Depois da popularização do reality show Ru Paul’s Drag Race, uma nova geração se senta à vontade para confrontar preconceitos e se expressar artisticamente com perucas, purpurina e muita maquiagem.
Texto e fotos por Cintya Ramlov, Manuela Tecchio e Maju Gonçalves.
Da cabine do DJ, Agatha Triste, uma drag queen com maquiagem monocromática e farta barba descolorida, agita a multidão na pista. “Tá todo mundo aqui de parabéns, porque qualquer viado que coloca uma peruca nesse país homofóbico já é um herói”. As perucas na pista vibravam, misturando purpurina ao ar esfumaçado da boate. Ao lado de Agatha, Mawu, sua colega na dupla de DJs The Genderz, já havia trocado o arranjo de cabeça com véu e flores por uma peruca preta curtinha. Halessia Rockfeller e Bea Velasco posavam ao lado das DJs com suas longas mechas loiras, enquanto na pista outra drag de cabelo curto arrancava as calças de seu smoking durante uma performance, deixando as pernas alongadas pelo salto alto à mostra.
Plurais em estilo, as drag queens tomam as ruas do Centro da Florianópolis em noite de festa drag. Montadas a partir de tutoriais online de maquiagem e episódios do reality show estadunidense Ru Paul’s Drag Race, elas desfilam, performam e batem o cabelo como uma expressão viva de que os padrões e estereótipos de gênero e a estética corporal da sociedade precisam ser contestados. Para Bea Velasco, “a arte drag vem pra fazer uma critica à sociedade e quebrar toda forma de padrões que ela impõe, principalmente com gênero. Quebrar todos esses paradigmas, preconceitos – o machismo, a misoginia, o sexismo. A drag vem para desconstruir.”
A dupla The Genderz leva essa desconstrução para as personagens Agatha Triste e Mawu Robichaux’s, interpretadas pelo designer Tiago Franco e pelo maquiador Tonny Marquis. Para a Kai-Kai, festa drag produzida por Franco, a preparação começou às 17h. Mawu, toda vestida de preto e com a touca já escondendo os cabelos, começa a maquiagem andrógina e conceitual, fugindo do padrão mais tradicional e conhecido de drag. O rosto é pintado de preto e branco em formas geométricas. O olho ganha lentes azuis muito claras e enormes cílios pretos. Depois de pronta, começa os trabalhos em Agatha. Ela dá a sugestão de fazer o rosto branco – acompanhando a barba descolorida – com apenas um círculo preto no meio. Durante a produção, corre para se olhar no espelho do quarto e grita: “bicha, tombei!”.
Mas a discussão de gênero não está presente só no look. Elas agora estão gravando em estúdio e a ideia da dupla é a de “duas drags com um live de música eletrônica, mais precisamente a House Music, berço da culturaclubber, da libertação sexual dos gays nos anos 80, onde a cena de ‘montação’ surgiu. Não necessariamente drag, mas da livre expressão através de vestimentas pouco usuais que discutem o gênero.”
Fazer uma “montação” de drag queen não é simples. Muitas horas são gastas vendo tutoriais de maquiagem e cabelo na internet – além de bastante dinheiro. Maquiagens, roupas, perucas e acessórios custam caro e são difíceis de encontrar. “Já cheguei a gastar 300 reais em só uma montaria”, conta Mawu. Como a maioria das dragsbrasileiras, Layzza compra suas maquiagens em lojas de festa ou pela internet, mas ainda reclama da falta de oferta dos itens no comércio da cidade.
As Genderz ainda gastam mais do que recebem com as personagens. A principal fonte de renda das duas vêm de seus trabalhos formais. Bea Velasco destaca que, principalmente em Santa Catarina, as boates ainda dificilmente contratam uma queen apenas pela performance. “Pra você conseguir ganhar algum dinheiro, você precisa ser drag DJ, que é o que as casas preferem porque acabam ganhando duas coisas: uma DJ e uma drag performer. Geralmente eles preferem isso porque, se forem contratar um DJ e uma drag, sai muito mais caro pra eles.”
“Ser drag dói”, diz Agatha Triste. Para dar corpo às personagens, os meninos precisam aguentar a dor no pé que o salto provoca, a fita que pressiona a cabeça para segurar a peruca no lugar e as roupas apertadas, além dos enchimentos e da maquiagem. “É dolorido e um pouquinho chato. Sente dor, sim, mas pra mim é válido, compensa”, completa Layzza, que se monta desde 2010. Além da dor, muitas queens demoram mais de seis horas para ficarem prontas e nem sempre conseguem comer direito durante o processo, para não estragar a maquiagem. O jeito é fazer uma jantinha reforçada antes de começar a produção.
