Por Camila Nobrega. Na porta de uma das casas em construção no condomínio Esperança, construído pela cooperativa de habitação de mesmo nome, na Colônia Juliano Moreira, Zona Oeste do Rio, três galochas pretas sujas de barro anunciam que domingo, ali, é sinônimo de trabalho intenso. Na sala ainda sem móveis, três rostos sorridentes aguardam para uma conversa. Maria do Carmo Martins, a Carminha, Maria Ribamar Figueiredo Freitas e Vanilsa Queiroz Motta começam rapidamente a falar sobre o projeto da construção do local, enquanto deixam o peso da exaustão chegar aos ombros: “Foram quatro anos de muito trabalho, muita entrega e pouco descanso, mas eu tenho orgulho de dizer que ergui cada pedacinho da minha casa. Vou batalhar muito para fazer desse lugar um canto especial de viver”, contou Ribamar, que é manicure e cuidadora de idosos.
Nos últimos quatro anos, além dos seus empregos, de segunda a sexta, no salão de beleza e em casas de idosos, ela doou 17 horas de trabalho, todas as semanas, para que o projeto coletivo do conjunto habitacional Esperança se tornasse realidade. Por parte da família, só teve a ajuda da neta adolescente, que irá morar com ela. Contou mesmo foi com a solidariedade que surgiu entre os futuros e as futuras moradoras/es.
Junto com Maria do Carmo e Vanilsa, Ribamar faz parte de um grupo de 70 famílias que tem breve chegarão ao local de mala, cuia e muitas ideias. Assim que o habite-se for liberado, elas se mudarão para o condomínio Esperança, inteiramente construído pelos próprios moradores e moradoras – na verdade, a maioria foi feito por moradoras, mulheres chefes de família, como apontou Vanilsa. “Se minha casa agora está de pé e bonita foi pelo meu trabalho, deixando de lado minha vaidade e a diversão nos últimos anos (conta ela, mostrando unhas sujas de graxa, cabelos presos), e pela ajuda da mulherada. Claro que os homens também ajudam, mas o Esperança está nascendo com muito trabalho duro das mulheres, daquelas que são solteiras, como eu, e também das casadas, mas sem apoio dos maridos. Fomos nós que pegamos no pesado.” Vanilsa, que trabalha como assistente administrativa, está se mudando da Taquara para o novo condomínio na Colônia Juliano Moreira, onde deixará de pagar o aluguel de R$ 420 por um quarto e sala.
Tijolo por tijolo, as casas foram subindo nos últimos quatro anos, em sistema de mutirão. Cimento, fiação, acabamento. Tudo feito pelas mãos dos futuros donos e donas das casas, a maioria delas antes sem experiência no assunto. O conhecimento surgiu também do coletivo.
O Esperança será o primeiro conjunto habitacional inaugurado no Rio de Janeiro com recursos do Programa Minha Casa Minha Vida Entidades, criado em 2009 pelo governo federal e ainda muito pouco conhecido na maior parte dos estados. Ligado à Secretaria de Nacional de Habitação do Ministério das Cidades, com recursos da Caixa Econômica Federal, o Entidades nasceu depois de muita luta dos movimentos sociais pelo direito à moradia, com o objetivo de tornar este direito acessível às famílias organizadas por meio de cooperativas habitacionais e associações. Na prática, a proposta é fomentar a autogestão e possibilitar que os próprios moradores façam parte de todo o processo de planejamento e construção dos conjuntos habitacionais, diferentemente do que ocorre na linha tradicional do programa Minha Casa Minha Vida.
As famílias beneficiadas têm renda mensal entre 0 e R$ 1.600. A contribuição mensal é calculada de acordo com a renda que foi declarada no início da construção e será iniciada no momento da mudança para a nova casa. Todos e todas continuarão fazendo os pagamentos mensalmente, durante os próximos dez anos.
Década de lutas
O trabalho para colocar o condomínio Esperança de pé começou dez anos atrás, com reuniões. Todos os moradores se inscreveram com o objetivo de lutar por uma casa própria e não podiam faltar às assembleias sem justificativa. Em 2011, os recursos para o projeto foram liberados. Em vez de alívio, veio outra parte bastante dura: o imenso investimento de cada família para construir as casas, como conta Jurema da Silva Constâncio: “São muitos os passos até se conseguir uma casa. Primeiro, anos de reunião antes de mobilizar os recursos, depois todo o esforço na construção e, por fim, o desafio de se manter tudo isso, depois que todo mundo já tem a chave de casa. A gestão coletiva é sempre desafiadora e difícil, mas sem dúvida traz qualidade de vida. Os moradores e moradoras escolheram cada material da casa. E cada um pôde escolher alguns detalhes, como azulejos, por exemplo, ou seja, pôde dar seu toque à moradia”.
