Entrevista com Ricardo De Campos Leinig, membro da Raiz Movimento Cidadanista em Santa Catarina.
Por Fernanda Pessoa (texto e fotos), para Desacato.info.
Ontem aconteceu o primeiro encontro da Raiz Movimento Cidadanista em Santa Catarina. Nove pessoas aproveitaram o final de tarde ensolarado em Florianópolis e ocuparam o Terminal Integrado do Centro (TICEN) para discutir o manifesto Carta Cidadanista, lançada em 27 de março de 2015.
O Portal Desacato entrevistou um dos membros da Raiz Movimento Cidadanista em Santa Catarina, Ricardo De Campos Leinig, para entender quais são os fundamentos desse movimento, que pretende tornar-se partido. Atualmente, a Raiz segue com a construção coletiva de um estatuto e com a criação de círculos territoriais e temáticos como este iniciado em Florianópolis.
Desacato – Quais são os principais pilares da Raiz Movimento Cidadanista?
Ricardo De Campos Leinig – Nossos fundamentos nascem da imperatividade de conciliação entre justiça social e diversidade étnica e ambiental. A luta por justiça social é inquestionável na medida em que o mundo concentra cada vez mais renda nas mãos de poucos em detrimento da dignidade de vida de muitos. Isso não é humano e pronto, deve ser superado. No Brasil, mesmo considerando os últimos dezesseis anos e suas políticas públicas que tiraram milhares de pessoas da miséria, a tendência é a mesma do mundo, ou seja, o aumento da concentração de renda e não o contrário como muitas vezes a propaganda governista sugere. No entanto, para dar conta da complexidade do país devemos considerar toda a sua diversidade. É irreal pensar em qualquer proposta séria que não considere aquilo que melhor caracteriza o nosso país: a sua diversidade humana e ambiental.
É desse conjunto de percepções que surgem os nossos fundamentos. Passamos a uma apresentação preliminar destes e convidamos a conhecê-los melhor através de nosso manifesto intitulado Carta Cidadanista, onde eles se encontram mais detalhados.
Utilizando a árvore viva como metáfora de nossos fundamentos, começamos por nossas raízes. A primeira, Ubuntu, da filosofia africana, tem na tradução para ao português um sentido aproximado de “eu sou porque nós somos”. Esse conceito ao mesmo tempo que enfatiza o Povo Negro existente em nosso país (o maior fora do continente africano), nega de saída as aspirações egoístas do individualismo exacerbado, em qualquer forma de manifestação concreta. A segunda raiz, Teko Porã, tem tradução aproximada de “Bem Viver”. Ao mesmo tempo que enfatiza os 243 povos indígenas e suas mais de 150 línguas faladas no país, coloca as outras formas de vida e o conjunto do planeta como sujeitos de direito, assim como os humanos. Bem Viver está em nítida oposição ao ocidental Viver Melhor (a qualquer custo). A ênfase em Ubuntu e Teko Porã pode ser entendida em dois sentidos: na imensa contribuição que os povos indígenas e africanos dão à grande parcela mestiça da população brasileira, como também na garantia, para esses povos, do direito à autodeterminação.
A terceira raiz, Ecossocialismo, complementar às duas primeiras, nasce da convergência entre a reflexão ecológica e as reflexões socialista e marxista, fazendo a revisão crítica em relação às experiências que o mundo já produziu dos socialismos reais megaburocráticos e totalitários, e os aspectos do pensamento de Marx relacionados às forças produtivas e à ideologia do progresso. Ecossocialismo pode ser entendido justamente como a fusão entre à crítica ao modelo capitalista de acumulação de riquezas e o objetivo do lucro que explora ao limite, tanto às pessoas quanto o ambiente.
Unindo essas três raízes, Ubuntu, Teko Porã e Ecossocialismo, temos o conceito de Bem Comum, que representa a seiva que emerge das raízes e que é sinônimo de direito de todos.
