Por Elaine Tavares.
O grande jornalista Marcos Faerman contava uma história engraçada, mas que lembra bem o que quero ilustrar aqui. Ele dizia que, naqueles anos de chumbo da ditadura militar, quando ele via entrar na redação um guri cabeludo ou uma guria descolada, com sandálias e bolsa de couro, já vaticinava: vai dar bom! E não dava outra. Era os “hippies”, por seu compromisso com a vida e com o amor os que se constituíam os melhores contadores de história.
Uso esse exemplo para falar dos migrantes que chegaram do Haiti. Se são haitianos, são bons. Não pode haver dúvidas. Afinal, foi nessa pequena ilha no meio do Caribe que aconteceu a primeira revolução feita totalmente por negros escravizados nessa nossa grande Abya Yala. E foi esse povo que gestou a liberdade que, depois, incendiou todo o continente.
Depois de amargar mais de 200 anos de escravidão, os negros do Haiti se levantaram em rebelião, numa luta que durou 12 longos anos e na qual conseguiram derrotar os brancos locais e até uma expedição francesa. Jacobinos negros. Homens e mulheres que, animados pela revolução que acontecia na França, decidiram que era hora de balançar bem alto o pavilhão da liberdade. E foram esses valentes os responsáveis pela única revolta vitoriosa de escravos em toda a história da humanidade.
Os primeiros negros chegaram ao Haiti em 1517, 17 mil almas roubadas de vários pontos do continente africano. Vinham servir de mão de obra para o colonizador europeu. Ali passaram pelas maiores atrocidades e tanto que, aos poucos, reunidos no culto vudu, juravam destruir os brancos e tudo o que possuíssem.
No 700, com a revolução assomando pelas ruas de Paris, o Haiti, que era uma possessão francesa, também ensaiava os passos de liberdade. Em 1791 começaram as primeiras rebeliões. No 22 de agosto, na noite da tempestade, os negros começaram a agir. Num levante de massas incendiaram as fazendas e tomaram as cidades. Foram 12 anos de lutas encarniçadas até que em 1802 o Haiti foi declarado independente.
O preço dessa avassaladora vitória contra os brancos continua sendo cobrado até hoje. Mas, ainda assim, nunca ninguém poderá apagar esse fato da história. É por isso que a um povo que foi capaz dessa saga heroica só se pode fazer reverência. Cada haitiano é marcado por essa gesta que influenciou a luta pela liberdade em toda a América Latina. Nunca é bom esquecer que foi do Haiti que Simón Bolívar recebeu as condições para voltar à Venezuela e retomar a luta que acabou tirando dos espanhóis todas as colônias. Também temos nossas dívidas com esses irmãos e irmãs.
Assim, quando o ônibus chegado do Acre, repleto de haitianos e alguns senegaleses chegou à Florianópolis, o sentimento que aflorou foi o da alegria. Agora, passados tantos anos, poderemos, como povo latino-americano, retribuir tudo o que a gente haitiana aportou de bom para que nossos países também pudessem desfrutar da sonhada liberdade. E, aos senegaleses expressar nosso respeito pela história de resistência durante o longo tempo da escravidão.
É por conhecer essas histórias e ter muito claro a importância do Haiti para a libertação de toda a América que provoca profundo pesar as palavras eivadas de preconceito que se expressam – em liberdade – pelas redes sociais.
O migrante negro e pobre é ruim
A cena é dramática. Um ônibus inteiro de gente sem rumo, olhar assustado, boca seca, coração aos saltos. Pessoas que saíram de seus lugares de nascimento, não porque estivessem a fim de conhecer o mundo ou fazer aventuras. Criaturas impelidas a caminhar, porque onde nasceram ou está devastado pela guerra, ou tomado pela miséria extrema. Gente que não tem outra escolha a não ser andar. Pessoas tomadas pelo desespero e pela pulsão da vida. Hoje, aqui, em Florianópolis, são os haitianos e os senegaleses que chegam, acuados, mas podem ser quaisquer outros povos acossados pela cobiça de uns poucos, como acontece nos países da África, do oriente médio ou da Ásia. São os fugitivos da fome, da morte, do medo.
Como esses homens e mulheres que hoje aportam na capital catarinense, séculos atrás vieram os italianos, os alemães, os japoneses. Gente que fugia da fome na Europa e embarcava animada pela promessa de boas terras e vida abundante. Vinham povoar o grande Brasil,alavancar o progresso da antiga colônia portuguesa. Quando aqui chegaram encontraram não a terra boa que esperavam, mas o lugar de outros: os índios, os quais tiveram de enfrentar e matar para poderem conquistar o sonho da boa vida. E assim, muito da prosperidade dos imigrantes se fez em cima da morte do povo originário.
