A obra de Peck capta as estruturas de sensibilidade, percepções do social e subjetividades daqueles que a sociedade capitalista industrial moderna marginaliza
Por Deni Rubbo
Pode parecer exagerado e repetitivo frisar sempre que conseguimos marcar um encontro com a produção cinematográfica latino-americana e sua atualidade desesperadora. Tal afirmação não se explica pelo encantamento ficcional, pela beleza plástica dessa ou aquela obra, mas pela convicção de que parte do cinema latino-americano arrasta uma paixão pelas causas difíceis. Trata-se de um cinema pária. Todavia, isso não significa um ponto de vista “idealizado”, “superior”, “perfeito”, “sagrado” ou “intocável” em relação ao cinema europeu e estadunidense – uma afirmação, aliás, sem pé nem cabeça, mas que existe nos meios demagogos –, mas de habituar outros olhares que possa estimular o público para a compreensão dos dramas sociais de nossa específica formação e memória histórica.
Qual seria esse outro prisma? É quando o cinema procura tatuar em sua pele a história de rostos e nomes que desconhecemos ou ignoramos fazendo da palavra um pé de igualdade. Ao permitir que os párias reescrevam sua história, abre a possibilidade que pintem um quadro com a cor de sua humanidade não somente como indivíduo isolado, mas também por percorrer os claustros subterrâneos da memória de um país e de estimular o exercício radical de remoção de cadáveres dos sujeitos subalternos proscritos pelos escombros do esquecimento social. Assim, trazer e assumir outro ponto de vista daquele “oficial” não é tolher a realidade, mas sim despertar as discordâncias, espalhar a heresia da dúvida pelos corredores da verdade, profanar o sagrado senso comum e projetar politicamente o bom senso.
Nessa linha de raciocínio a obra do cineasta latino-americano Raoul Peck – completamente desconhecido no Brasil e até alguns meses por este escriba amador – capta as estruturas de sensibilidade, percepções do social e subjetividades daqueles que a sociedade capitalista industrial moderna marginaliza. Peck nasceu em Portau Prince no Haiti, em 1953. Refugiado pela ditadura de François Duvaleir, o famoso Papa Doc, Peck morou no Congo, lugar onde produziu dois filmes sobre a figura de Patrice Lumumba, o líder anticolonial que participou da conquista da independência do Congo em relação à Bélgica: o documentário Lumumba, a morte do profeta (1992) e a ficção Lumumba (2000). Também dirigiu Abril Sangrento (2005), provavelmente seu filme mais exibido nos circuitos comerciais sobre o massacre da milícia Hutu contra os Tutsis, em Ruanda. Peck foi também motorista de táxi, em Nova York; fotógrafo e jornalista, na Alemanha. Em 1996/1997 chegou ao cargo de Ministro da Cultura no Haiti. Atualmente é presidente da Fémis, escola de cinema francesa.
Todavia, Peck esse “pária consciente”, que esteve em vários países, não conseguiu se afastar de uma reflexão sócio-política sobre o Haiti. Na realidade, são vários filmes entre eles, Moloch Tropical (2009), que atinaram sobre seu país de origem. A última obra de Peck é o documentário Assistência Mortal que versa sobre o fatídico terremoto que abalou o país em 2010 (veja comentário aqui).
O homem das docas, primeiro filme haitiano lançado nas salas de cinemas dos Estados Unidos, em que relata a história da pequena Sarah na época que vigorava a mesma ditadura que o também menino Peck e sua família saíram fugidos. Essa embocadura, o olhar da criança numa época de terror, tem sido um tema ocupado nos recentes filmes latino-americanos sobre ditaduras militares e guerras civis. Basta recordamos, em um voo rápido, de Kamchatka (Marcelo Pineyro, 2003), Machuca (Andrés Wood, 2004), Vozes Inocentes (Luis Mandoki, 2005), O ano que meus pais saíram de férias (Cao Hamburger, 2006).
O homem das docas antecede a todos eles, pois data de 1992. Contudo, diferentemente dos exemplos mencionados, o filme é tipicamente um flashback, uma história passada que são rememorados por meio de uma narrativa que mistura sonho – pesadelo, seria a palavra mais adequada – e realidade da memória infantil de Sarah. Sua história não nasceu para ser vista, nasceu para ser pálida. Embora a narradora não apareça explicitamente em nenhum momento, tudo indica que está mais velha, mas o simples fato de contar sua história subverte a temporalidade linear da relação entre presente e passado, como fica claro na seguinte frase: “passou tanto tempo e, no entanto, foi ontem”.
