A Coreia do Sul à cabeceira da sua moribunda democracia

Coreia do SulPor Rémy Herrera.*

Depois de ter abandonado a soberania nacional e perdido a independência económica, a República da Coreia vê o seu governo actual tentado pela nostalgia ditatorial. A recente interdição do Partido Progressista unificado é a confirmação do facto de que, nesse território sob ocupação dos EUA, manifestar apreço pelo socialismo ou defender a reunificação da Coreia conduz à prisão por « alta traição».

Há menos de vinte anos – antes da «crise asiática» de 1997 -, a República da Coreia, ou Coreia do Sul, era de longe, de entre todos os países membros da OCDE, aquele em que se verificava uma mais elevada taxa de crescimento do PIB (8,7% em termos reais e em média de 1985 a 1995) e a menor taxa de desemprego (cerca de 2% da população activa em 1996). Desde há muito e quase unanimemente este país era apresentado como asuccess story da via capitalista de desenvolvimento, um exemplo daquilo que a Banca mundial, que em tempos a dotara de nomes de animais reais ou imaginários (tigre, dragão), designava com o Asian Miracle.

Submissão aos Estados Unidos em todas as frentes
A situação alterou-se claramente depois de 1997-1998 : entre esses dois anos, a queda do PIB per capita fora de 10 550 para 7 970 dólares, fazendo com que a Coreia do Sul passasse de 24º para 55º no escalonamento mundial para esse indicador (em paridade de poder de compra). Uma das expressões dessa crise fora então o crescimento do desemprego e da pobreza, sem uma rede de protecção social à altura das necessidades, nem atenuação do dualismo inequalitário característico do mercado do trabalho sul-coreano. É certo que taxa de crescimento voltou a ser positiva nos anos 2000, mas situou-se muito abaixo da que se verificava antes desse choque: 2,3 % em 2011, 3,0 % em 2013, 2,8 % em 2014…Porque o que se rompera após esta grave crise fora o próprio motor do crescimento made in (South) Korea. A reorganização dos gigantes industriais ou chaebols (como por exemplo Samsung, conhecida tanto pelas suas inovações técnicas como pela proibição de qualquer actividade sindical na empresa) tinha conduzido em numerosos sectores estratégicos a uma penetração da estrutura de propriedade do capital nacional por parte de empresas transnacionais estrangeiras, ao mesmo tempo que a «reforma» do sector financeiro colocava de facto o país sob a tutela dos oligopólios bancários ocidentais. A dependência da economia sul-coreana, cada vez mais financeirizada, deixou de poder ser dissimulada.
Em qualquer caso, qual teria sido a trajectória deste país sem a ajuda militar estado-unidense? E qual teria sido a amplitude do sucesso do seu capitalismo se este tivesse tido de sustentar sózinho o fardo da sua defesa? Os documentos oficiais do US Department of Defense revelam, no início da década de 2010, a existência de mais de 80 bases militares dos EUA (das quais 60 ditas «de grande dimensão») e a presença de perto de 30 000 militares ianques dos três ramos das forças armadas em solo sul-coreano. Este integra a lista de países alojando armas nucleares dos EUA. Mas os tempos mudaram, sobretudo desde que os EUA estão eles próprios igualmente em crise: em 2014, Seul teve de pagar a Washington qualquer coisa como 1 000 milhares de milhões de wons (ou seja, cerca de 900 milhões de dólares) de comparticipação no financiamento desta segurança. O que não impediu o ministro do Negócios Estrangeiros sul-coreano, na ocasião da assinatura do acordo, de se gabar de ter conseguido moderar as ambições estado-unidenses de agravamento dessa contrbuição a apenas +5,8%!
A razão apresentada para justificar o recente acréscimo dos efectivos dos EUA na Coreia do Sul foi o «reequilíbrio militar a favor do Leste Asiático» após mais de uma década de guerras no Afeganistão e no Iraque. As manobra militares conjuntas dos dois países actualmente em curso não fazem esquecer que elas reunem as tropas sul-coreanas e… as da sua potência colonial. Ou dito de forma mais crua ainda : no momento actual, tal como ontem e depois do cessar-fogo de 1953, a Coreia do Sul permanece um território ocupado.