Nos dias de hoje, os migrantes empobrecidos chegam sem promessas e sabedores de que aqui a terra já tem dono. Já aportam em desvantagem. Não poderão matar ninguém para tomar suas terras e muito menos contar com as benesses governamentais. Tudo o que podem ter é um colchão para dormir até que encontrem algum emprego, se conseguirem.
Na madrugada dessa segunda-feira foi assim. O grupo assustado encontrou repórteres, fotógrafos e toda uma sorte de pessoas para ajudar ou não. Haitianos e senegaleses vieram do Acre, por onde entram no Brasil, muitas vezes com o apoio dos traficantes de gente. Alguns deles deixam com os coiotes todas as economias de uma vida, porque acreditam que qualquer coisa pode ser melhor do que a guerra e a fome. Partem sem olhar para trás. São pessoas comuns, mas sem posses. E, por isso, sua migração é acompanhada com medo e preconceito. Bem diferente dos migrantes endinheirados, cuja chegada é saudada com o espocar do champanhe, já que esses compram terras, casas e podem investir no lugar.
Os empobrecidos não compram nada. Eles só querem achar um modo de ganhar a vida. “Vai roubar nosso emprego”, diz um. “Serão os marginais de amanhã”, diz outro, e por aí vai um rosário de maldades típico do medo que o outro, diferente, provoca em quem não consegue ligar os pontos da realidade. E há aí um outros componente que não pode passar desapercebido. Os migrantes em questão são além de pobres, negros.
E é a cor da pele que parece provocar tanta fúria. A mentalidade escravista do brasileiro comum segue intocável. Negro é sinônimo de ladrão, vagabundo, marginal. Como se isso fizesse parte do DNA. De maneira cômoda, os brasileiros, grupo constituído basicamente de migrantes, colam no negro tudo o que há de ruim. Perdeu-se na noite da história as origens do racismo, tão forte e tão cruel. Não é de bom tom lembrar que os negros foram sequestrados, vendidos como bichos, tendo seus filhos arrancados dos ventres e usados como instrumento de trabalho. Aquilo foi no passado e ninguém lembra mais. Os que sobreviveram ao massacre tiveram sua chance de “se virar”. Se não conseguiram é porque não quiseram. Assim pensa o senso comum.
E quem não é migrante?
Quando nos anos 80 do século passado um jovem padre criava em Florianópolis um centro de acolhimento ao migrante, a classe dominante olhava com desconfiança. Padre vermelho, comunista. Mas, naqueles dias, Wilson Groh não se intimidou com os rótulos que lhe colavam na cara. Junto com Ivone Perassa e outros companheiros, ele acolheu, ajudou a organizar, promoveu lutas. As gentes que vinham do interior do estado, na grande onda de migração, queriam uma vida melhor.
Foi assim que nasceram muitas das comunidades que hoje fazem nossa grande Florianópolis. E aqueles que, naqueles dias apontavam o dedo para o padre, hoje reconhecem o seu trabalho e lhe reverenciam por ter tido a coragem de enfrentar com generosidade a chegada daquela maré de gente. Como agora, os que aqui já estavam olhavam com medo e nojo. Era uma gente pobre, aparentemente sem nada para dar. E não foram poucos os acampamentos, os despejos, as prisões. Porque as gentes ocupavam terras vazias e construíam barracos.
Foram anos e anos de luta. Hoje, esses migrantes estão integrados à cidade. Tem suas casas, são trabalhadores, empresários, profissionais liberais. São os que fazem a capital andar.
E antes deles vieram os portugueses, os bandeirantes, os açorianos. Cada um com suas razões. Todos buscando vida plena. Ironicamente, os reais donos das terras foram expulsos, muitos mortos, e hoje precisam novamente brigar para ocuparem seu próprio território.
Então, como a história vai assim, dando voltas, é preciso parar e pensar. Somos um pequeno gênero humano, dizia Bolívar. Que mal nos fará acolher o que chega, perdido de amor? Se cada um de nós um dia já foi um migrante, aqui ou acolá. Antes do olhar de ódio e discriminação, antes do medo de ter o emprego roubado ou coisa assim, aposte na generosidade da acolhida. Essa gente que chega de lugares tão distante, com outra língua, outros costumes, venceu uma grande batalha, que é a de continuar vivo, a despeito de tudo. Que não venham encontrar a morte no olhar de um de nós.
Uma chance, apenas uma chance. É tudo que eles querem.
Fonte: Palavras Insurgentes