Por Gabrielle de Paula, Luís Felipe Abreu e Yamini Benites.
Em um lugar que desafia o imaginário sobre a capital gaúcha, crianças vivem em palafitas em meio às águas poluídas do Guaíba. Leia a segunda reportagem das microbolsas sobre Crianças e Água promovidas pelo Instituto Alana em parceria com a Agência Pública.
Kainã quer ser médico. Diuly tem vontade de ser bailarina. Gabriel pensa em ser policial. Zilá quer ter um pet shop. Ketlyn tem sonhos de modelo. Juntos, eles são artistas, músicos, cantores e até recitam poema. No mês das festas juninas, o colorido caipira enfeita o cortejo. Durante a comemoração, circulam pelas ruas e desafiam os vizinhos com charadas: “Tem barba, não tem bigode. No jogo da cabeçada, ninguém com ele pode…”.
Em comum eles têm não só a infância e os sonhos. São todos moradores da Ilha Grande dos Marinheiros, parte do bairro Arquipélago, em Porto Alegre, composto de diversas ilhas sobre o lago Guaíba. É a área com o menor Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) da região metropolitana, de acordo com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. E, entre tantas carências, essas crianças lidam cotidianamente com a maior e mais surpreendente por se tratar de um local abraçado por água de todos os lados: a falta de acesso ao saneamento básico.
A margem e o centro
A Ilha dos Marinheiros desafia o imaginário sobre a cidade de Porto Alegre, a sétima capital mais rica do Brasil. Ainda que esteja a cerca de 7 quilômetros do centro da cidade, o bairro da zona norte mantém uma relação distante com o cotidiano da capital, como se as águas do lago Guaíba impusessem uma distância que é muito mais do que física. Em plena capital gaúcha, encontram-se palafitas mambembes que sustentam casebres construídos com sobras de demolições, madeira e calhas reaproveitadas. Cerca de 850 famílias dividem ruas apertadas, sem asfalto ou calçamento. As crianças, os cães e os carros disputam o espaço do jeito que dá. A população é, em sua maioria, formada por descendentes de pescadores que trabalham no local ou em bairros próximos. Formam uma comunidade unida, fazendo referência a Porto Alegre como “lá, na cidade”, e tratada pelos habitantes do centro como se vivessem em uma localidade longínqua, quase folclórica. “É um local com cotidiano diferente do resto da cidade, marcado por uma relação com o ambiente que é muito própria. A água serve como uma zona de fronteira, que demarca os limites dessa relação com a cidade”, explica Rafael Victorino Devos, professor de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) que trabalhou por cinco anos na ilha, em sua pós-graduação.
A ilha ganhou destaque nacional em 1989, com o curta-metragem Ilha das Flores, de Jorge Furtado. O filme de ficção acompanha a saga de um tomate, da produção ao descarte, quando vai parar em um lixão da ilha e vira comida de porcos. O que sobra dos animais é consumido pelos moradores. Rodado quase integralmente na Ilha Grande dos Marinheiros, o filme leva o nome de outra ilha ali perto. Parece ser a sina: mesmo quando ganha notoriedade, a Ilha dos Marinheiros é esquecida.
“Tem barba, não tem bigode. No jogo da cabeçada, ninguém com ele pode!”, “É o bode, é o bode!”, gritam, em jogral, as crianças pela ilha na manhã de um sábado de sol. Sobre pernas de pau que driblam as poças e o barro, visitam os vizinhos com música e sorrisos. Mesmo com a precariedade, a comunidade da ilha é unida e orgulhosa, rechaçando o rótulo de “carentes e miseráveis”. Neusa Dias, que criou na ilha os dois filhos e hoje cuida de tantas outras crianças como educadora na Biblioteca Comunitária do local, entende que a distância entre o bairro e o resto da cidade é mais social do que física: “Tem quem diga que isso aqui é um fim de mundo. Não concordo. É preconceito”.
Todo aquele rio ali do lado
Já o calor é um elemento tentador e pernicioso no verão. Ana Paula Castro, 22 anos, mãe de Diuly Castro, de 5, e de Helena, de 10 meses, explica que é difícil para as crianças deixar de “aproveitar todo aquele rio ali do lado”. Como ela, muitos moradores admitem frequentar a “prainha” – uma faixa de areia com acesso a uma margem rasa do Guaíba –, embora a água que representa um dos poucos momentos de lazer dessa população seja sabidamente muito poluída.