A deriva autoritária da Madame Park
Em 19 de Dezembro do ano passado, por solicitação do ministério da Justiça, o Conselho constitucional mandou proceder à dissolução do Partido progressista unificado (Tong Hab Jinbo Dang), à cassação do mandato dos cinco deputados do PPU no Parlamento, e à prisão de um deles, condenado de imediato a uma pena de prisão por alta traição e atentado contra a segurança do Estado. A razão invocada pelo Conselho constitucional é uma violação da lei de Segruança nacional, que data de 1948 e prevê até a pena de morte para quem se reivindique do comunismo e se envolva em actividades suseptíveis de constituir um apoio à Coreia do Norte.
É a primeira vez desde 1958 que um partido político é interdito na República da Coreia; é também a primeira vez, desde o fim da ditadura em 1987, que o governo dirige uma tal solicitação ao Conselho constitucional. A primeira vez ainda, que este Conselho, ele próprio – e paradoxalmente – nascido graças à instauração da democracia, escarnece deste modo dos princípios da separação dos poderes e da independência da justiça, para se imiscuir num processo de direito civil e penal e antecipar-se à sua decisão. Tanto mais que em 22 de Janeiro de 2015 o Supremo Tribunal considerava que a acusação de alta traição adiantada, em 17 de Dezembro, por um tribunal de primeira instância contra o deputado do PPU detido não tinha sustentação – embora tivesse mantido a sua condenação por «incitamento à alta traição»…
O PPU, que resulta da fusão em Dezembro de 2011 de diversos partidos de esquerda (entre os quais o Partido democrático do trabalho, ele próprio fundado em 2000, o Partido da participação do povo, e uma fracção do Novo Partido progressista), é a principal formação política da esquerda radical, de tenedência socialista, e é actualmente a força mais decididamente oposta ao poder da presidente da República, Park Geun-hye. Esta, antiga dirigente conservadora do Grande Partido nacional (GPN) e filha do ex-presidente Park Chung-hee – que dirigiu o golpe de Estado militar de Maio de 1961 e prolongou a ditadura neo-fascista sob controlo dos EUA – tinha já atacado frontalmente a liberdade sindical no seguimento da sua eleição em 2012. Ei-la agora endurecendo a repressão política: interpelações cada vez mais frequentes de opositores em nome da lei de Segurança nacional; rusgas policiais em domicílios de membros do PPU (que conta hoje mais de 100 000 membros) e sedes de organizações progressistas e/ou religiosas (nomeadamente a Alinação coreana pela reunificação independente da pátria, o Comité da apoio aos detidos por delito de opinião…), expulsão de intelectuais do país, recusa de visto de entrada no território de grupos associativos de solidariedade com a Coreia do Sul…
A decisão de interditar o PPU assemelha-se muito a um abuso de poder. Segundo o juiz constitucional Isou Kim, o único (em nove) a votar contra esta interdição: «Não existe qualquer prova de que o objectivo oculto do PPU seja o de realizar o socialismo norte-coreano. A “democracia progressista” não é atentatória dos fundamentos da ordem democrática». E a directora dos inquéritos Ásia oriental da Amnesty International, Roseann Rife, acrescenta: «Esta dissolução suscita graves inquietações no que diz respeito às intenções das autoridades relativamente às liberdades de expressão e de associação. O governo utiliza cada vez mais a segurança nacional como pretexto para reprimir a oposição. O espaço reservado à liberdade de expressão restringiu-se sensivelmente no decurso dos últimos anos». A Associação de advogados por uma sociedade democrática publicou um «Acuso o Conselho constitucional da morte da democracia pluralista na Coreia»; a associação internacional dos juristas democratas (AIJD), por seu lado, sublinha que no seu entender «esta acção vola os direitos do Homem no plano das liberdades de opinião, de expressão e de associação» bem como «as disposições da Comissão de Veneza acerca dos partidos políticos».
A democracia agoniza na Coreia do Sul, onde exprimir apreço pelo socialismo (Sa hoei Ju Eui) ou manifestar o desejo de ver a nação coreana finalmente reunificada pode levar à prisão. E isto, na ocasião em que a Madame Park – que terá de se confrontar com os escândalos de corrupção nas suas fileiras, com os efeitos da crise económica e com as crescentes reivindicações populares – se congratula por o Conselho de Segurança da ONU ter aberto um debate sobre os Direitos do Homem na Coreia…do Norte!

*Investigador no CNRS

Fonte: O Diário.pt

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