Por Mauricio Mulinari.*
O governo Dilma, ainda antes do acirrado processo eleitoral de 2014, já indicava que viveríamos um novo período da política econômica brasileira – é importante lembrar que o ajuste fiscal já estava na pauta de final de mandato do antigo Ministro da Fazenda, Guido Mantega. Entretanto, foi com a indicação para o cargo de Joaquim Levy, ex-empregado do Bradesco e imagem e semelhança do sistema financeiro, parasitário e ultraliberal, que tivemos a confirmação clara desta nova fase. O importante para a equipe econômica do governo deixou de ser estimular o desenvolvimento para, em contrapartida e em detrimento do próprio desenvolvimento, reestabelecer, de maneira equivocada, o superávit primário como cláusula pétrea da política nacional, abalado pelo déficit de 0,6% do PIB encontrado nas contas públicas em 2014.
Superávit primário entendido como o esforço da economia para pagar juros da dívida pública, conceito advindo diretamente do período de neoliberalismo radical e, infelizmente, mantido intocado durante todos os anos dos governos Lula e Dilma. Ou seja, ao invés de reservar este grandioso recurso para investir em obras de infraestrutura, fazer política industrial de qualidade ou turbinar os programas sociais, o Brasil vem destinando importante parcela de sua riqueza para o rentismo, que não produz sequer um alfinete.
Nada mais adequado a uma elite que tem origem na aristocracia agrária escravocrata, se transforma no início do século XX, em parte,em burguesia industrial débil e passa um longo período de ditadura militar e de redemocratização, tendo como marco o Plano Real, em processo de consolidação como burguesia financeira, parasitária do Estado Nacional através do Sistema da Dívida, fartamente denunciado pela lúcida coordenadora da Auditoria Cidadã, Maria Lucia Fatorelli.
A contrapartida desta elite, que desde o Brasil Colônia tem horror ao risco de investir e revolucionar as forças produtivas nacionais,é a manutenção da classe trabalhadora na mais absoluta condição depobreza. O significado disto é claro: em uma economia capitalista, onde a exploração do trabalhador é condição indispensável para o estabelecimento das taxas de lucro, a existência de uma elite estruturalmente parasitária, capital eminentemente improdutivo, pressupõe o aprofundamento constante da exploração dos trabalhadores.
A redução da pobreza, que de fato ocorreu durante os governos de Lula, principalmente no segundo mandato, sequer arranhou esta estrutura, forjada para moer gente e extrair elevadas taxas de lucro, sobretudo, lucro financeiro. Nunca se lucrou tanto no Brasil, nunca o sistema financeiro lucrou tanto. É verdade, nunca a classe trabalhadora ganhou tanto.Passou até mesmo a se sentir “classe média” ou “microempreendedora individual”, abandonando perigosamente sua consciência de classe trabalhadora. De qualquer maneira, 79% dos novos empregos criados no Brasil durante todos os anos de expansão da economia não recebem mais que 2 salários mínimos, ainda muito longe do salário mínimo necessário calculado pelo DIEESE, hoje em R$ 3.299,66. Mudamos muito, comparado com a Idade Média representada pelos governos FHC e anteriores, mas praticamente nada comparado com nossa posição subordinada na economia global, herança do nosso passado colonial.
Terminando esta breve viagem histórica, que sai do Brasil Colônia e chega ao Brasil da “Classe Média”, mudando, de fato, muito pouco, voltemos ao ajuste. Para que serve?Reconstituir o bolsa-banqueiro, que repassa mais de R$ 200 bilhões por ano para em torno de 20 mil famílias. Que ajuste é esse que corta nos benefícios trabalhistas, nos gastos com programas habitacionais, nas grandes obras de infraestrutura e nas verbas de ministérios como o da Educação e da Saúde e, pari passu, continua aumentado as taxas de juros, que remuneram diretamente a nossa burguesia rentista? É, obviamente em uma sociedade de classes, um ajuste com clara natureza de classes. Corta do lado do povo trabalhador e repassa para o dos banqueiros, industriais, comerciantes,latifundiários e capitalistas internacionais, todos reunidos nesta festa que se chama Sistema da Dívida. Lucros privados, prejuízos da classe trabalhadora, disso que realmente se trata o ajuste.
