Por muito tempo hesitei ao me declarar feminista porque não tinha estudado o suficiente e acreditava que isso me separava do movimento. “Me identifico com o feminismo, mas não sinto que sou feminista porque ainda não li a teoria”, era o que eu dizia e já ouvi muita gente dizer. É verdade que o feminismo, principalmente uma considerável parcela do movimento brasileiro, se desenvolveu de forma bastante encastelada nas universidades, ganhando até o nome de feminismo acadêmico, mas não podemos limitá-lo a essas discussões construídas no ambiente fechado e excludente das universidades. Estudar, ainda mais estudar relações de gênero, continua sendo um privilégio para poucas, e ainda que seja muito enriquecedor e esclarecedor estar em contato com esse tipo de conhecimento, entendendo de forma contextualizada como surgiram ideias e conceitos que buscamos e lutamos na prática, o domínio teórico não pode ser uma barreira que nos separa, muito menos que se coloca numa posição superior àquela da experiência vivida todos os dias, por todas as mulheres — que está longe de ser única ou igual.
O início de toda conversa sobre quem é ou não feminista deveria partir sempre daquilo que foi proposto por Chimamanda Ngozi Adichie: “Feminista: a pessoa que acredita na igualdade social, política e econômica entre os sexos”. Resolvido isso, podemos voltar a falar de livros: ninguém precisa devorar a teoria para se declarar feminista, mas se você quer mergulhar em algumas leituras para entender melhor o movimento e expandir seus horizontes, ótimo! Pensando nisso e atendendo ao pedido que muitas fizeram na nossa pesquisa de público ano passado, e aproveitando que estamos na semana do Dia Internacional da Mulher e participando da Ação Nerd Feminista, hoje vamos listar alguns livros sobre feminismo que podem servir de referência e te ajudar a começar!
Sejamos Todos Feministas (Chimamanda Ngozi Adichie)
Por Anna Vitória
A cultura não faz as pessoas. As pessoas fazem a cultura. Se uma humanidade inteira de mulheres não faz parte da nossa cultura, então temos que mudar nossa cultura.
A transcrição do discurso que a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie fez no TED em 2013 é a melhor porta de entrada que qualquer pessoa pode ter para o feminismo. É dele que saiu a definição básica do que é uma pessoa feminista usada na introdução desse texto e também por Beyoncé, que sampleou o discurso, incorporando-o à sua música ***Flawless. De forma bem direta e clara, mas também bem-humorada, Chimamanda aponta diversas situações aparentemente banais onde o machismo se manifesta na vida das mulheres: por exemplo, quando o garçom dá a conta para o homem da mesa, presumindo que ele é quem paga pois os homens são provedores; ou a forma como nós, mulheres, somos educadas a competir com outras mulheres — mas não com relação à carreira, o que ela acredita que seria uma competição benéfica, mas sim pela atenção dos homens. Adichie também fala que meninos são criados a partir de uma ideia de masculinidade muito limitada, que lhes nega a chance de serem mais humanos, vulneráveis, o que contribui para a construção de uma identidade de gênero pautada pela brutalidade.
A espinha dorsal do discurso é mostrar o caráter de gênero intrínseco a esses problemas, sejam os da ordem cotidiana até as coisas maiores, como a desigualdade salarial, a falta de representação política e o déficit educacional de mulheres em países menos desenvolvidos. Chimamanda relaciona essas questões ao machismo estrutural e também desconstrói o estereótipo negativo do feminismo, concluindo que, para o mundo mudar para melhor, é preciso que sejamos todos feministas.
#MeuAmigoSecreto – Feminismo Além das Redes (Coletivo Não Me Kahlo)
Por Analu Bussular
Mais do que servir à conscientização dos homens, porém, a hashtag [#MeuAmigoSecreto] se estabeleceu como uma forma de denúncia das situações pelas quais nós mulheres passamos, nos relembrando que não estamos sozinhas e que é possível, sim, levantarmos a voz.
#MeuAmigoSecreto é um livro essencial da bibliografia feminista porque ele foca em dados, e não na teoria. Você não está lendo aqui que a teoria não é importante, mas tem horas que só um monte de fatos e números jogados na sua cabeça podem funcionar como um argumento cabal de que sim, nossa sociedade precisa e muito do feminismo. Passando por diversos temas como assédio, mercado de trabalho, mulheres negras e aborto, Bruna de Lara, Bruna Rangel e Gabriela Moura, do Coletivo Não Me Kahlo, fizeram um excelente compilado de informações para que todos possam visualizar o problema da questão de gênero na sociedade atual de forma extremamente prática. Se alguém ler esse livro e continuar duvidando é porque prefere realmente continuar cego.