Com 12 anos, Zilá Castro mora às margens do Guaíba com Ana Paula, sua irmã. A brincadeira preferida dela é “pular no rio” durante o verão. Sincera, ela reproduz para a reportagem aquilo que vê todos os dias: “Na escola disseram pra gente desenhar um rio. Aí eu fiz uma água toda morta, cheia de sujeira, garrafa, tudo”, conta, antes de refazer o desenho. Ela enche a folha com os lápis azul e marrom, simulando a água escura. Por cima, rabisca objetos que fazem a vez de lixo.
O Guaíba recebe dejetos e lixo de todas as regiões de Porto Alegre, e o delta do Jacuí tem detritos de todo o estado, como explica o geocientista e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Rualdo Menegat: “A contaminação do lago deriva de toda carga de poluentes da grande Região Hidrográfica Guaíba, que inclui grande contingente populacional e a maior parte da atividade industrial (petroquímica, metal-mecânica, automotiva, coureiro-calçadista) do Rio Grande do Sul”. Para o antropólogo Rafael Devos,“os ilhéus são as maiores vítimas dessa situação, por estarem cercados por essas águas sujas”.
Até o início dos anos 1960, as praias do Guaíba podiam ser desfrutadas pela população. Mas a urbanização desordenada da região metropolitana contribuiu para a poluição do lago. A grande quantidade de indústrias instaladas às margens do Guaíba e o grande volume de navios que circulam nas suas águas deixaram a região poluída. A partir de meados da década de 1960, várias reportagens na imprensa começam a dar conta de um abandono dos balneários pelo poder público. Desde então, o Guaíba é extremamente poluído pelo descarte de esgoto e de lixo, oferecendo riscos à população. “Temo que as gerações futuras jamais nos perdoem pelo que estamos fazendo ao Guaíba”, afirma Menegat.
Marino de Souza tem 69 anos, todos vividos no Arquipélago. Em um sábado de calor, ele se senta diante de um armazém na ilha e conversa animado, revelando boas lembranças: “Sempre tomei banho de rio. Meu pai gostava de pescar e eu ia junto com ele no barco, sempre bebendo de caneca direto da água. Depois em casa a gente cuidava um pouco mais, pegava a água do rio e filtrava na talha de barro, para tirar a terra”. Com os quatro filhos já adultos, ele viu muitas crianças crescerem na ilha. Hoje é diferente: “Dá muita doença aqui. Os bebês têm muita ferida no pescoço, dá alergia nas crianças pequenas. Mas logo cura…”.
A poucas quadras dali, em uma casa de madeira cujos fundos dão para o lago, está a dona de casa Marion Rodrigues. Olhando o Guaíba, ela também é tomada de lembranças carinhosas, que remetem ao início de 49 anos passados no local: “Foi aqui que eu aprendi a nadar”. Mas o afeto é acompanhado de consternação enquanto conta que duas de suas quatro filhas sofreram com as feridas na região da cabeça e tiveram de parar de tomar banho no rio.
De acordo com funcionários do posto de saúde da ilha, o costume de esperar pela cura e não buscar pelo atendimento médico dificulta o registro das taxas de incidência de feridas e inflamações na pele. Mas o aumento de dermatites durante os períodos de calor é claramente percebido: “No verão, as pessoas usam o rio para tomar banho, e a gente acaba atendendo mais casos de irritações na pele, possivelmente ocasionadas pelo contato com alguma substância na água”, relata o médico do posto, Samuel Bastiani. Ali, o registro das enfermidades está não nos prontuários, mas na pele. Jeannifer Stéfany Machado, 20 anos, é estudante de jornalismo e atua como agente comunitária do posto. Ela mostra as manchas que marcam suas pernas desde a infância, resultado de dermatites causadas pelo contato com a água contaminada. “O problema é que a gente costuma achar que é de ferro”, diz.
Revolução nas torneiras
Embora esteja cercado de água por todos os lados, foi apenas em 2008 que o bairro recebeu abastecimento de água potável do Departamento Municipal de Água e Esgoto (Dmae). Antes disso, era abastecido por caminhões-pipa. Isso quando eles conseguiam vencer as dificuldades de acesso às casas, com vias estreitas e sem asfalto. Apesar da pouca idade, o irmão de Jeannifer, Gabriel Machado, 11 anos, recorda com clareza desses tempos: “Eles vinham com aquelas mangueiras grandes e a mãe enchia o buião [caixas d’água caseiras]”. O acesso dos veículos piorava na época de chuvas, entre junho e agosto. A água que chove nas cidades da região escoa para o Guaíba, que inunda localidades mais baixas como o Arquipélago.