Revestindo e dando força à seiva do Bem Comum, temos o tronco do Cidadanismo. A síntese de Cidadanismo pode ser entendida como a prática política cotidiana que leve em conta todos os outros fundamentos (raízes e seiva). Por fim os Ramos, as Folhas, Flores e os Frutos, que representam nossa plataforma programática pensada para dialogar, semear, cultivar e fazer germinar em conjunto com a sociedade catarinense e brasileira. Destacamos aqui o que em certo sentido pode ser entendido como os nossos métodos: a proposta de Horizontalidade radical que já está sendo implementada através da semeadura de Círculos (territoriais e temáticos), nas redes sociais e em todos os estados do país.
Desacato – Nesse momento de insatisfação geral com a política, no qual os partidos parecem ter perdido a capacidade de identificação com a população, a Raiz pretende ser uma alternativa?
R – Exato. A Raiz surge com essa pretensão e para ocupar esse vazio, como uma alternativa à atual superinstitucionalização e consequente separação entre partidos e à população em geral. O caráter híbrido entre partido e movimento social, através da constituição dos círculos temáticos e territoriais é fundamental para isso, para o empoderamento das pessoas, para que elas pautem o fazer político institucional. Nesse sentido, sem a população debatendo e pautando, a Raiz sequer existirá e não passará de uma bela intenção.
Desacato – Uma das propostas da Raiz é a horizontalidade, algo muito difícil de concretizar na prática. Como isso está sendo viabilizado nesse momento inicial?
R.- A horizontalidade é o maior desafio e ao mesmo tempo a única possibilidade de qualificar a política e fazer com que ela seja a efetiva ferramenta de transformação social que todos esperamos que ela seja. Depositar todas as fichas da transformação social na figura individual de uma liderança, por mais carismática e habilidosa que ela seja, é um grande equívoco e a realidade brasileira é farta em exemplos disso. A horizontalidade é a cola social que precisamos para que nos momentos decisivos da política a população, acostumada com o seu exercício, faça valer a sua vontade coletiva em detrimento das lógicas pérfidas que atualmente dominam o nosso cenário político. Ela tem essa capacidade justamente pelo fato de ser o caminho para a descentralização do poder.
Horizontalidade também significa nos associarmos às mulheres, aos multigeneros, e aos seus movimentos. Pode ser por motivos filosóficos, por retratação histórica ou por mera matemática, mas qualquer esforço que se pretenda horizontal e que não vislumbre o gênero como sinônimo de ampla participação, deve ser encarado como deslavada mentira e, portanto, não deve ser levado a sério.
Já estamos exercitando na prática esse valor e é verdade que não sem dificuldades. Atualmente as decisões mais programáticas do partido movimento se dão em uma plataforma virtual de decisões colaborativas chamada Loomio. Ali, pessoas de todo o país que fazem parte do esforço de semeadura da Raiz sugerem, debatem, divergem, chegam a consensos e enfim decidem. Para propor algo não é preciso ocupar esse ou aquele lugar em tal ou qual estrutura partidária rígida. Basta apenas ter a ideia, propor e pronto, as discussões estão iniciadas. Depois desse primeiro exercício virtual o valor da horizontalidade já está extrapolando para o chão, para as ruas, através da constituição dos Círculos que já são vários em todo o país. Como vimos sábado no TICEN, e que você pôde acompanhar presencialmente, onde todas as pessoas participaram sem que houvesse valoração das participações entre mais ou menos importantes. Em síntese, a presença e a participação de uma pessoa só tem sentido na presença e na participação das outras pessoas. Aqui volto à pergunta anterior: é assim e aumentando a amplitude e a relação entre os Círculos, que acreditamos que faremos germinar um fazer político que não tenha nenhum sentido que não seja o do poder descentralizado na participação efetiva da população.