O livro é a primeira publicação da Coleção Hashtag, que explora temas que repercutiram na internet, numa referência direta à hashtag #MeuAmigoSecreto, que em 2015 mobilizou milhares de mulheres na rede a compartilhar histórias de abuso, assédio e violência sofridos por homens de seu convívio, desmistificando a ideia que o homem agressor é um desconhecido distante. Você pode ler alguns dos relatos mais impactantes nessa matéria da Galileu.
Um Teto Todo Seu (Virginia Woolf)
Por Rafaela Venturim
Na verdade, arrisco-me a dizer que Anônimo, que escreveu tantos poemas sem cantá-los, com frequência era mulher.
Um Teto Todo Seu foi o primeiro contato que tive com qualquer livro feminista e até hoje me considero sortuda por isso. Foi também meu primeiro contato com Virginia Woolf, mais conhecida por seus romances. É uma obra essencial para quem quer repensar a história que aprendeu na escola (afinal, onde estavam as mulheres?) e repensar, principalmente, o que é ser mulher e lutar para conseguir lugar em um espaço majoritariamente masculino — no caso dela, a literatura. Em uma das passagens mais marcantes, Woolf cria uma irmã fictícia para Shakespeare, a quem chama de Judith. Judith teria o mesmo potencial do irmão, mas sua criação com portas fechadas faria com que seu destino fosse completamente diferente. Confinada, sem poder estudar como o irmão, a personagem acaba cometendo suicídio e seu talento morre com ela, silenciado, ao contrário do que acontece com seu irmão, criador de um legado que até hoje é reconhecido e venerado.
É assim que Virginia Woolf traça brilhantemente um panorama da mulher que gostaria de escrever em épocas passadas (e atuais, se olharmos bem), inclusive aquela que, para isso, precisava recorrer a pseudônimos masculinos, uma vez que obras masculinas eram bem aceitas — um problema que existe até hoje, como no caso de Joanne Kathleen Rowling, autora da saga Harry Potter, que decidiu assinar sua obra com suas iniciais para que a recepção dela no mercado não fosse afetada pelo estigma da mulher escrevendo fantasia. Não tem como esquecer este livro.
A Mística Feminina (Betty Friedan)
Por Jéssica Bandeira
A mística feminina permite e até incentiva na mulher a ignorância na questão de sua identidade. Afirma que é possível responder à pergunta “quem sou eu” dizendo “mulher de Tom e mãe de Maria”.
O barulho que A Mística Feminina de Betty Friedan causou quando foi publicado, em 1963, foi muito semelhante ao de Simone de Beauvoir com O Segundo Sexo. No entanto, ao contrário da autora francesa, Betty centrou sua análise na mulher norte-americana e em entender aquilo que ela nos apresenta logo nos primeiros capítulos: a mística feminina. Sabe aquelas propagandas dos anos 50 que vemos de vez em quando circulando pela Internet? Por exemplo, a de uma mulher que, quando indagada pelo marido sobre o segredo para fazer tantas tarefas durante o dia, responde que é por causa das vitaminas que toma? Ou os desenhos que retratam donas de casa felizes, preparando o café da manhã dos filhos e do marido? É a mística feminina, um termo criado pela autora para designar a mistificação e glorificação da dona de casa.
Propagandas e filmes, durante os anos 40 e 50, contribuíram sistematicamente para que as mulheres sentissem que seu lugar pertencia à esfera privada, não mais à pública, uma vez que a Segunda Guerra Mundial havia terminado e era hora de os homens retomarem seus postos de trabalho. Betty Friedan, que era psicóloga e redatora de uma revista para mulheres, assistiu de perto o descontentamento das mulheres que não sabiam por que se sentiam tão vazias e acabavam desenvolvendo problemas mentais como depressão. Seu livro é uma pesquisa bastante vasta, em que ela nos mostra através de entrevistas e dados como a mística feminina atuava para fazer a manutenção dos lugares sociais de homens e mulheres. Ainda que o livro soe muitas vezes datado, é uma ferramenta importante para pensarmos nos mecanismos que ainda tentam nos colocar em um determinado lugar. Será que eles são diversos daqueles dos anos 50?