Normalmente, quando alguém se monta pela primeira vez, existe a colaboração de uma drag mais experiente. A drag mother explica os passos e processos da maquiagem, ajuda com a roupa e os detalhes finais. Mas a criação da personagem é sempre muito pessoal. Layzza lembra que desde sempre foi muito independente: “Eu lembro que quando eu comecei, minhadrag mother me montou. Mas na segunda vez eu já quis me montar. Eu fui que nem uma palhaça na primeira vez que me montei. Fui. Com aquela maquiagem horrorosa. Mas fui. E assim eu fui aprendendo.”
Na festa que o Zero acompanhou, Layzza foi a drag mother de Mia Murder, que se montou e performou pela primeira vez naquela noite. Seguindo os conselhos de Layzza, Mia buscou as próprias referências – e sua drag, mais sombria emoderninha, ficou visualmente bastante diferente de Layzza, de um glamour mais tradicional. Layzza e Mia participaram do concurso de lip synching (dublagem) da festa separadamente, e foram as duas finalistas. Mia ganhou, e Layzza jura que só ficou orgulhosa.
Os motivos para uma pessoa fazer drag e encarar a dor, o custo financeiro e os olhares na rua são variados. Para Mia Murder, o principal é a possibilidade de se expressar artisticamente. Ela conta que durante a performance, na balada, sentiu-se poderosa e confiante para encarar qualquer desafio – mesmo out of drag (quando não está montada).
Estar em cima de um palco rodeada de uma multidão em êxtase e passar a noite tirando fotos com outras drags fabulosas fez muito pela sua autoconfiança. Mas, para Mia, sair na noite montada também é um ato político. Ela lembra inclusive que sua militância e seus estudos das causas de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transsexuais, Transgêneros e Travestis (LGBT) ajudaram a compreender melhor as drags, antes de decidir se tornar uma. Para Mawu Robichaux, “Sendo drag queen você já tá meio que protestando contra o preconceito, porque se montar é você ser uma mulher por uma noite, então você sofre com isso, você vê de uma outra forma o mundo.” Agatha também vê caráter político em seu trabalho. “Mesmo que algumas drags não tenham se dado conta disto, é enfrentamento, discussão de identidade de gênero, padrões e comportamentos normativos. Tenho essa consciência e meu trabalho é focado nisto. É arte política, brincar com lúdico e trazer questionamentos através da arte.”
Bea Velasco lembra que as queens contribuem para “mostrar que não existe só o masculino e o feminino que a sociedade convenciona. As drags também representam e dão visibilidade para a questão trans, e ainda lutam pela liberdade de expressão para fazer tudo isso.” Fiona, maquiadora e drag queen, destaca que a popularização das drags entre LGBTs contribuiu para diminuir o machismo e a misoginia dentro do meio. “Teve uma vez que a gente tinha se montado pra ir numa festa e uma dasdrags precisava sacar dinheiro à noite. E ela tava morrendo de medo! Pensei: ‘nossa, as mulheres sentem esse medo todo dia, sempre que precisam sair à noite andando’. Como é importante que nós, como homens, mesmo travestidos, consigamos
nos colocar no lugar delas. Eu acho que a gente tá num momento de luta contra todos os tipos de preconceitos. A gente tá falando de direitos humanos”.
Para Mawu, cuja drag persona traz referências de religões de matriz africana, ainda há espaço para quebrar preconceitos religiosos e raciais. “Meu drag serve também pra valorizar o afro, valorizar essa nossa cultura, porque o Brasil é muito afrodescendente e precisaria ter mais orgulho disso. A primeira ideia era não mostrar uma rica européia. Eu queria mostrar uma personagem étnica.”
O boom da série Ru Paul’s Drag Race – uma competição com provas de roupas, maquiagem, dança e lip synching – foi decisivo para a popularização das drag queens no Brasil. Mia Murder conta que dentro do meio LGBT as drags ficavam um pouco de lado, e o sucesso da série acabou abrindo um espaço para discussão. Bea Velasco pondera – mesmo assumindo que Ru Paul é uma de suas inspirações – que “essa popularização é uma coisa que ele trouxe, mas talvez não dure muito tempo. Hoje qualquer gay já quer se montar, já quer colocar uma peruca, quer sair batendo cabelo e muitas vezes a arte drag é desvalorizada.”
Ainda assim, ficou visível durante a festa acompanhada pelo Zero que muitas drags estão surgindo e se sentindo mais confortáveis para se montar. Fiona considera que “colocar isso na televisão, em canal nobre, no Netflix e fazer isso rodar pela internet faz com que a gente comece a falar muito melhor e muito mais abertamente sobre essas questões”
Fonte: Zero UFSC