Existirá permanentemente uma alimentação mútua entre esse tipo de reunião presencial que realizamos e o ambiente virtual. Questões discutidas nas redes sociais nos levaram até o TICEN com um sentido comum. Após essa reunião presencial, levaremos novamente as questões para o ambiente virtual onde estão tanto os presentes na reunião quanto às pessoas que não puderam comparecer. E com essa lógica seguiremos.
Desacato – Na fase atual de formação do movimento, quais ações estão sendo tomadas para a solidificação da Raiz?
R.- Podemos separar em duas que estão acontecendo simultaneamente e sem fazer hierarquia de importância entre elas, já que uma influencia a outra. Por um lado existe o esforço organizativo que se iniciou com a elaboração do manifesto Carta Cidadanista e que prossegue com a construção coletiva de um estatuto que ainda não está fechado e que pode ser conhecido na plataforma Loomio. Em junho, na cidade de Campinas/SP, ocorrerá o 5º Encontro Nacional no qual estarão em discussão esse próprio estatuto e o planejamento estratégico da Raiz até 2017 (ainda da tempo de participar), além de debates relativos às impressões e experiências relativas aos passos dados até aqui, sobretudo com a semeadura e constituição dos Círculos que estão surgindo por todo o país. Esses esforços organizativos são fundamentais para que se minimizem as chances de deturpação e manipulação dos nossos valores explicitados na Carta Cidadanista. Em que pese o fato de a negação ao capitalismo nos unir, somos um movimento de unidade afirmativa que acredita que o simples negar não faz germinar. Daí os fundamentos expostos na primeira resposta, que devem estar cada vez mais cheios de sentido através dos diálogos horizontais com a sociedade. E aqui se encontram as outras ações, às quais já nos referimos nas perguntas anteriores: a semeadura dos Círculos territoriais e temáticos. Os territoriais já existem na maioria dos estados do país e os temáticos também estão se multiplicando. Já temos Círculos Nacionais de Educação, LGBT, Ecossocialista, Cultura, entre outros.
Desacato – O ex-secretário nacional de Cultura Célio Turino junto com a Deputada Luiza Erundina, dois nomes conhecidos do cenário político nacional, participaram da criação da Raiz enquanto Partido e Movimento. Em entrevistas recentes, Turino fala sobre a semelhança da Raiz com o Podemos, da Espanha. O que torna semelhante os dois movimentos?
R – Primeiro o contexto político de emergência do Podemos e da Raiz. Em ambos os países havia e ainda há o sentimento coletivo de separação entre os partidos tradicionais e à população. Partidos que o Podemos denomina como castas na Espanha. Tanto lá quanto aqui existiram manifestações massivas que indicaram essa grande indignação. Lá Movimento 15-M (quinze de maio de 2011). Aqui, as jornadas de Junho de 2013. Depois, o método dos Círculos de Debates, os quais já abordamos.
No entanto, as experiências de um contexto sociocultural não podem ser meras transposições de um a outro país. Nesse sentido, se por um lado nos inspiramos no Podemos, por outro pretendemos ir além do partido espanhol que em seu viés institucional ainda é muito centralizado nas figuras de algumas lideranças extremamente carismáticas. Além disso, nossas inspirações extrapolam o Podemos e se estendem, entre outros, ao zapatismo mexicano, ao grego Syriza e ao MAS da Bolívia. Sempre enfatizando, como no caso do Podemos, que não se trata de mera importação ou da cópia brasileira de um ou outro desses movimentos. Se temos como valor central a horizontalidade, seria estupidez pensar que o que somos ou o que seremos já nasceu pronto. Ao contrário, é o nosso fazer político da prática cotidiana que dirá o que somos e o seremos.
Desacato – Na prática, como se daria a relação da Raiz com as organizações já estabelecidas da sociedade como sindicatos e movimentos sociais, por exemplo?
R – Como mencionávamos anteriormente, a postura da negação pela negação, a tudo, a todos e à todas, além de não construir nada é burra.
