Por Samuel Lima.*
No começo da manhã de 02 de setembro uma imagem captada na praia de Bodrum, Turquia, correu as telas e jornais de todo o mundo. O corpo do menino sírio Aylan Kurdi, de 3 anos, ganhou uma dimensão mística e se fez sinônimo de uma crise que não é apenas migratória.
O que está em xeque são os valores de uma “civilização” que continua, 70 anos depois do fim “oficial” da 2ª Guerra Mundial, refletindo no “espelho do mundo” e nos fóruns de poder, aquele desenho forjado a duas bombas atômicas sobre o Japão e milhões de vidas ceifadas. Os “vencedores” desse conflito continuam dando as cartas ao mundo…
As mãos que empurraram o frágil barco de plástico no qual a família de Aylan e outras tantas fugiam da morte, da fome, da guerra na Síria são as mesmas que armaram a bomba atômica sobre Hiroshima e patrocinaram centenas de conflitos sangrentos nas últimas sete décadas. O centro desse império da morte localiza-se no Norte da América a atende pelo nome de Estados Unidos.
Refugiados do mundo árabe (Iraque, Afeganistão, Síria, Líbia, Egito…) são vítimas das invasões recentes e esquemas de poder vitaminados pelo midiático movimento chamado glamourosamente de “Primavera Árabe”. A essas milhares de pessoas sem teto, comida, pátria juntam-se centenas de milhares de filhos da África, que durante mais de 600 anos alimentou as bocas e bancos da Europa rica, branca e de olhos azuis.
Contra o senso comum
Entre o espanto e a emoção fiquei observando atentamente como a mídia nacional passou a cobrir o drama dos refugiados de guerra árabes e africanos, especialmente após o dia 02 de setembro. Salvo raríssimas exceções, a “conta” desse drama humano era apresentada sem contexto histórico algum. De repente, do nada, surgiram multidões de famílias querendo “morar na Europa”.
Destaco a capa do jornal popular “Extra” (Rio de Janeiro), que mais uma vez honrou a tradição iluminista do jornalismo e fez uma pungente capa (veja imagem), na qual estampava a foto do soldado turco ante a cena dantesca, indagando: “A civilização morreu na praia?”. Coberta por uma sobrecapa em forma de tarja preta, cobrindo o canto esquerdo da imagem (o corpo de Aylan), sob o aviso: “Atenção: imagem forte na capa”. Na versão disponível na internet, o jornal cobria a imagem e oferecia um recurso para abrir, caso o leitor assim o desejasse (acesse aqui:
http://migre.me/rsI4v).
Com efeito, ao mensurar a crise como civilizatória, o jornal Extra ofereceu sensível e notável contribuição ao debate público. Num mundo-mídia dominado pelo peso de imagens e saturado de informações (em textos e visuais), inacessíveis ao ser humano comum e passíveis de significação apenas com o uso de sofisticados instrumentos de big data, a imagem do menino Aylan, morto pelas mãos dos sete donos do mundo globalizado (o famigeradíssimo G-7, fotografia de 70 anos de poder pós 1945) se converteu num raro acontecimento.
Tanto horror perante os céus…
Artistas do mundo inteiro se mobilizaram para homenagear o menino sírio e, num gesto único, denunciavam e buscavam dar a máxima visibilidade ao drama que milhares de seres humanos enfrentam nos mares, fronteiras e estações europeias. Compartilhada em bilhões de mensagens pela internet (redes sociais, WhatsApp etc.), a imagem-símbolo ganhou vida na fala do Papa Francisco, de estadistas em diferentes países e continentes, pulou de tela de celular em tela, até repousar no coração de cada um de nós (Fonte:
http://migre.me/rsIlk).
O jornalista Juan Cruz, interpretando talvez o sentimento de todos nós, escreveu no El País (ed. 02/09/2015, 18h45): “A morte de uma criança é uma afronta, um grito da vida contra a morte. Uma criança morta na praia, no lugar em que acontece esse idílio do mar com a terra e que aí não espalha felicidade, mas o terrível som de uma notícia de que chove como o pranto no coração” (Fonte:
http://migre.me/rsIt1).
Navegantes dos novos navios negreiros que partem da África (Eritréia, Nigéria, Líbia etc.) e do mundo Árabe (Síria, Iraque, Paquistão, Afeganistão etc.) são apresentados pela mídia como partícipes da “maior crise migratória desde a 2ª Guerra Mundial”. Os dados são conflitantes, mas estima-se que, só em 2015, mais de 370 mil migrantes chegaram à Europa; destes, 2,7 mil morreram nas águas do Mediterrâneo tentando alcançar algum ponto do continente europeu, uma réstia da vida.
Vendo e revendo essas imagens me vem a mente a força da poesia-denúncia do grande Castro Alves (1847-1871), que a seu tempo denunciou fortemente a escravidão dos povos africanos no Brasil e continente americano. São mais atuais que nunca os versos de “Navio Negreiro” (veja o poema aqui interpretado pelo saudoso Paulo Autran:
http://migre.me/rsIWs):
“Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura… se é verdade
Tanto horror perante os céus?!
Ó mar, por que não apagas
Co’a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?…
Astros! Noites! Tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!”
(…)
Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra
E as promessas divinas da esperança…
Tu que, da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!…
Fatalidade atroz que a mente esmaga!
Extingue nesta hora o brigue imundo
O trilho que Colombo abriu nas vagas,
Como um íris no pélago profundo!
Mas é infâmia demais! … Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!
Andrada! Arranca esse pendão dos ares!
Colombo! Fecha a porta dos teus mares!”.
Resgato a última frase do texto do jornalista espanhol Juan Cruz, na esperança de que cada um de nós, a seu modo e possibilidade, estenda as mãos aos refugiados do mundo: “Aí jaz, nessa praia, o mundo inteiro”.
(*) Professor da Faculdade de Comunicação da UnB; pesquisador do Laboratório de Sociologia do Trabalho (LASTRO/UFSC) e do Observatório da Ética Jornalística (objETHOS/UFSC).