Ainda que a água potável seja uma demanda antiga e o Dmae tenha iniciado estudos na área em 1995, a conquista foi dificultada por questões burocráticas. O bairro faz parte do Parque Estadual do Delta do Jacuí, unidade de conservação sob responsabilidade do governo do Rio Grande do Sul, e a Ilha Grande dos Marinheiros, por ser atravessada pela BR-116, tem suas questões estruturais reguladas pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) e pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT). O projeto de instalação de redes de abastecimento teve de passar pelo crivo de todos esses órgãos, explica Lizete Rohmet Ramires, assistente técnica da Gerência de Planejamento do Dmae: “Essa indefinição sobre a área nos impedia de avançar com o projeto”. Não foram poucas as complicações. Até mesmo a Concepa, empresa que administra a BR, teve de autorizar a obra.
Embora o parque tenha sido criado em 1976, quando já moravam famílias na região, Rafael Caruso Erling, chefe de Divisão de Unidades de Conservação da Secretaria do Ambiente e Desenvolvimento Sustentável do RS (Sema), defende que a ocupação humana do local é incompatível com seu caráter de área de preservação. Desse modo, diz ele, o governo não poderia autorizar mudanças de estruturas drásticas na área, caso das redes de abastecimento. “Essas áreas não possuem regime de ocupação urbanística dentro do Plano Diretor de Porto Alegre”, diz o biólogo.
Quando a água finalmente venceu esse emaranhado burocrático e de fato chegou às casas, há 7 anos, operou-se uma revolução na ilha. Oitocentas ligações de rede foram feitas, beneficiando cerca de 3.200 pessoas. “Das obras que eu participei, foi a que mais percebi um retorno de felicidade dos moradores”, lembra com orgulho Marco Faccin, gerente de Projetos e Obras do Dmae. “No tempo que a gente não tinha água, chegava a ficar com depressão. Depois foi uma alegria ver a torneira jorrando”, relembra Marion Rodrigues.
Hoje, a água da Ilha Grande dos Marinheiros é bombeada da estação de tratamento Francisco Lemos Pinto, que fica na vizinha Ilha da Pintada. Como o processo é feito com energia elétrica, as quedas de luz – muito frequentes no verão e durante temporais – interrompem o abastecimento. “Às vezes não tem água. Quando chove muito, falta”, revela a menina Zilá Castro. Nesses momentos, Roberta de Azevedo, mãe de Ketlyn Trindade e Maria Eduarda Trindade, também busca o rio. “Se fica faltando água direto, pelo menos a louça eu acabo lavando no Guaíba”, diz. Com isso, aumenta o risco de dengue, explica o médico Bastiani. Segundo ele, o hábito de estocagem em caixas d’água – fruto da época em que não havia abastecimento – permanece. “Nós já temos o mosquito da dengue na ilha, o Aedes aegypti, mas ele não está contaminado pelo vírus. Porém, basta contaminar um e daí já viu.”
Já o saneamento, não chegou
Embora a água tratada tenha chegado, falta ainda o seu complemento, reconhecido pela Assembleia Geral da ONU em 2010 como direito humano essencial: a coleta e o tratamento de esgoto. Há apenas 65 metros de redes coletoras de esgoto no bairro, todos na Ilha da Pintada, localizada ao sul da Ilha dos Marinheiros, atendendo cerca de 0,13% da população do bairro, segundo o Dmae. “Aqui nós nos viramos. Os mais organizados constroem fossas, mas tem gente que despeja na água”, conta Neusa Dias. Algo que é motivo de preocupação para o pequeno Gabriel Machado: “É ruim, tudo que as pessoas fazem no banheiro vai pro rio”, lamenta o menino de 11 anos.
Kainã Teixeira, de 8 anos, no momento preocupa-se em tentar dominar o uso de seu pião, recém-comprado no mercado perto de casa. Gosta de música e de ler histórias – quando não está com enxaqueca. “Ele tem bastante dor de cabeça, mas a gente não sabe direito o que é”, conta a mãe, Andressa Mourão, 26 anos. Sobrinha de Marion, ela veio para a ilha motivada por uma paixão. Instalou-se na casa da tia às margens do Guaíba e depois se mudou com o namorado para a “região dos becos”, construída sobre um banhado aterrado. Nessa região, nem mesmo as casas que improvisam fossas estão livres de odor, pois não há drenagem no terreno. Ao longo dos 11 anos em que trabalha no posto de saúde, o médico Samuel Bastiani acostumou-se a atender pacientes com enxaquecas causadas pelo mau cheiro do esgoto.
