidade (digo pouco sendo bem generoso, pois o que eu vi no GT que participo foi um mecanicismo e uma análise estratosfericamente longe do chão das escolas e das universidades) é bem melhor que discutir e enfrentar a materialidade. O academicismo é extremamente cômodo, um espaço onde se pode ser marxista sem ser marxista de fato. É ser marxista sem tocar na realidade e no materialismo histórico. Se faz uma leitura de Marx, mas que alguém mude a realidade, mas que não seja eu. O que Ludovicco Silva chamou de Marxólogos. Essa doença acadêmica está se proliferando cada dia mais no curso de pedagogia da UFSC (e nas ciências sociais, aplicadas ou não, como um todo), isso junto ao marasmo que demoramos para superar, mas sempre bate à porta, faz com que a realidade mais importante seja a do meu presente e a de acabar a graduação o mais rápido e com o maior Lattes possível. Culpados para isso? Vários: eu, tu, ele, ela, nós, vós, eles, elas… Bom, cutuco quem pode mudar um pouco. Professores de esquerda da Pedagogia, voltem para a realidade. Não foi discutido nas salas de aula esse plano, não foi discutida a redução da maioridade penal, mal foi discutido o empresariamento da educação (temática da greve nacional dos docentes). Estamos formando profissionais que não sabem alfabetizar e não sabem nem dizer o porquê não sabem fazer isso.

    Dita essa pequena introdução, entro nas questões do PME em si. O Plano tem várias metas integradas que vão discutir acesso, permanência, qualidade, quantidade, formação, acessibilidade, inclusão, diversidade… Enfim, há varias pontos, vinte metas, mas poucas explicações de como elas vão ser atingidas. Enfatizo aqui, vale a leitura do plano para entender qual é a política de educação importada para a América Latina, o que o Plano expressa pode ser visto em quase todos os países do nosso continente. Entrarei em três pontos que acredito poder contribuir mais.

    Começaremos pelo consensual.

    Política de Inclusão para pessoas com deficiência. Meta 4

    O texto traz uma ideia difusa do que fazer e aposta na manutenção das políticas instaladas na cidade. As políticas já se mostraram ineficazes, o sujeito com deficiência vai a escola mas, na maioria dos casos, fica isolado dentro dela. Com um professor, ou auxiliar que serve como cuidador e não tem função pedagógica, ou quando tem é apenas para o estudante com deficiência fazendo o ensino ser diferenciado, não há uma real integração. A proposta de superação desse ponto é uma política efetiva de integração, onde sejam respeitadas as individualidades da pessoa com deficiência, mas integrando ela na totalidade do mundo escolar. Pessoas com deficiência não devem ser isoladas na hora do recreio, não devem comer separadas, não devem ter um profissional que só se preocupe com o seu cuidado, devem ter os profissionais da educação trabalhando de maneira coletiva para real integração da nossa sociedade. “Sonho” com o dia em que seja ensinado LIBRAS como língua curricular nas escolas, para as crianças não precisarem de intérprete para se comunicarem, dando às pessoas surdas, no caso, uma autonomia sobre a sua comunicação com as ouvintes.

    Só para fechar esse ponto é importante ressaltar que as escolas particulares de Florianópolis deram o maior empurrão para trazer novamente a discussão da Educação Especial na nossa cidade. Falando, através da sua associação, que não querem mais receber alunos deficientes, pois não conseguem fazer o trabalho que as crianças necessitam. Isso só mostra que a educação para ser democrática tem que ser pública e trabalhada em caráter público. As escolas particulares simplesmente não deram conta de ensinar as crianças com deficiência, pois as preocupações delas estão diretamente ligadas ao lucro e não ao ato de ensinar.

    Antes de passar para a polêmica, gostaria de colocar que pra todos e todas que lá estavam, estava clara a luta de classes ombro a ombro. A direita organizada vaiando a esquerda, intimidando os militantes que defendiam a questão de gênero, uma tensão e a clara percepção de que era necessário se aliar a qualquer setor democrático naquele momento. Uma adrenalina tomava conta e a percepção de se sentir diretamente na luta contra a direita presente, de corpo alma, maioria e muito ódio é algo que sempre me faz pensar em como nós, militantes de esquerda, estamos falhando e estamos despreparados para enfrentar o conservadorismo que se levanta em nossa América. Foi uma aula de luta de classe e de análise da realidade

    Passado o consenso, entro nos dois temas polêmicos do PME. Gênero e Financiamento público de vagas na rede privada. Falarei deles em conjunto pois, mesmo não parecendo, eles estão intimamente ligados no nosso PME e em diversas cidades Brasil afora.

    Que a discussão de Gênero nas escolas é importante, isso ninguém que está lendo esse texto e conseguiu chegar aqui discorda. O combate ao patriarcado, as normativas e posições de cada gênero na sociedade devem ser discutidas para serem desconstruídas. Isso, de esquerda à direita, é sabido. Quando se discute algum tema, a chance de se desconstruir os paradigmas postos nele são maiores. Então por que os setores conservadores querem tanto excluir a identidade de gênero do Plano? Tenho três pontos, que juntos, expressam as conversas que tive na audiência ontem.

    Ponto 1 – Desconstruir os pequenos avanços republicanos conquistados em 88.

    É muito precioso para o campo de esquerda esse tema. É a defesa da cidadania para todos e todas. Isso até os liberais menos conservadores concordam. Além disso é central para o avanço dos setores marginalizados. É apoderamento e empoderamento de setores que têm uma certa capacidade de organização. Atualmente os ataques da burguesia vêm no sentido de acabar com o pouco que resta de suspiro republicano e de garantia de direitos na nossa constituição. De quebra, se esmaga um pouco mais a esquerda e coloca ela no seu devido lugar, a sete palmos de qualquer coisa.