Backlash: O Contra-Ataque na Guerra Não Declarada Contra as Mulheres (Susan Faludi)
Por Anna Vitória
Considerados em conjunto, entretanto, todos estes códigos e bajulações, estes murmúrios e ameaças e mitos, levam irreversivelmente numa única direção: tentar mais uma vez prender a mulher aos seus papéis “aceitáveis”
Backlash é uma expressão que pode ser traduzida como reação contrária a um acontecimento, evento ou tendência. A jornalista americana Susan Faludi usa esse título para o livro em que descreve como o movimento feminista e suas pautas sofreram esse contra-ataque — que ela chama de refluxo antifeminista — durante os anos 80 nos Estados Unidos, uma resposta aos movimentos de contracultura e aos avanços sociais que aconteceram no país entre os anos 60 e 70. Sua tese é de que embora a resistência à emancipação da mulher seja parte estrutural da nossa cultura, o ataque mais direcionado vem em ondas, sempre como resposta a qualquer tentativa de avanço, e isso acontece meio que desde sempre. Ela descreve como, por exemplo, a criação do ideal da mulher do lar, a famosa american wife dos anos 50 — representada pela figura de Donna Reed — que vive para servir ao marido e os filhos, cercada de seus eletrodomésticos (um exemplo de passividade que é, ao mesmo tempo, uma consumidora ideal) surge como resposta à mulher que começou a ocupar o mercado de trabalho durante a Segunda Guerra Mundial, que passa a ser rejeitada não só através da representação midiática como também por meio de retrocessos de direitos que precarizavam o trabalho feminino.
Esses movimentos de avanços e retrocessos fazem parte da história do feminismo e no livro a autora se debruça de forma bem detalhada pela maneira como eles aconteceram na década de 80 em diversas frentes. Talvez os capítulos sobre política e economia, com minúcias bem específicas sobre projetos de lei e questões internas da máquina política do país não interesse a muitas pessoas, mas os capítulos dedicados à cultura, principalmente ao cinema, são imperdíveis, pois mostram o surgimento de estereótipos femininos negativos e clichês narrativos que são péssimos com as mulheres. Ele mostra como a cultura pop e o jornalismo contribuem para a construção de uma opinião pública que afeta diretamente a vida das pessoas, abrangendo decisões políticas importantes e mostrando que nunca “é só um filme”, e oferece ferramentas que dão margem para estender a análise para o nosso momento atual, com o crescente avanço do conservadorismo após uma onda de aparente boom feminista catalisado pelas redes sociais.
Uma História do Feminismo no Brasil (Céli Regina Jardim Pinto)
Por Anna Vitória
Esse livro fininho e de leitura fácil e prazerosa cumpre um importante papel que é contar a história do feminismo a partir do contexto histórico brasileiro, uma condição essencial para entendermos a forma como o movimento se construiu no país, como ela influencia a nossa situação atual, e como as transformações históricas vividas pelo Brasil moldaram a forma como os direitos das mulheres foram conquistados. Fazer esse recorte é importante porque enquanto os anos 60 foram marcados pela luta feminina pela liberdade sexual nos Estados Unidos e na Europa, de onde vieram aquelas fotos clássicas de manifestações que fazem parte do nosso imaginário popular do que é o feminismo, durante o mesmo período o Brasil passava por uma ditadura militar, período onde essas reivindicações perdiam espaço numa luta por direitos políticos e civis ainda mais básicos, com pouco espaço para pautas exclusivamente femininas. No entanto, foi também nesse período que mulheres começaram a se unir em associações de bairro para pedir por melhores condições de vida que tem tudo a ver com pautas feministas, como o direito à creche para as crianças.
Apesar de não entregar uma análise aprofundada sobre os movimentos e se limitar, na maioria das vezes, a descrever e relatar os acontecimentos, o livro faz recortes interessantes de raça e principalmente de classe — por exemplo, ao tratar da luta pelo direito ao voto, um movimento de mulheres brancas e abastadas que excluía sistematicamente mulheres negras, pobres e analfabetas. É interessante lê-lo juntamente com o Backlash, uma vez que é possível enxergar paralelos interessantes entre um contexto e outro e, assim, entender os avanços e retrocessos sociais do movimento brasileiro. O livro nos ajuda a entender, principalmente, a dificuldade que ainda temos de trazer o feminismo para a esfera política da ação, fazendo-o avançar para além das universidades e das ONGs, que tem tudo a ver com a nossa democracia jovem e incerta e o analfabetismo político do país.
Má Feminista (Roxane Gay)
Acredito que o feminismo é baseado em apoiar as escolhas das mulheres ainda que não sejam escolhas que nós faríamos.
