Por Donald Malchitzky.
Nos últimos dias fomos invadidos pela imagem do horror na forma de um anjo morto, afogado numa praia que o resgataria do horror da guerra dos adultos e seu rastro de fome, violência, insensatez. Jazia na praia, como poderia estar numa cama, esperando pelo carinho da mãe, e artistas o colocaram numa cama, munido de asas, pois precisaria delas para voar antes da hora, já que o hálito também lhe fora tirado. O mundo que gosta de números, pensa que é apenas mais um, e é, e isso torna tudo muito pior: é mais um, mais um, mais um, mais muitos.
Fogem do fogo da loucura nos olhos, do ódio que não se explica, do medo do hoje e da incerteza do amanhã. Fogem em busca do que sequer sabem direito o que será, sabem apenas que é melhor do que dar passos em pântanos áridos que sugam suas forças, seus brilhos, seus filhos, suas almas. E morrem nas fugas em barcos apinhados, em caminhões lacrados. Morrem sem que alguém o sinta. E sofrem violência e descaso e discriminação. Alguns poucos são recebidos e têm a oportunidade de se integrar, mas as levas continuam.
Na escola, fomos ensinados a venerar nossos heróis de guerra, os hinos nacionais de enorme número de países falam mais em guerra do que em paz, e quase nenhum fala em tolerância; os locais públicos são infestados de nomes de quem se tornou famoso por matar seus semelhantes. A coragem de enfrentar situações difíceis, como tomar decisões dolorosas, reconhecer o erro, pedir perdão, estar ao lado da justiça e da verdade mesmo que isso possa ser perigoso, esta coragem não merece quase nada de atenção, não é valorizada, não recebe homenagens.
No filme “Stalingrado – batalha final”, talvez o mais verdadeiro filme de guerra jamais filmado, há uma cena em que um soldado é atingido por uma descarga e seu corpo cortado ao meio, a metade de cima cai em pé e ele sobrevive por breves instantes, gritando, para desespero de seus companheiros. Esse é o heroísmo da guerra: por volta de 1.400.000 pessoas, entre soldados e civis, morreram em Stalingrado. Muitos de fome e frio, seguindo ordens de líderes desvairados. Quantos deles são nomes de ruas? Mas nomes dos generais que ordenaram a matança figuram em placas.
A guerra corta as asas dos anjos, como do “Menino de sua mãe”, de Fernando Pessoa: “Lá longe, em casa, há a prece:/ Que volte cedo, e bem!/ (Malhas que o império tece!)/ Jaz morto, e apodrece/ O menino de sua mãe”. E não tem como colá-las de volta, já não podem voar.