Por Carlos Frederico Guazzelli.
Antes do golpe de estado de 1964, as Forças Públicas dos Estados – no Rio Grande do Sul, a Brigada Militar – tinham funções distintas: tratava-se de organismos militares vinculados aos Governos estaduais, destinados ao controle da ordem pública, em casos de necessidade. O policiamento ostensivo, então, era atribuição precípua das Guardas Civis, organizações policiais autônomas, ou segmentos fardados das Polícias Civis dos Estados; as Forças Públicas exerciam esta tarefa apenas em caráter complementar – por exemplo, em zonas rurais, ou em pequenos municípios, à falta de guardas civis.
Seguia-se, então, o desenho institucional propugnado e adotado, até hoje, nas principais democracias ocidentais contemporâneas, fiéis à orientação de que a função policial – tanto preventiva, quanto repressiva – é essencialmente civil. Com efeito, o poder-dever do Estado em evitar e reprimir as condutas socialmente indesejáveis, efetiva concretamente o monopólio legal do uso da força, e, por isso, deve ser necessariamente exercido sob o comando direto das autoridades públicas legitimamente constituídas – submetidas, elas próprias, nos diferentes níveis dos Poderes, ao controle popular democrático.
Apesar disso (ou por isso mesmo), já nos primeiros anos após a implantação da ditadura, os novos governantes trataram de alterar radicalmente o modelo jurídico-político das polícias brasileiras, sob o influxo da ideologia da segurança nacional, que passou a presidir as ações governamentais, em todos os graus e instâncias. Assim, além de extinguir as Guardas Civis, incorporando-as às Polícias Civis estaduais, as Forças Públicas dos Estados foram transformadas em Polícias Militares – às quais foi confiado, com exclusividade, o exercício do policiamento ostensivo. Importa referir que ambas as Polícias – Civil e Militar – no âmbito estadual, passaram a se subordinar diretamente às autoridades militares federais, em geral do Exército: tanto as Secretarias de Segurança Pública, quanto as chefias das polícias, eram entregues a oficiais escolhidos diretamente pelos comandos militares, em Brasília.
Ao longo da segunda metade dos anos 1960, e primeira metade da década seguinte, foi-se constituindo a chamada “comunidade de segurança e informação”, sistema composto por diversos órgãos, federais e estaduais, civis e militares, centralizado no Serviço Nacional de Informações (SNI), diretamente subordinado ao Conselho de Segurança Nacional, este por sua vez vinculado diretamente aos Ministérios Militares e à Presidência da República.
Importa aqui considerar que, neste novo quadro, as renovadas Polícias Militares, agora concebidas como “Forças Auxiliares” do Exército Brasileiro, ficaram a ele diretamente ligadas, como visto acima, por meio da escala de comando federal estabelecida nos Estados. Tratava-se, esta, de mudança não apenas estrutural, mas de fundo: o policiamento ostensivo (e também o repressivo) tornou-se assunto de “segurança nacional”, a ser tratado sob os ditames da teoria respectiva.
A propósito, cabe lembrar que esta doutrina foi gestada, inicialmente, pela direita militar francesa, após o rotundo fracasso de seu exército colonial, na Indochina, no início dos anos 1950. No quadro da chamada Guerra Fria, foi aperfeiçoada pelos militares norte-americanos, e por eles incutida nos colegas da América do Sul – aí incluídos oficiais brasileiros – sobretudo a partir de cursos e estágios ministrados na Escola das Américas, no Panamá, ou na chamada Ponto Quatro, na Carolina do Norte.
O conceito essencial da ideologia de segurança nacional é o de inimigo interno, segundo o qual o adversário a ser derrotado – o “movimento comunista internacional”, designado pela sigla MCI – não se comporta como exército regular, externo e visível, mas, ao contrário, dilui-se entre a população, disfarçado em diversas situações (a exemplo dos chamados “cripto-comunistas”, “aliados”, “companheiros de viagem” e “inocentes úteis”). Em consequência, a tarefa fundamental de defesa estatal – erigida em “objetivo nacional permanente” – consistia em identificar, neutralizar e, se necessário, eliminar este inimigo interno – ao qual se atribuía, naqueles tempos, a denominação genérica de “subversivo”, ou ainda de “terrorista”.
Para os limites deste artigo, deve-se destacar que a transformação das milícias estaduais em Polícias Militares, durante os governos ditatoriais, e, sobretudo, sua submissão ao sistema repressivo engendrado sob a ideologia da segurança nacional, exerce perniciosos efeitos até hoje – uma vez que, passados trinta anos do fim da ditadura, a formação de seus agentes segue ainda sua inspiração, com o que suas ações também obedecem o mesmo padrão então imaginado, a partir do conceito básico do inimigo interno. Mudou apenas o alvo das ações repressivas – dirigidas não mais contra subversivos ou terroristas, mas contra os “marginais”, ou os “vagabundos”, ou ainda, a “bandidagem”.
Os estudiosos da questão destacam a incompatibilidade absoluta do tratamento militar da segurança pública – sobretudo a partir dos postulados da famigerada doutrina da segurança nacional – uma vez que amplos setores populacionais (não por acaso, os mais humildes), necessariamente se tornam objeto de vigilância e repressão seletivas, dado que o inimigo interno, também necessariamente, neles se diluiria e os habitaria. Não por acaso, a mais interessante experiência de policiamento comunitário feita recentemente no País – o projeto das UPP’s, no Rio de Janeiro – vive sérias ameaças, estacionado que está na fase de ocupação militar das favelas e bairros, que parecem ter trocado, apenas, a tirania dos traficantes, pela dos soldados.
Evidentemente, o policiamento ostensivo em uma sociedade democrática deve partir de premissa fundamentalmente contrária – a partir da consideração de que a população em geral, e em especial as camadas mais desfavorecidas, devem ser objeto da proteção, e não da persecução policial.
Apesar disso, a concepção militar que ainda dirige as ações de polícia ostensiva no Brasil – outra das tantas heranças malditas do período ditatorial – é a responsável direta pela brutalidade institucionalizada das Polícias Militares estaduais, direcionada preferencialmente, quando não exclusivamente, contra os segmentos desfavorecidos, e majoritários da sociedade brasileira – pobres, jovens, negros ou pardos, habitantes da periferia das cidades grandes e médias.
Carlos Frederico Barcellos Guazzelli foi coordenador da Comissão Estadual da Verdade/RS (2012-2014).
Fonte: Sul21
Foto: Revista Fórum.