O mais impressionante é que depois de quase 7 meses do equivocado ajuste, o impacto recessivo na economia, provocando considerável queda na receita do Estado, e o aumento vertiginoso das despesas via aumento das taxas de juros e repasses ao sistema financeiro, ocasionando aumento de gastos, provoca a constatação de que o “ajuste fracassou”. Ou seja, se estruturalmente o superávit primário, ao alimentar o rentismo, já é péssimo para a economia nacional, o próprio tecnicismo que propõe salvar o superávit é incapaz de fazê-lo. Resultado: a meta de superávit definida no início do ano, de 1,1% do PIB, não tem perspectiva alguma de ser atingida e acaba de ser revisada para 0,15%.A perspectiva da equipe econômica do governo, inclusive, é que se corre o risco de registrar novo déficit em 2015. Ou seja, a despeito do elevadocusto econômico, social e político, a nociva engenharia financeira do Ministro tecnicista Levy não funcionou.
Não funcionou, fundamentalmente, pelos elementos estruturais ditos acima, tendo como peça central o Sistema da Dívida. Mas, também naufragou pelas opções na própria condução ministerial. Não se considerou que existe algo chamado política, e política de baixo nível, no referido caso.Precisa negociar com a “base aliada”, nome bonito dado a um grupo que defende apenas seus interesses, não perdendo em nada neste quesito para a base oposicionista. Neste contexto de crise política nacional, o que nosso Congresso extremamente conservador e recheado de oportunistas faz? Barra ou dificulta todas as medidas que minimamente tocariam no lucro das empresas e nas grandes fortunas – como o fim da desoneração da folha de pagamentos e a repatriação de recursos não declarados enviados ao exterior, por exemplo –, mas aprova com velocidade o que atinge a classe trabalhadora e aponta na direção de uma reforma trabalhistacom perda de direitos, pauta última e mais desejada pela burguesia brasileira, vide o PL 4330.
O ajuste em si mesmo não se sustenta. Passado meio ano, ninguém mais hesita em afirmar que o fracasso está dado. Não irá cumprir o que se propôs. A crise mundial do capital é muito mais grave do que o Ministério imagina. Qual a saída dentro deste panorama político e ministerial? Aprofundar o ajuste. Já se anuncia um novo corte de R$ 8,6 bilhões, ampliando o proposto no início do ano (quase R$ 70 bilhões) e ainda não realizado em sua totalidade. O que é pior, o último relatório de receitas e despesas primárias já apontou que o ajuste durará até o fim do mandato de Dilma.Ajustar o fracasso com mais ajuste, a isso se resume a política econômica atual. Todo resto é perfumaria barata e pouco relevante.
Mas é preciso refletir, o ajuste é realmente um fracasso? Para o governo, obviamente que sim. A popularidade da presidenta está na lona, uma parcela em função do golpismo midiático, mas uma parcela considerável na conta do conservadorismo econômico do próprio governo. A tendência, dentro desta capitulação completa para a burguesia financeira, é só de piorar. Para a classe trabalhadora, o ajuste é um terror. Não apenas pelo seu caráter classista, mas também pelo horizonte político que se abriu. A burguesia, ao sentir que estava novamente no controle pleno da economia e do Estado – vide a composição ministerial com Kátia Abreu, Armando Monteiro, Gilberto Kassab, Eduardo Braga e, principalmente, Joaquim Levy em cargos estratégicos do executivo –, finalmente se sentiu confortável para avançar sem nenhum pudor para cima dos direitos dos trabalhadores. Tirou o ódio de classe que sempre existiu no conforto de seus lares e ambientes exclusivos e, com atuação decisiva da grande mídia, jogou-o para as ruas.
Por fim, aqueles que se beneficiam com o fracasso do ajuste e, ainda mais, com o ajuste do fracasso, não poderiam ser outros: a grande burguesia nacional e internacional, irmãs siamesas que nunca deixaram de dar as cartas, mas agora dão com maior agressividade. Estes ganham sempre e, na crise, caso não encontrarem resistência dos movimentos populares organizados, ganham em dobro.Garantem o lucro de hoje e firmam o terreno para reforçar a exploração de mais uma geração da classe trabalhadora no futuro.Sejamos nós, trabalhadores, pessimistas ou otimistas, seja o ajuste de sucesso, fracasso ou fracasso em dobro, é para estes e para isto que se presta o atual, e mal fadado, ajuste fiscal brasileiro.
* Economista do Dieese/SC
Foto: Robson Silva
Fonte: DIEESE