Jurema é uma das lideranças do projeto. Ela é membro da União Nacional por Moradia Popular, movimento que encabeçou esta luta na Zona Oeste, onde foi criado o primeiro condomínio feito em sistema de autogestão, o Shangri-lá. Inaugurado há mais de dez anos, portanto bem antes da criação do Minha Casa Minha Vida Entidades, o Shangri-lá também surgiu da organização dos moradores. Uma favela de mesmo nome ocupava o lugar, que também fica na Colônia Juliano Moreira. Jurema morava lá, em uma casinha de madeira e, à época, trabalhava em uma casa de família. Nunca havia participado de movimentos sociais, até começar a ouvir sobre a luta por moradia, em grupos da igreja que frequentava. Percebeu que a rotina casa-trabalho nunca iria mudar, se ela não fizesse parte da mudança. Foi aí que entrou no movimento social, para não mais sair, especialmente porque o direito à moradia está no rol dos mais violados no país.
Já existem outros projetos em vias de aprovação pelo Minha Casa Minha Vida Entidades. Mas várias questões emperram a liberação de recursos. A Caixa Econômica, como a maioria dos órgãos federais, não se adaptou para lidar com cooperativas em vez de grandes empresas. Sendo assim, há muita burocracia para iniciar uma obra.
Os resultados dos projetos feitos de forma autogestionada são incomparáveis aos do Minha Casa Minha Vida tradicional, nos quais os apartamentos são feitos por grandes empreiteiras, de forma patronizada e impessoal. Assim tem sido os relatos onde o Entidades mais cresce, São Paulo. E assim também se pode observar na Colônia Juliano Moreira. As diferenças são gritantes e ficam ainda mais visíveis ali. Isso porque, a Prefeitura do Rio decidiu construir um conjunto habitacional no modelo convencional do projeto exatamente ao lado do Esperança.
Atrás das casinhas construídas pelos moradores, um prédio construído sob os padrões do Minha Casa Minha Vida tradicional chama atenção. Enquanto no Esperança uma caminhada revela famílias trabalhando em cada casa, fazendo o acabamento, o outro condomínio está vazio. Ele espera moradores e moradoras vindos de diversas partes do Rio de Janeiro, a maioria sem nunca ter se encontrado antes. Cada um pega sua chave e, pronto, está morando. Não há relação alguma com aquele território. Isso sem falar no prédio, feito sob um padrão que nunca mudou desde o projeto do BNH. Poderia ser ali, em Queimados, como é o caso do conjunto Valdariosa, ou em qualquer outro lugar.
Por outro lado, a sensação de pertencimento, de coletivo e solidariedade são exatamente os elementos que saltam aos olhos no conjunto Esperança. Em cada casa raramente havia apenas o futuro morador no período de construção e acabamento. A companhia de vizinhos e vizinhas para as tarefas era certa. Um dia terminando as janelas de um, outro dia terminando os azulejos da outra, em um terceiro envernizando as portas na casa de mais uma família. Assim foi. Nas ruas do condomínio, últimos ajustes sendo feitos. Mãe e filha, Simone e Juliete Pinto, de 42 e 24 anos, com uniformes azuis comprados por elas mesmas para a obra, separavam terra restante para montar uma horta. “Moramos em Curicica e não vemos a hora de nos mudar. Me preocupa a falta de água nessa região e a infraestrutura para outras coisas. Mas só de ter uma casa própria, sinto que valeu muito a pena tantos anos de trabalho e parte da juventude da minha filha doada para essa casa”, disse Simone.
Contrastando com o silêncio do prédio à frente, o Esperança já estava cheio de vida muito antes de ficar pronto, dando sentido à palavra que dá nome a ele. No refeitório comum, todos os dias há almoço garantido, em sistema de revezamento. Cozinhar também entra na contagem geral de horas doadas ao projeto. Cada um entra com uma cesta básica no início do mês. Assim, há comida para todo mundo que estiver trabalhando. E é gostosa.
