95 anos da Revolução Russa: entrevista ao historiador brasileiro Tito Belinni

Tito Belinni

Diário Liberdade – [Sturt Silva] Conversamos com o historiador brasileiro Tito Belinni. Na entrevista a seguir o historiador opina sobre 95 anos da Revolução Russa e as interpretações sobre os 70 anos do socialismo soviético.

Formado em História pela UNESP-Franca (São Paulo), onde atualmente está concluindo o doutorado, Belinni desde 2010 é docente do curso de História da Universidade Federal do Triângulo Mineiro – UFTM (Minas Gerais), trabalhando com a linha de pesquisa Teoria Marxiana e Trabalho.

Sua trajetória acadêmica e militante se misturam. Natural de Itanhaém, cidade turística do litoral de são Paulo, Tito saiu de lá aos 18 anos para fazer faculdade e nunca mais voltou para residir. Foi em Franca e através do curso de História que ocorreu a mudança política em sua vida, quando adquiriu uma posição de esquerda, socialista, mas sem o lastro marxiano ainda.

É nesse ponto que o Movimento Estudantil e a extensão universitária no Grupo de Alfabetização Paulo Freire foram cruciais, para abrir sua visão de mundo, de política, sociedade. Para ele os corredores da faculdade foram mais importantes que o banco na sala de aula. A partir do movimento estudantil, houve o engajamento no movimento político-partidário, no PT em 1996, partido que o historiador desfilou em 2007, após um apuramento intelectual do marxismo.

Desde então é militante do Partido Comunista Brasileiro, tendo inclusive sido candidato a prefeito em 2008 em Franca, interior de São Paulo. Também é um dos organizadores do projeto ‘Memórias da Resistência‘.

Diário Liberdade (DL): Há 95 anos os bolcheviques tomavam o poder na Rússia e mudavam os rumos da História contemporânea. Qual o grande legado que a primeira revolução proletária do mundo nos deixou?

(TB): Não podemos esquecer da Comuna de Paris, que ano passado completou 150 anos, levante contemporâneo a Marx e com forte influência anarquista. Além evidentemente da divergência da orientação teórica, podemos sem dúvida atribuir à Revolução Russa o caráter de primeira revolução proletária bem sucedida, com orientação marxista.

DL: Revolução Russa ou Revolução Francesa, qual das duas impactou mais as lutas progressistas e populares posteriores?

TB: A Revolução Francesa, não podemos negar, foi paradigmática, embora posterior à Revolução Americana. Ela apontou para um novo modelo de conquista e consolidação do poder político pelo uso da força física, das armas, ou seja, não foram os comunistas ou socialistas que inauguram na era moderna a Revolução Armada como instrumento legítimo para a conquista do poder, mas a própria burguesia. Entretanto a Revolução Francesa não completou suas promessas de inclusão do povo como partícipe ativo na formação de uma nova sociedade.

Já a Revolução Russa, além da ampla trajetória popular e de massas, foi a primeira grande e bem sucedida experiência de construção de um Estado Proletário, sob a orientação da Teoria Marxiana e do Leninismo. Sem dúvida foi mais emblemática. Influenciou a organização de partidos e movimentos em escala mundial. Foi enfática em seu projeto internacionalista e combatida pela burguesia dominante, com toda força. Cabe fazer uma ressalva apenas: na América Latina, a Revolução Cubana também foi determinante, decisiva no desenvolvimento de uma gama de ações e movimentos, reorientando inclusive os Partidos Comunistas. E essa revolução nasce nacionalista, caminhando ao socialismo e ao marxismo pouco tempo depois.

DL: Em relação à Revolução Russa, se foi revolução, não foi um simples golpe de estado. Por que Outubro de 1917 não pode ser considerado um golpe de estado?

Tito Belinni


TB: A Revolução de 1917 foi um amplo movimento de massas, com forte adesão de soldados russos, que tinha em suas fileiras milhares de militantes de soviets, ao lado do proletariado e de camponeses. Foi um amplo movimento popular, que levou ao poder o proletariado organizado enquanto classe para si. Uma Revolução Popular talvez sem precedentes na história mundial.