Bastiani explica que a ausência de uma rede de esgoto é a causa das doenças mais comuns na comunidade: doenças infectocontagiosas como hepatite, leptospirose e verminoses. Em 2010, foram notificados 17 casos de hepatite A na Ilha dos Marinheiros, segundo a Secretaria Municipal de Saúde. A gastroenterite, uma inflamação do estômago, também é recorrente entre os moradores, afirma o médico.
Depois que a água potável chegou, Bastiani notou uma melhora nos casos de verminoses na ilha (a água que chegava dos caminhões era armazenada pelos moradores em caixas d’água improvisadas, nem sempre limpas). No entanto, essa ainda é a principal doença que acomete as crianças da comunidade. “Há mais ou menos três anos, realizamos exames em 90 crianças. Oitenta delas estavam contaminadas com um tipo de verminose, ou mais”, afirma Bastiani. Ele estima que mais da metade das crianças abaixo de 12 anos sofram com verminoses. Os irmãos Jeannifer e Gabriel lembram já ter feito parte dessa estatística – assunto que deixa o menino constrangido: “Precisa mesmo falar como é?! Ai, é nojento”.
Outro problema é a leptospirose, transmitida pelos ratos que são atraídos pelo descarte irregular dos resíduos das latrinas. Ainda que em 2015 apenas um caso tenha sido confirmado, Bastiani diz que “a leptospirose é uma doença de boa evolução. Em muitos casos, as pessoas se recuperam e nós nem chegamos a atender.” O problema se agrava na época de enchentes, quando a doença se espalha rapidamente.
De acordo com estudos do Instituto Trata Brasil – organização voltada para a educação sobre saneamento –, doenças decorrentes da falta de tratamento e coleta de esgoto, como diarreias, afetam a capacidade imunológica, desencadeando alergias respiratórias, intestinais e de pele, que vão permanecer com essas crianças por muito tempo.
Em 2013 foram notificadas mais de 340 mil internações por infecções gastrointestinais no país, segundo o Ministério da Saúde. “No mundo todo comprovou-se a ligação entre a falta de tratamento de esgoto com doenças como verminoses, alergias de pele, leptospirose, hepatites etc. Isso é ainda mais grave em crianças pequenas, com menos de 5 anos, atingidas de forma mais violenta por esses casos”, explica Édison Carlos, presidente-executivo do Trata Brasil.
O custo médio de uma internação por infecção gastrointestinal no Sistema Único de Saúde (SUS) é de cerca de R$ 355,71 por paciente, ou seja: investir em saneamento básico é investir em saúde. “As obras de saneamento nunca são vistas como prioritárias pelos governos. Se fala em construir ponte, estrada etc., mas o tratamento do esgoto deveria vir antes de tudo, já que impacta na vida de muitos”, reflete Carlos. “Desde os anos 1970, o Brasil priorizou o acesso à água potável e deixou o saneamento em segundo plano. O problema é que uma coisa implica a outra. Você recebe água em casa e 5, 10 minutos depois ela já virou esgoto. A contaminação é cíclica”, completa.
Nem os ricos têm esgoto tratado
Nos últimos 15 anos, a moradora Neusa afirma ter testemunhado uma mudança até então inimaginável. Originalmente ocupado por índios guaranis, o bairro sempre foi uma área pobre. Neusa é ela própria um exemplo. Criada pela irmã e pelo cunhado em Canoas, cidade vizinha a Porto Alegre, aos 15 anos, desentendeu-se com a família e saiu de casa, arranjando empregos para tentar se manter. Tentou voltar anos depois, mas sua irmã havia rompido definitivamente com ela. Aí começava sua vida na ilha: o pai, que já morava no local, buscou-a. Desde então, nunca mais saiu dali.
Mais recentemente, os ricos da região metropolitana passaram a erguer casas de veraneio na parte sul da Ilha, acentuando o cenário de desigualdade. Lá, as margens dão lugar a trapiches com atracadouros para lanchas e jet-skis, pátios com piscinas e playgrounds. As construções são imponentes, com dois andares e muros altos. “Eles começaram a chegar, compraram terrenos e construíram umas casas lindas ali pra baixo. Somos nós na nossa e eles na deles”, lembra Neusa.
