O que mudou dentro das escolas desde que o velho quadro-negro passou a dividir espaço com lousas digitais, tablets e salas 3D, entre outras invenções? Não muito, responde o documentário brasileiro Do Giz ao Tablet: Por que a tecnologia não mudou a educação, produzido pela consultoria de engajamento paulista Santo Caos. Lançado em janeiro deste ano e disponível gratuitamente no YouTube, o filme de 30 minutos mostra como os novos equipamentos e demais investimentos tecnológicos feitos nas escolas não se traduziram em mudanças no ensino e na aprendizagem. Mas por quê?
“A gente via que a tecnologia não havia mudado a educação, pois ainda usavam-se os mesmos paradigmas. Então, em vez da apostila, tinha o tablet. A lousa digital, no lugar da lousa a giz. Mas, na prática, não tinha mudado nada porque os atores e os papéis das pessoas dentro da escola eram os mesmos”, explica Guilherme Françolin, um dos fundadores da Santo Caos e idealizadores do filme, que entrevistou professores, pais e especialistas em educação. Em outras palavras, a modernização física e das ferramentas escolares não foi acompanhada por uma atualização na prática pedagógica.
Nesse contexto, o documentário questiona a pertinência de um modelo educacional baseado em aulas expositivas e avaliações pontuais diante de alunos cada vez mais conectados e, portanto, providos de informação. “Uma geração sempre se define pelo contexto social em que estiveram inseridos quando crianças. Como a geração Z, de forma geral, possui pais que trabalham fora, na dúvida, vai e pergunta no Google. Porque é muito mais fácil do que esperar para perguntar aos pais”, diz Françolin. Logo, pode-se dizer que é uma geração bastante imediatista e autodidata. “Por ter tal perfil, esses alunos não querem esperar o professor chegar naquele ponto da matéria para saber aquilo que desejam. E isso muda a dinâmica das relações dentro da escola.”
Fonte: Carta Fundamental
Para Luciano Meira, consultor em educação e multimídia do Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife (Cesar), a maioria das avaliações feitas pelo documentário é pertinente, mas é preciso também considerar outros pontos. “A primeira coisa é que tem pouco tempo de implementação e penetração das tecnologias digitais nas escolas. Ou seja, não tem intensidade e tempo cronológico suficientes para afirmar ‘que não revolucionou’.” Segundo Meira, as tecnologias contemporâneas não são apenas mais um artefato dentro da escola, mas ferramenta pedagógica muito poderosa, pois apresentam uma capacidade responsiva e de acumulação de informação sobre quem as utiliza que é única. “Agora, se tiver um big brother dentro da escola tão forte para que os alunos não possam usar a rede para outros propósitos senão os “educativos”, aí concordo que nunca vai mudar nada”, diz.
Outro ponto que explica o fato de esses dispositivos não estarem revolucionando a escola está no fato deles não terem sido desenhados com esta finalidade. “Eles (aparatos tecnológicos) foram desenhados para a sociedade, de forma geral. Depois falam que os professores têm resistência em usá-los, mas não tem não. É que não é fácil fazer o redesenho de um artefato para um propósito específico, tanto é que há várias startups fazendo apps para educação e eles precisam contratar designers, ilustradores, programadores, engenheiros, educadores etc. Agora, você espera que um professor faça isso sozinho?”, lembra Meira.
Richard Romancini, professor do curso de Educomunicação da Escola de Comunicações e Artes da USP, aponta que é possível pensar a relação entre as tecnologias e a educação formal a partir de dois pontos. O primeiro, ligado ao uso da mídia com uma preocupação instrumental, a ideia estrita de “do giz ao tablet”. “No início do século XX, com a emergência dos então novos meios, como o rádio, cinema, etc., a ideia de “revolucionar” a educação com a utilização dos mesmos ganhou um forte impulso. Não por acaso nesse momento ocorre a montagem de grandes sistemas educativos nacionais em muitos países”, conta. Isto é, tratava-se, muitas vezes, não de reconfigurar a educação, mas de acelerar processos, dar-lhes uma nova escala. “Eu diria que a preocupação desta dimensão foi muito pouca revolucionária. Geralmente, se procurou utilizar os novos meios para dar mais eficiência ou massificar os sistemas, não exatamente para mudar propósitos e sentidos”, diz.
Além disso, frequentemente, a adoção de tecnologias se dá de maneira vertical e autoritária. Dificilmente os professores são consultados quando alguma rede educativa compra um sistema de ensino, lousas digitais ou tablets. “Então existe uma contradição aí: como você vai desejar que esse professor – ao qual é dada tão pouca autonomia – tenha uma relação de mediação com os alunos, trabalhem para que se constituam como indivíduos autônomos? Será que a própria sociedade quer que o professor seja mesmo algo diferente desse “passador de conteúdo” ao qual ela está acostumada?”
O segundo ponto de vista, entretanto, relaciona-se mais ao ambiente externo à escola. “Talvez aí possamos perceber uma revolução. Hoje, qualquer estudante tem acesso a um conjunto de informações enorme a partir de algum dispositivo tecnológico. Isso abala a hegemonia da escola como ‘guardiã do conhecimento’ e deve induzir reflexões sobre os objetivos da educação escolar”. Para Romancini, é possível que grande parte da crise da instituição escolar – questões de evasão, desmotivação estudantil, entre outras – esteja relacionada ao fato de que não estamos sendo capazes de dar respostas satisfatórias a essa interação entre a cultura midiática e a educação formal. “As tecnologias não revolucionaram a educação escolar em termos propriamente instrucionais, mas talvez estejam revolucionando em relação ao ambiente cultural que ajudam a produzir”, resume.