Por Raul Fitipaldi, para Desacato.info.
(2015) «Um dia […] levantar-nos-emos duma ponta à outra do país e faremos a assembleia geral dos governadores do orvalho, o grande coumbite dos trabalhadores da terra para arrotear a miséria e plantar a vida nova.» Assim fala no livro Governadores do Orvalho, de Jacques Roumain, o personagem Manuel Jean-Joseph. Li esse livro há muito tempo, no decorrer dos anos 80 do século passado (óbvio). Tempos finais de macabras ditaduras que assolaram a América Latina e Caribenha.
A Revolução Haitiana, Revolta de São Domingos, foi longa (1791–1804) e é o primeiro grito de Independência da Nossa Pátria Grande. Um grito negro que teve seu eco mestiço e revolucionário em Cuba, em outro 1º de janeiro, muito depois, em 1959. O Haiti pagou e ainda paga um duríssimo preço pela ousadia frente ao imperialismo. Cuba também. A América Latina e o Caribe preferem pagar esse preço desde que o mercenário Colombo pisou na Espanhola, o que hoje conhecemos como Dominicana e Haiti. Sabe-se que crescemos rebeldes, nem todos, mas, a maioria.
Plantar a vida nova foi, é e será o sonho de todo latino-americano e caribenho digno. A luta contra a miséria teve altas e baixas desde Martí e Bolívar até Fidel e Chávez. Ornou-se de mártires e sujou-se com traidores. Em todo caso, a luta sempre esteve na ordem do dia. Há um orgulho libertário que se expande do ventre da Pacha Mama que calca alto nos originários e nos convertidos patriograndenses através de gerações, embora as instituições burguesas, a serviço dos poderosos tentem dominar o punho insurgente das juventudes, as mãos trabalhadoras que se convidam generosas a semear Outro Mundo Possível.
Temos sido fatalmente rancorosos contra o Império de todos os impérios. Assim será até que desapareça. A nata euro-centrista que desviou nossas culturas e nossa educação e o americanismo que terminaram de implantar as ditaduras dos 60, 70 e 80 serão vencidos. Não era fácil nos tempos em que li Governadores do Orvalho, não é agora, não será amanhã cedo. Tivemos derrotas muito duras. E vitórias tivemos e teremos até a batalha final. Venceremos. As lutas indígenas que iniciaram os irmãos bolivianos nos anos 40 começam a chegar a destino vitorioso, e hoje se fala diariamente dos problemas dos Povos Originários, embora, no Brasil, a ministra Kátia Abreu, não saiba muito quem eram os donos destas terras e a presidenta Dilma não os inclua em discursos de posse.
As mulheres vão obtendo lentamente o espaço político de decisão e a independência que seus corpos merecem. Sofregamente, lutando contra o machismo, o preconceito e os templos medievais de católicos e evangélicos. Os jovens são presente na ação, no discurso e na elaboração política e, por vezes, lembram os movimentos fraternos dos 60 e 70. Com linguagem e miras renovadas, e safando aos poucos dos ditados tecnocratas e da gelatina parisiense que medra nas universidades. Os jovens da periferia, especialmente, nos colocam em rota de esperança. Sentimentos revolucionários se cultivam às margens das grandes cidades. Bem-vindos esses lances de sonhos que por vezes interrompem o tédio dos não lugares da classe média estúpida e da pequena burguesia.
Há de se ter esperanças porque nem todas foram derrotas e porque já uma revolução cansada dos partidos tradicionais, com jovens barbudos, nos ensinou a estrada e o peso da frágua. Há de se ter esperanças porque fomos vencendo algumas batalhas, derrotando os velhos bipartidismos pós-coloniais. Porque enterramos a ALCA e nos fomos reconhecendo como filhos da Pátria Grande naquele novembro de 2004. Teremos esperança porque o ruim que possa nos estar governando fomos nós que o parimos e seremos nós que o corrigiremos ou mudaremos. Há de se ter esperança, porque somos testemunhas dos tempos piores, dos tempos em que os monopólios de comunicação nem se discutiam e o aborto era crime em todo lugar e ter outra orientação sexual era doença. Avançamos.
Há de se ter esperança e confiança na luta, porque essa qualidade de rebeldia, essa necessidade de independência nos fizeram diferentes de uma Europa Ocidental que só nos ensinou corrupção, ladroagem e nos depositou na miséria moral da cruz e da espada. Porque nunca invadimos ninguém, porque somos a região mais internacionalista da Terra, há de se ter esperança.
Como sonhava Manuel Jean-Joseph, a Nossa América Latina e Caribenha verá um dia o belo Haiti erguido, forte, profundo, e lembrará sempre que foi dele o primeiro passo da escravidão à liberdade. O Haiti é nosso mestre e deste lado de cá, devemos-lhe respeito, tirando dele as tropas invasoras e repondo a ele a joia histórica que nos brindou.
* É jornalista e co-fundador do Portal Desacato.info e da Cooperativa de Produção em Comunicação e Cultura – CpCC.
Imagem: William H. Johnson,Toussaint L’Ouverture, Haiti (1945) Source: Smithsonian American Art Museum.
Nice !!!