No entanto, nem tudo são flores e vida. Às vésperas da inauguração, cada pessoa que contribuiu sente o peso de quatro anos de muito trabalho. Construção civil está longe de ser moleza. Dores nas costas, nos pés, problemas de saúde sem tempo de tratamento. São questões que surgem em função da quantidade de trabalho e da pouca experiência das pessoas com as obras para construção de uma casa, como contou Alfredo Sobral: “Todo mundo, homem e mulher, pega no pesado. Talvez houvesse uma forma de fazer este projeto que pudesse combinar de forma a não ser tão desgastante. Hoje, por exemplo, minha mulher está em reunião e eu fazendo junta.”
A pesquisadora Luciana Lago, professora do Instituto de Planejamento Urbano da UFRJ (Ippur) e considerada uma das principais referências sobre o Minha Casa Minha Vida Entidades, ressalta que há escolhas a serem feitas por cada grupo, ao receber os recursos que devem ser autogeridos: “Há grupos que gerem o montante, contratando outras cooperativas para fazer alguns serviços. Fica menos pesado para os moradores. Há casos excelente em São Paulo. Por outro lado, há também casos de conjuntos habitacionais que descaracterizam completamente o objetivo inicial do Entidades”.
Luciana Lago afirma a importância dos recursos destinados ao Entidades, que ainda são bastante escassos, somando algo em torno de apenas 1% em relação ao Minha Casa Minha Vida como um todo. No entanto, após anos de pesquisa sobre o tema, a pesquisadora aponta questionamentos em relação aos rumos que o programa vem tomando em alguns casos. Sob o argumento da necessidade de replicar o modelo em larga escala, surgem projetos que sequer são geridos por cooperativas.
Segundo ela, há recursos destinados ao programa que acabam na mão de grandes empreiteiras, por processos de contratação que muitas vezes são fomentados pelas próprias empresas, após se aproximarem de comunidades: “O problema não é a larga escala em si, claro que não, porque é preciso fazer muito mais projetos mesmo. A questão é do que se está abrindo mão. O Entidades nasceu de uma forma muito bonita, como consequência da organização de pessoas lutando por moradia e com a intenção de que os próprios moradores decidissem tudo sobre as futuras casas. A pressa em construir, construir não combina com a formação dessas pessoas, com a necessidade de tempo para que a autogestão seja real. Isso é uma equação que precisamos desvendar, mas sem atropelar, como está acontecendo.”
Há empreendimentos em regiões do Brasil como São Paulo em que conjuntos feitos com recursos do Entidades ficam prontos em menos de dois anos, do início ao fim do processo. Será que há de fato autogestão dos moradores e moradoras? Essa é uma das perguntas que está colocada aos movimentos sociais que acompanham este processo. “De todo modo, o Entidades tem exemplos lindíssimos, muito diferentes do Minha Casa Minha Vida Tradicional, que se tornou um depósito de pessoas de classes mais baixas em zonas da cidade sem infraestrutura alguma”, ressalta Luciana Lago, citando exemplos de projetos como o conjunto habitacional Paulo Freire, muito famoso em São Paulo, e outros casos de condomínios feitos com recursos do Entidades, no Sul do país, que geraram não apenas casas, mas deram frutos a novas cooperativas criadas entre os moradores para geração de renda permanente, como a Cometal, cooperativa de Metarlúrgicos.
O país precisa continuar a crescer, mas esse crescimento precisa ser inclusivo e não pode se dar a qualquer custo. Essa é uma das conclusões dos pesquisadores Mariana Simpson e Francisco Menezes, do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase). Segundo uma pesquisa que ambos estão realizando no instituto, sobre Pobreza e Desigualdade, nos últimos anos o país viu crescerem investimentos que visam ao crescimento econômico e ao mesmo tempo acabam por gerar mais exclusão. O Minha Casa Minha Vida faz parte da análise e é apontado como exemplo deste fato. Ele deixa predominantemente nas mãos das grandes empreiteiras a construção de milhões de unidades habitacionais e coloca por terra preceitos básicos, como a localização adequada em áreas com infraestrutura, saneamento ambiental, transporte coletivo, equipamentos, serviços urbanos e sociais, inviabilizando ainda mais o acesso a oportunidades de desenvolvimento social e econômico para moradores.
“Tanto no Minha Casa Minha Vida Empresas como no Minha Casa Minha Vida Entidades, a realização do sonho da casa própria por essas famílias é muito significativo. No entanto, habitação não pode ser entendida como quatro paredes e um teto. É um processo gradual, pessoal, de construção de comunidade e, consequentemente, de cidade. É isso que o Grupo Esperança vem construindo junto, bravamente, nos últimos quatro anos”, reforça Mariana Dias Simpson, pesquisadora do Ibase.
Foto: Reprodução/Brasil de Fato
Fonte: Brasil de Fato