DL: Vladmir Ilitch Ulianov, Lênin, o líder da Revolução Russa, foi considerado por alguns como o teórico do totalitarismo. Como você vê esta questão?

TB: É uma crítica vulgar, simplista, que não leva em conta a profundidade teórica e prática do pensamento de Lênin. Lênin, aliás, foi um ferrenho crítico dos esquerdismos e do sectarismo. Apresentava o marxismo em toda sua vitalidade e amplitude, sem cair nas tentações simplistas que irão deturpar no período estalinista a teoria marxiana. Ele como ninguém soube aplicar o Marxismo à realidade russa. Um autor e militante que deve ser relido nos dias atuais, embora boa parte da academia ainda traga restrições a ele. Em ‘O Estado e a Revolução’, talvez os mais críticos indiquem um viés totalitário. Na verdade Lênin a teorizar sobre a Ditadura do Proletariado tenta contrapor, sem a falsidade típica da burguesia liberal, um poder da maioria sobre o poder da minoria. E ele não cria ilusões: diz que se trata da ditadura da maioria, ao contrário do que se experimenta até hoje, ou seja, uma ditadura da minoria, sob um “formalismo” democrático.

DL: A construção da III Internacional Comunista, assim como os primeiros congressos dos Bolcheviques no poder, não anunciam os “abusos” que acontecerão anos depois, principalmente no período que é chamado de stalinismo?

TB: Temos que entender que o contexto de vitória da Revolução Russa é um contexto altamente militarizado, de duas guerras mundiais. A Rússia foi violentamente atacada e sacudida internamente pela guerra civil e externamente. Não havia talvez, naquele momento, outra saída a ser adotada para assegurar a vitória dos revolucionários. O estalinismo é evidente que tem relação com esse contexto. Stálin foi hábil em manobrar e assumir o poder. Mesmo com todas as ressalvas apontadas anteriormente por Lênin. A criação da III Internacional, ainda sob a orientação de Lênin, representou um esforço brutal em assegurar o sucesso da Revolução Russa e sua articulação em nível mundial, em seu internacionalismo, abandonado anos depois por Stálin. A chamada “bolchevização” da III Internacional é o marco dessa mudança, sob os auspícios do stalinismo e da tese do “socialismo em um só país”.

DL: A historiografia, assim como cinema e a literatura está imersa de construções sobre o período soviético numa perspectiva anticomunista. O período stalinista é comparado, ou até apresentando, com nazi-fascismo, só que de um viés esquerdista. No entanto, parte da esquerda tem usado como resposta a isso uma literatura considerada “marxista vulgar”. Como exemplos, podemos citar ‘Stalin: um novo olhar’ de Ludo Martens, ‘Stalin: a história de uma lenda negra’ de Domenico Losurdo. Isso não é trocar seis por meia dúzia?

TB: Creio que a vitalidade do marxismo se faz pela superação do maniqueísmo também simplista que taxa qualquer leitura profundamente dialética de Marx como “revisionismo”. Autores como o próprio Gramsci, ainda hoje são vistos com desconfiança por setores ainda apegados ao marxismo vulgar ou ao stalinismo.

Recuperar a teoria marxiana é crucial, mas sabendo de seus limites. Marx anteviu muito da sociedade atual, mas a dinâmica do capitalismo financeiro hoje não tem precedentes na história. Não é Marx que trará as respostas prontas -até porque ele morre antes de completar sua principal obra- e sim nossa capacidade de interpretá-lo e ir além. Nesse sentido aponto que uma releitura de Marx, pelas novas gerações de militantes é crucial. Uma leitura de Gramsci e, atualmente, de Mészáros, também poderá ajudar. E, claro, a compreensão de nossos teóricos, como Caio Prado Júnior, Florestan Fernandes, Carlos Nelson Coutinho, o próprio Mariátegui, que tentou uma interpretação latino-americana do marxismo.

Volto em Gramsci: temos que disputá-lo à esquerda, e não abandoná-lo aos teóricos pseudo-progressistas do liberalismo que tentam mutilá-lo, apartando-o de toda sua vida militante enquanto membro do Partido Comunista Italiano. Mas retomo o que disse no início: a leitura e releitura de Marx é fundamental. Creio que, infelizmente, os partidos de matriz marxista-leninista são mais leninistas em alguns momentos. Voltemos com vigor à Marx! Passa da hora.