A ativista Roxane Gay se define como uma “má feminista” porque não deseja ser colocada num pedestal. Por que feministas precisam ser perfeitas? Será que existe um jeito certo de ser feminista? Isso não significaria continuar dizendo que há um jeito errado de ser mulher? Por que tememos nossas contradições? Combinando doses de humor ácido e seriedade, Gay reúne no livro Má Feminista alguns ensaios sobre gênero, sexualidade, entretenimento, raça e política, compartilhando um pouco de sua experiência como mulher negra, gorda e feminista e seu interesse por cultura pop.
Os textos mais impactantes são aqueles em que Gay discute violência sexual, direitos das mulheres e racismo. Essa leitura de alguma maneira me fez encarar as minhas contradições e as do movimento feminista por outro ângulo: mais do que revelar fragilidades, essas contradições nos lembram que nossas vivências e urgências são realmente diversas e que justamente por isso devemos pensar em mulheres no plural, jamais como uma categoria homogênea.
Mulheres, Raça e Classe (Angela Davis)
Por Sâmia Pereira
As mulheres negras eram mulheres de fato, mas suas vivências durante a escravidão?—?trabalho pesado ao lado de seus companheiros, igualdade no interior da família, resistência, açoitamento e estupros?—?as encorajam a desenvolver certos traços de personalidade que as diferenciavam da maioria das mulheres brancas.
O feminismo interseccional, corrente que tem sido cada vez mais presente nos debates de gênero, enxerga as opressões às quais as mulheres são submetidas não como hierarquias, mas, sim, como interconexões. É sob essa perspectiva que Angela Davis, socióloga, filósofa e ex-militante do Partido dos Panteras Negras, analisa através dos marcadores de raça, classe e gênero da condição das mulheres negras na sociedade contemporânea. Tecida por meio de um pano de fundo sociohistórico, a argumentação de Davis remonta desde a escravidão (e seu legado) até às lutas por direitos civis para reconstituir o modo com que as lutas das mulheres brancas secundarizaram ou, em muitos casos, invisibilizaram as demandas das mulheres negras. Se limitações políticas preteriam violência sexual e subempregos à pautas como feminilidade compulsória, a emancipação de umas só poderia resultar na subalternidade e desumanização de outras.
Em um mundo em que as estruturas racistas e machistas permanecem intocadas, especialmente em época de backlash conservador em escala global, Mulheres, Raça e Classe permanece atualíssimo. Em seu discurso na Women’s March, ocorrida em janeiro deste ano, Davis faz um convite às mulheres negras, agentes de uma história que corre constante risco de apagamento, a recontar e lutar por suas narrativas, como forma de resistência a tempos tão sombrios. Mulheres, Raça e Classe é uma obra central para compreender o feminismo negro e, também, um convite à empatia. Certamente é um livro para se ter na cabeceira.
O Segundo Sexo (Simone de Beauvoir)
Por Anna Vitória
Ninguém nasce mulher, torna-se mulher.
Por sua riqueza, profundidade e complexidade, talvez não seja correto classificar O Segundo Sexo como uma leitura para iniciantes. Ao mesmo tempo, é praticamente impossível se aventurar em qualquer entendimento mais aprofundado e teórico sobre feminismo sem esbarrar em Simone de Beauvoir e seu legado infinito, de modo que talvez seja melhor começar de uma vez — até porque não é um livro que se dá conta de uma só vez, e mais uma presença cativa em nossas cabeceiras, uma leitura-projeto-de-vida que se pode fazer continuamente ao longo da vida e sempre vai nos trazer novas impressões.
Não é uma leitura exatamente fácil, mas a bagagem teórica que pode nos faltar ao encarar algumas das áreas nas quais a autora entra ao falar da condição da mulher (como a psicanálise ou a filosofia existencialista) é superada com a identificação da experiência vivida, e é ela que guia nosso entendimento mesmo nos tópicos mais espinhosos. O livro foi publicado em 1949 e é assustadoramente atual e o que ela constrói ao longo de dois densos volumes é uma análise da forma como a mulher, desde sempre, seja na História ou a partir do seu nascimento, é condicionada a ser o apêndice masculino, nunca suficiente por conta própria, uma condição que, ela garante, só vai mudar quando conseguirmos a liberdade existencial associada à oportunidade de sermos e fazermos o que quisermos, e a partir daí descobrirmos quem somos por nós mesmas.
Fonte: Valkirias.
Nossa, obrigada!