Hoje, as casas não são apenas de veraneio, e muitas pessoas residem no local. Mas mesmo na parte sul, onde ficam as mansões, não há rede de esgoto. A diferença é que os moradores possuem mais recursos para a instalação de fossas sépticas, construindo sistemas com menor risco de poluição. “Esse fluxo de moradias de alta renda tem a ver com um forte investimento do mercado imobiliário, que focou muito aquela área. Houve a criação de um discurso de prazer relacionado àquela área. ‘Venha morar perto da natureza’; ‘Descubra um novo modo de viver’; ‘Aproxime-se do rio’. Assim, essas pessoas vêm se instalar em um local sem infraestrutura, mesmo que tivessem condições de adquirir imóveis em outras partes da cidade”, explica a arquiteta e urbanista Ecléa Pérsigo Morais Mullich, professora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e autora de dissertação sobre a ocupação de alta renda na Ilha Grande dos Marinheiros.
Fernando Meinhardt, ex-atleta de remo, mora no lado sul há dez anos. Ele conta ter comprado o terreno de um posseiro em 1997 por cerca de R$ 1.000 e uma geladeira. Assim como seus vizinhos, Fernando construiu a fossa de casa por conta própria. Para ele, vale a pena residir ali. “Aqui tem muita comodidade, perto do centro, perto dos clubes náuticos, posso praticar esportes. Só é ruim quando tem enchente, porque aí o banheiro não funciona.” Atualmente a parte sul está bem valorizada, há terrenos à venda por até R$ 1 milhão. Nessa mesma região, Elisabeth Prates tem um comércio. Ela conta que não avista muito os vizinhos: “Eles saem cedo e só voltam à noite. E consomem aqui mais no final de semana, compram carvão e bebidas”.
Aos da cidade, universalização; aos ilhéus, remoção
Segundo o Dmae, o plano é universalizar o acesso à rede de esgoto na cidade até 2035. E mesmo que o departamento afirme que a região das ilhas esteja incluída, não existe no momento nenhum projeto concreto para a Ilha dos Marinheiros, informou o órgão à reportagem. A justificativa é que o solo da ilha é raso e úmido e o terreno, altamente irregular, complicando a instalação dos canos. Além disso, uma nova ponte a ser construída sobre o rio Guaíba deve levar à remoção dezenas de famílias. Isso justificaria a inação do Dmae, segundo a gerente de Planejamento, Airana do Canto.
Fruto da parceria do governo federal com a Prefeitura de Porto Alegre, a construção terá uma extensão de 7,3 quilômetros e as obras já foram iniciadas pelo consórcio das empresas Queiroz Galvão e EGT Engenharia. A obra, orçada em R$ 649,6 milhões, tem previsão de duração de três anos. O Departamento Nacional de Infraestrutura Terrestre (Dnit), órgão responsável, garante que as novas moradias terão toda infraestrutura necessária.
Porém, as 500 famílias que convivem com a ameaça de remoção – mais da metade da população da Ilha Grande dos Marinheiros – não estão tão certas disso. Os moradores estão apreensivos pela falta de informação. “Ninguém comunica o povo, ninguém diz nada sobre isso”, relata Mara Silva da Cruz, que mora na ilha desde que nasceu, há 41 anos. Nos últimos meses, ela acorda durante a madrugada com o barulho das estacas sendo instaladas nas águas. Ainda que o som esteja cada noite mais próximo, ela não sabe quando será removida. As últimas reuniões entre moradores e o Consórcio Ponte do Guaíba, responsável pela remoção, foram realizadas em 2014, assim como o cadastro das famílias. A previsão era que as primeiras fossem removidas no final de 2015. Contudo, o plano foi adiado para o primeiro semestre de 2016, e os reassentamentos serão feitos de acordo com o andamento da obra, segundo a assessoria do Dnit.
Esse planejamento, porém, passa ao largo da população. Cleusa do Amaral mora com o filho e o marido nos fundos do armazém da família e, no momento, não sabe onde seu comércio será realocado. “Não queria sair daqui. Mas é a evolução da ilha, né? As coisas têm mudado. Nós vamos sair daqui e mais um monte de gente junto”, conforma-se. De acordo com o Departamento de Habitação de Porto Alegre, a prefeitura acompanha a remoção por meio da Secretaria de Direitos Humanos do município. Contatado pela reportagem, o órgão não se manifestou.