DL: Além da vitória sobre o nazi-fascismo e da conquista de direitos dos trabalhadores no ocidente, teria outras conquistas que o proletariado mundial conquistou devido a esses 70 anos do chamado “socialismo real”?

TB: Talvez a mais importante de todas foi a demonstração da viabilidade da construção de um estado popular, proletário, revolucionário e comunista, mas também a insuficiência da tese do socialismo em um só país. É a retomada do materialismo histórico-dialético no seu sentido internacionalista, em sua necessidade mundial. Assim como o capitalismo e o neoliberalismo necessitam ser internacionalistas para sobreviverem, o movimento comunista, fundado na teoria marxiana, deve ser incansavelmente internacionalista. Superar as infantilidades nacionalistas que tentam nos fazer crer que há mais relação e identidade entre a burguesia e o proletariado de um mesmo país que entre o proletariado de diversos países. Sinto-me muito mais ligado aos trabalhadores de qualquer lugar do mundo do que à corja burguesa brasileira, que assassina direta ou indiretamente milhares de trabalhadores todos os anos. Devemos denunciar essa falácia.

DL: Socialismo, transição ao socialismo, capitalismo de estado, socialismo de mercado. Como explicar os 70 anos de socialismo realmente existente na URSS?

TB: Como a principal tentativa de criação de um Estado Proletário Comunista até hoje realizada. Com todos os percalços e dificuldades que um movimento revolucionário teria, enfrentando fortes inimigos mundialmente e internamente.

DL: Internamente o que o povo russo conquistou com a revolução? E os soviéticos?

Um dado que reli essa semana aponta algo importante: com o fim da União Soviética, a expectativa de vida do povo russo diminuiu em seis anos. Os antigos países da extinta União Soviética foram os mais vorazes adeptos do neoliberalismo. Levaram a desigualdade a níveis talvez jamais sentidos por seus povos. Deixo que o leitor reflita sobre isso.

DL: Onde foi o xeque-mate da revolução. Com morte de Lenin, em 36 com fim do sovietes, em 56 com o relatório secreto ou nos acontecimento do final da década de 80 e início de 90?

Há um encadeamento. Difícil precisar, mas indicaria que a morte prematura de Lênin, sem dúvida, facilitou o estilhaçamento da unidade frágil então existente. Desequilibrou a balança em favor de Stálin. Creio que a presença marcante de Lênin poderia ter levado a outros desdobramentos. Para onde iria, não temos como precisar, pois não há espaço para futurologia ou achismos na História. Mesmo com uma fictícia vitória de Trotsky, não temos como afirmar qual rumo a Revolução Russa teria tomado, mas certamente seria outra. Temos que nos lembrar que ele comandou o Exército Vermelho, e poderia também apontar para um outro tipo viés autoritário no comando da Revolução. Mas são suposições.

DL: Hoje ainda temos condições de presenciar revoluções como a russa?

TB: Sem dúvida que há espaços para revoluções no Século atual. Vamos presenciá-las sem dúvida, pois enquanto houver capitalismo, haverá contradições de classes e sua forma extremada, os antagonismos. O capitalismo financeiro atual tem aprofundado as desigualdades, criado oligopólios e ampliado a miséria da maioria da população mundial. Poderão ser revoluções como a russa, ou ainda como a cubana, a chilena ou a venezuelana. Mas isso também significa assumir que golpes militares de direita também são atuais e ocorrerão, como vimos recentemente em Honduras, Paraguai e na própria Venezuela. A burguesia é autoritária e cruel. Não nos iludamos. A mudança tão preconizada por Marx só ocorrerá com estudo profundo e, sobretudo, com a ação e a luta permanente, teoricamente orientada. A práxis comunista e revolucionária é ainda a maior das armas para os trabalhadores mundiais.

Entrevista concedida com exclusividade a Sturt Silva, repórter do Diário Liberdade no Brasil.

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