    Ponto 2 – O conservadorismo puro das igrejas neopentecostais e o descontentamento das bases da igreja católica com a sua direção internacional.

    O conservadorismo fundamentalista das igrejas neopentecostais dispensa explicações, caso alguém queira isso, estou totalmente disposto a entrar nesse debate, mas isso pode ser expresso facilmente acompanhando uma sessão da câmara federal (recomendo também, se tiverem a oportunidade, verem o curta “A Capital da Fé” de Gabriel Santos).

    Sobre a saída da igreja católica para a crise de fiéis, bom isso é um debate que está correndo na igreja como um todo. A visão do papado sobre isso (não estou saindo em defesa desse papa) é tentar reaproximar os setores que não dialogam mais com a igreja devido ao conservadorismo. A base, por outro lado, vê que a saída é se aproximar das leituras mais “ortodoxas” da bíblia, leituras fudamentalistas que fizeram que as neopentecostais crescessem tanto. Enquanto a direção vê uma saída abrindo diálogo, a base vê uma saída se fechando e excluindo, criando um inimigo a ser combatido. Criar inimigos internos não é novidade para nós, Latinos.

    Ponto 3 – Cortina de Fumaça.

    Este é um ponto de suma importância para nós. Vamos mudá-lo e deixar que todo o resto não seja discutido. Para a acumulação de capital, pouco importa o teu gênero, sexo, cor, raça ou o que for, o que importa é o dinheiro na conta. Nada melhor para passar um tema polêmico e super lucrativo, jogando outro tema polêmico como central.

    Como expressei anteriormente, de forma rápida, confesso, a questão de gênero é fundamental para a construção de uma sociedade mais democrática, mas isso não é ponto central no PME e não foi no PNE. O que é central é a transferência direta de capital do setor público (das trabalhadoras e dos trabalhadores) para o setor privado. Reafirmo, não nego a importância do debate, ele é central para nós, mas não para o capitalismo. Essa transferência de capital é expressa na compra direta de vagas pela prefeitura em diversas instituições privadas na cidade. Essa compra pode ser uma forma de garantir financiamento eleitoral, pode ser um projeto de país, pode ser ódio ao serviço público, acredito que seja a soma de todos os fatores. Dados do próprio PME (pág. 34) mostram que em 2008 havia em Florianópolis, no ensino fundamental 2, na rede federal 304 vagas, na rede estadual 10.301 vagas, na rede municipal 7.742 e nas escolas privadas 6.585 vagas, somando um total de 24.930 vagas. Já em 2014, havia na rede federal 309 vagas (alteração irrelevante, que oscila de ano em ano), na rede estadual 6.663 vagas (uma queda de 46%), na rede municipal 5.777 (uma queda de 34%) e nas escolas privadas 6.627 vagas (um aumento de 1%), somando um total de 19.346 vagas (uma queda de 28%).

    Como há uma queda no número de vagas total e um aumento nas vagas privadas? Como o sistema dá conta dessas vagas? Acredito que ninguém tem a ilusão de que a média da renda das famílias florianopolitanas cresceu o suficiente para se equiparar à esse crescimento, ou que do nada os ricos, diferentes do pobres, decidiram ter mais filhos. Que a população de Florianópolis está diminuindo e ficando mais velha, isso é um fato que pode ser visto na maioria das capitais brasileiras, mas diminui principalmente onde há mais renda. Então, como as escolas particulares de Florianópolis vêm crescendo e conseguindo se manter?

    Sabemos dos fechamentos das escolas das redes estadual e municipal, mas da rede privada, seria uma novidade pra mim por aqui.

    Isso não ocorre, pois há uma série de convênios feitos pela prefeitura com essas instituições. Chega uma recomendação judicial dizendo que faltam vagas em determinado ano de ensino, a prefeitura justifica que há uma necessidade de comprar vagas nas escolas particulares, pois não há tempo para construir escolas novas e essas vagas são giradas, com justificativa legal para a rede privada de ensino. Importante ressaltar que as escolas privadas não têm nenhum tipo de controle pelo estado, se ensina o que se quer, da forma que quer e só é visto nas provas de nivelamentos propostas pelos organismos multilaterais, como provinha Brasil ENEM, Vestibular… Esse controle de qualidade que qualifica algo que eu ainda não entendo como central na educação.

    Colocada essa problemática mais firmemente, agora é central fazer uma retomada do texto inteiro e as devidas conclusões. Para acabarmos com essa superexploração da classe trabalhadora nos países periféricos, mesmo a burguesia de Floripa negando, nossa cidade faz parte de um país periférico no capitalismo, é necessária uma nova forma de organização da classe trabalhadora. É necessário que a esquerda coloque os pés no chão da materialidade e comece a debater as temáticas centrais da acumulação de capital, isso sem tirar da cabeça os temas transversais, mas como o nome já diz são transversais. A esquerda precisa reinventar a forma de pensar a cidade, a educação, a política e de como agir sobre os temas. Agora, mais do que nunca, é necessária uma nova práxis política. “Tem de começar em algum lugar. Tem de começar alguma hora. Que lugar melhor que esse, que momento melhor que agora?”

    Fecho essa reflexão com o pensamento do primeiro pedagogo de esquerda de uma grande notoriedade no nosso continente. Obviamente ele é esquecido pela academia.

    “La América española es original, originales han de ser sus instituciones y su gobierno, y originales sus medios de fundar uno y outro.

    “O Inventamos, o erramos.”

    Simón Rodríguez

    *Estudante de Pedagogia UFSC – Membro do Instituto de Estudos Latino Americanos

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