Por Caio Borges. A 7ª Cúpula dos Brics (bloco formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), realizada há uma semana em Ufá, na Rússia, mostrou mais uma vez que o bloco está querendo se provar como muito mais do que uma amálgama de discursos, estatísticas e intenções. Se tomados apenas por seus números, os Brics já valeriam um olhar atento, afinal eles respondem por 30% do território, 43% da população e 21% do PIB (Produto Interno Bruto) globais. E mesmo que o desempenho da economia de seus membros deixe a desejar, o bloco foi responsável por 40% do crescimento econômico mundial em 2014.
A cooperação entre os BRICS cobre atualmente uma variedade de temas, mas sem dúvidas o que se sobressai é a agenda econômica, muito em função do progresso substancial atingido nessa frente com a criação do CRA (Arranjo Contingente de Reservas) e do NBD (Novo Banco de Desenvolvimento). O CRA é um fundo de reservas que vem a se somar à rede de proteção internacional existente. Destina-se a aliviar problemas temporários que os membros possam ter em suas balanças de pagamento. Já o NBD, ou Banco dos Brics, é uma instituição financeira multilateral cuja missão é prover fundos para projetos de infraestrutura e para o desenvolvimento sustentável.
O NBD é uma instituição que merece uma análise mais aprofundada porque a partir dela é possível pôr a descoberto a contradição mais marcante que acomete os Brics: por um lado, o bloco tem sido relativamente bem sucedido em fomentar questionamentos sobre a (má) distribuição de poderes na ordem econômica internacional (“justiça entre os Estados”); por outro, pouco tem contribuído — ou mesmo tem sido reativo — para repensar modelos de desenvolvimento vigentes no que diz respeito a sua abertura à participação efetiva da sociedade, à democratização das políticas de desenvolvimento e ao respeito aos direitos humanos e ao meio ambiente (“justiça dentro dos Estados”).
Durante a Cúpula da Rússia, foi assinado o memorando de entendimento entre o NBD, o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) e quatro outros bancos nacionais de desenvolvimento dos países do bloco. Nele se diz que a cooperação entre as instituições de financiamento ao desenvolvimento dos cinco países será guiada pelos princípios da igualdade, benefícios mútuos, financiamento responsável, parceria e equilíbrio de interesses. Nada sobre transparência, direitos humanos ou construção de políticas a partir das perspectivas daqueles que são mais impactados pelos investimentos realizados por tais instituições.
Uma carta aberta assinada por mais de 50 organizações de vários países e entregue aos governos dos Brics antes da divulgação da Declaração Final pediu que o NBD não repita os erros do passado. Esses erros são tanto os dos “outros”, como as falhas Banco Mundial que levaram mais de 3,4 milhões a sofrerem remoções forçadas, como os “nossos”, a exemplo das violações de direitos humanos nos projetos financiados pelo BNDES, como trabalho escravo e falta de consentimento prévio de povos indígenas.
No Brasil, cabe ao Congresso aprovar acordos bilaterais ou multilaterais firmados pelo corpo diplomático do governo, para depois seguir para a ratificação da Presidência. Durante o trâmite no Legislativo, os parlamentares podem levantar questões relacionadas ao objeto do tratado por meio de debates nas comissões (especialmente a de Relações Exteriores) ou pela proposição de emendas, cláusulas interpretativas e ressalvas. Mas nada disso aconteceu. O NBD e o CRA passaram pelo Congresso em velocidade incomum para matérias de tal complexidade e relevância. Isso destoa, por exemplo, do papel exercido pelo Legislativo na apreciação de mais de uma dúzia de acordos bilaterais de investimento firmados pelo Brasil na década de 90. Naquela ocasião, os prós e contras dos tratados assinados pelo Executivo foram amplamente debatidos pelos parlamentares.
A atuação convergente dos dois poderes para a aprovação em tempo recorde do NBD, além de enfraquecer nossa democracia, mostra que o Brasil ainda reluta em assumir seu devido papel na ordem mundial. Quando um compromisso internacional nos impõe mais obrigações que direitos, como era o caso dos acordos bilaterais, nossas instituições representativas se levantam contra as “imposições” vindas de “fora”.
Mas quando é hora de assumirmos deveres perante os direitos fundamentais daqueles que poderão sofrer com nossa crescente projeção internacional, o Brasil mostra-se hesitante. Podemos, e devemos, fazer muito mais, e espera-se que, no NBD, o Brasil honre com um dos princípios constitucionais que rege suas relações internacionais (Art. 4°, II) – o da prevalência dos direitos humanos.
* Caio Borges é advogado do Projeto de Empresas e Direitos Humanos da Conectas Direitos Humanos, organização internacional não governamental, sem fins lucrativos com sede em São Paulo – SP. É mestre em direito e desenvolvimento pela FGV Direito SP.
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Fonte: Opera Mundi