Conforme o Dnit, as novas moradias terão cerca de 40 metros quadrados, abastecimento de água e rede de esgoto. Porém, Airana do Canto esclarece que o sistema que será adotado ainda é o de fossas sépticas, com o complemento de um filtro. Algo considerado por ela mesma “adequado, mas provisório” – e que não possui data para ser ligado à rede de coleta e tratamento.
“Congelar a população”
Por outro lado, as famílias que não serão removidas ainda terão de aguardar em torno de oito anos para que os estudos necessários à construção de uma rede de coleta sejam enfim iniciados. “Pra coleta de esgoto, a gente ainda precisa fazer um estudo de qual processo será adotado ali, porque é uma área muito baixa. A gente teria que compatibilizar com o sistema de drenagem e com a população que realmente vai ficar ali, mas ainda não tem definições claras”, explica Airana.
Cerca de 400 famílias permanecerão nas mesmas residências, mas ao longo de oito anos o cenário certamente pode modificar-se, diz Rafael Passos, vice-presidente da seccional gaúcha do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB-RS), que considera “absurdo” o prazo de oito anos. “Quando se solicita a instalação de serviços em uma edificação nova em um bairro regular, não se trabalha com prazos absurdos de até oito anos. Os prazos estabelecidos, e quase nunca cumpridos, para atender um caso e outro não se justificam”, reflete.
Para o diretor de Gestão e Desenvolvimento do Dmae, Alfredo Dorn, é preciso “congelar a população” na área da ilha para que se possam planejar com mais eficácia as ações de saneamento. “Para enfrentar o problema, essa população da ilha, no momento, tem que ser congelada, porque ela não é uma área residencial proposta no Plano Diretor”, diz.
A urbanista Ecléa rebate: “Isso não existe. A ocupação é constante, não existem modos de freá-la só por causa da vontade do poder público. Estamos falando de pessoas aqui. Pessoas, no caso da população pobre, que não estão nesse lugar por opção. O planejamento tem que começar a abordar a dinâmica cultural”.
Aqui é o meu lugar
“Morar perto do rio?! É bom, é bonito”, afirma Kainã.
Planejamentos e cadastros, obras e dinâmicas urbanísticas, políticas públicas de saneamento – para as crianças, isso é tudo muito abstrato, ainda que molde suas vidas de forma profunda. Para elas, o que vale é o pé no chão e a sensação de saber ter um lugar para si. Por trás de um sorriso tímido, a pequena e quieta Diuly diz que gosta do lugar. Já para Ketlyn, “se o rio fosse limpo, a ilha ia ser melhor”. Questionada pela reportagem sobre “o que é uma ilha?”, ela revela sua experiência por meio de uma resposta singular: “Ah, uma ilha é um lugar cheio de gente”.
Indagada se quer continuar na ilha, Zilá não sabe o que dizer. Ensaia desejos de fuga – “Vão tirar a gente, né?, por causa da ponte. Gostei, quero sair daqui” –, mas logo se arrepende deles. “Ah não sei, na verdade tem bastante gente que eu gosto. Meu avô morreu aqui.” Já Gabriel está decidido: “Eu adoro morar aqui. Eu nasci na ilha, né? Aqui é o meu lugar.”
A lei que foi por água abaixo
A região metropolitana de Porto Alegre possui três rios – Sinos, Gravataí e Caí –, que estão entre os dez mais poluídos do Brasil, segundo dados do Índice de Desenvolvimento Sustentável do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). As águas desses rios desembocam no delta do Jacuí, formando o lago Guaíba – que, embora seja chamado de “rio”, é classificado como lago e banha os municípios de Porto Alegre, Eldorado do Sul, Guaíba, Barra do Ribeiro e Viamão. O Guaíba é um dos principais lagos poluídos do país.
Para proteger os rios gaúchos, em 1994 foi criada uma lei que prevê a criação de três agências públicas – uma delas na bacia do Guaíba – para planejar a distribuição de recursos e as ações ambientais. Porém, nenhum governo cumpriu a lei até hoje. A Secretaria Estadual do Meio Ambiente (Sema) esquiva-se afirmando que a criação dos órgãos implicaria a cobrança pelo uso da água da região, além de forçar a criação de um cadastro de usuários e a implantação de um sistema de outorgas. São ações que não possuem nem prazo para sair do papel, como admite Elaine Regina Oliveira dos Santos, do Departamento de Recursos Hídricos da Sema: “Estes condicionantes ainda não foram plenamente implementados e são fundamentais para viabilizar o previsto na Política Estadual de Recursos Hídricos”.
Foto: Reprodução/Agência Pública
Fonte: Agência Pública