Por um lado, o mesmo problema que vemos nos partidos tradicionais, em relação ao excesso de institucionalização e descolamento com a realidade popular, também se manifesta em inúmeros sindicados e até mesmo em movimentos sociais. A própria trajetória do Partido dos Trabalhadores entre a oposição carreadora de praticamente toda a demanda social, ao centro do poder com a consequente superinstitucionalização, contribuiu com que ocorresse o mesmo com sindicatos e, por esdrúxulo que seja imaginar, até com movimentos sociais que não souberam se descolar dessa institucionalização.
Entretanto, dentro de todas essas modalidades do fazer político não existem orientações políticas unilineares e há grande diversidade de posturas e de tensionamentos.
A Raiz não almeja a exclusividade, não se intitula como a dona da verdade e não acredita que seja possível fazer algo afirmativo e transformador desconsiderando por completo as experiências políticas pregressas, incluindo aqui o aprendizado com as contradições insuperáveis. Assim, se é verdade que as formas tradicionais chegaram ao limite de suas contribuições e para superar o engessamento atual necessitam se reinventar, também é verdade que nesses espaços há muitíssima gente que não vai desistir da efetiva transformação da realidade injusta, genocida e globalmente degradante na qual nos encontramos.
É com naturalidade que trabalharemos juntos por essa transformação com todo mundo que se dispuser a se relacionar de modo que a existência e o fazer do um, só tenha sentido na existência e no fazer dos outros, sejam esses os coletivos humanos, os coletivos não humanos das outras formas de vida e o planeta em seu conjunto.
Desacato – O que faz você se identificar com a Raiz?
R – Depois de tudo que foi perguntado essa ficou simples de responder. A indignação diante dos nossos atuais quadros e a compreensão de que precisamos com urgência semear algo nobre para que esse vazio do qual falamos não seja preenchido por mais do mesmo travestido por novas nuances e, isso tudo, combinado com a potência dos valores trazidos pelos fundamentos da Raiz: horizontalidade radical, Ubuntu, Teko Porã, Ecossocialismo e Cidadanismo. Sempre há incertezas, sempre há riscos, mas definitivamente é preferível enfrentá-los à permanecer no imobilismo e ver tudo desmoronar diante do próprio nariz sem que se tenha movido uma palha para ir além desse fatalismo que em nada combina com o potencial criativo humano. Política é criatividade e o atual engessamento de nosso sistema é que está errado. Tratemos então de reavivá-lo ao invés de nos resignarmos com o seu fim.
Para concluir a entrevista, Ricardo Leining nos oferece alguns caminhos para saber mais sobre a Raiz:
“Quero aproveitar este espaço para agradecer a oportunidade de falarmos mais sobre a Raiz à você, Fernanda, e ao Desacato que sempre veicula informações vinculadas às causas sociais, ao mesmo tempo convidar todas as pessoas que estão lendo essa entrevista para conhecer, através da prática, tudo que aqui foi exposto.” Isso pode se dar através dos seguintes caminhos:
Sítio da Raiz Movimento Cidadanista – por enquanto para acesso à íntegra da Carta Cidadanista: http://www.raizmovimentocidadanista.org.br/
Fanpage Nacional da Raiz Movimento Cidadanista no facebook. Para curtir e se manter atualizado: https://www.facebook.com/RaizMovimentoCidadanista?fref=ts
Grupo Nacional da Raiz Movimento Cidadanista no facebook. Ao solicitar participação haverá a necessidade de preenchimento de um cadastro simples: https://www.facebook.com/groups/RaizMovimentoCidadanista/?fref=ts
Grupo da Raiz Movimento Cidadanista de Santa Catarina no facebook:
https://www.facebook.com/groups/1411310042522579/?fref=ts
Página Nacional da Raiz Movimento Cidadanista na plataforma de decisões colaborativas Loomio. Para participar das decisões programáticas da Raiz. Acesso mediante preenchimento de cadastro:
https://www.loomio.org/g/OBJDMnPl/raiz-movimento-cidadanista