Portanto, Sarah é a narradora do filme e procura rememorar essa traumática experiência de sua vida quando a barbárie bateu-lhe à porta: ela tinha apenas oito anos de idade. Oito anos e no mundo já se vislumbra os caminhos da catástrofe. Ela testemunha todos os tipos de proibição e violência engendrados pelos assim chamados Tonton-Macoutes (bichos-papões, em creole), uma milícia dos Voluntários de Segurança Nacional, criada em 1959, para proteger o governo de Duvalier. Peck retrata os macoutesem suas vestimentas impecáveis,na utilização de óculos escuros, na locomoção pelas ruas em cima dos pick-ups e, é claro, na exibição pública de suas armas e facões. Sarah é afastada do pai militar e da mãe, passando a morar com sua avó. Chega a morar em um convento. Todos os espaços são vigiados por essa milícia corrupta, facínora, castradora. Não se poupa ninguém. Nem crianças nem mulheres, nem idosos. Qualquer tipo de movimentação por mais inofensiva que fosse era motivo de humilhação, constrangimento, açoite. Ao invés de provar a culpa do suspeito, os macoutes costumam exigir que o detido provasse sua inocência.Qualquer semelhança com a PM não é mera coincidência…
Na realidade, nem se provasse sua inocência com as provas a, b, c seria indicativo de liberdade. Durante muito tempo a liberdade foi colocada na lata do lixo na história do Haiti, assim como em todo subcontinente. Uma cena que ilustra bem esse ambiente de terror é quando a tia de Sarah vai à delegacia procurando por sua mãe, presa algumas horas antes, e indaga ao macoute, Janvier: “Ela é inocente”. Ele retruca: “E daí?”.
Apesar da idade, Sarah parece ter sugado cada segundo de sua vivência. Ela não é poupada, não há trégua,não há corrente de ar para a personagem,como foram poupados, por exemplo, os pequenos Giosé (A vida é Bela), Mauro (O ano em que meus pais saíram e férias) e Harry (Kamckatka). Todos eles apenas estranhavam alguns deslocamentos da moldura política, mas não conseguiam detectar precisamente o que eram. Essa “ingenuidade” ou inocência inexiste na personagem Sarah. Chega inclusive a testemunhar a tortura que seu tio, Sorel (interpretado por Patrick Rameau), é submetido. Aliás, um caso emblemático o personagem de Sorel. Ele é visto em vários momentos do filme como um tipão louco, alcóolatra, coxo, mendigo, vive vagando pelas ruas, um tipo muitas vezes visto de maneira cômica, bizarra. Não demora muito para costurarmos uma importante ligação desse personagem tão simbólico: seu estado mental e físico completamente desumanizado e deteriorado é consequência da tortura à qual foi submetido. O transtorno antecedeu a própria tortura: a do batismo pelos macoutes. Há um momentoem que quando já estava raptado,Sorel ouve uma bateria de tiros disparados do lado de fora e seu desespero é tamanho, visceral, retorcendo-se por inteiro como se ele tivesse recebido todos aqueles tiros. A cena é forte. E a metáfora também. Um tiro nunca se restringe a uma vítima. Atiram gravemente em outras vidas, fuzilam pequenos cubinhos da memória.
Em um filme anterior, O Canto do Haiti (1988)Peck também havia trabalhado com a experiência das práticas dos membros da milícia paramilitar haitiana. Nesse caso, o personagem da vez era Joseph Bossuet (também interpretado por Patrick Rameau), poeta ex-prisioneiro no Haiti e anos depois vai morar em Nova York. Em uma de suas visitas assíduas a uma pequena livraria haitiana na cidade americana, ele reconhece um de seus torturadores.A partir de então, toda sua vida profissional, afetiva, familiar é desregulada por esse encontro.
Os passos tristes da narrativa de Sarah paradoxalmente possuem uma resistência em recordar. Nem as boas lhe servem mais. Ela carrega consigo uma secura, uma zona escura, uma mágoa sem remédio, uma solidão dissidente. Um eterno escuro de uma mente com lembranças. Ao mesmo tempo, ela luta contra seu desespero, atina que a memória não anda apenas de marcha ré e palmilha vagamente na história a contrapelo do drama haitiano e latino-americano: “Faz tempo que minha história deixou de ser exclusivamente minha, e passou a ser de muitos outros”.
A história de Sarah retratada no filme não é nova. Somente no Brasil ouvem-se frequentemente, até hoje, muitas histórias obscuras ocorridas tanto no regime civil-ditatorial quanto em regimes de democracia limitada. O risco disso é um só: a banalização e o tratamento burocrático de cada dessas histórias como mero “mais um”. A história não se resume a números. Quando se trata de tortura, coerção, tolhimento, temos que escutar essas histórias como se ouvíssemos sempre pela primeira vez. Porque a história é sempre outra, o indivíduo é sempre outro, a memória é sempre outra. Inimiga mortal do repouso, a memória é “a consciência inserida no tempo”, diria o poeta Fernando Pessoa, cujo horizonte é sempre estratégico.
Raoul Peck é um cineasta que tem lado: o das vítimas.
Longa vida à oposição que, malgrado de erros e aflições, aposta em um novo rascunho de utopia.
Fonte: Brasil de Fato
Foto: Berlinale/Reprodução