Por Ana Russi.
Em uma das caçadas a materiais sonoros catarinenses que o Solo Catarina costuma realizar na internet, encontramos uma mina de ouro!
Com a revalorização das mídias sonoras antigas, de vez em quando surgem, na rede virtual, pessoas que se prestam a tarefas incomuns, mas muito úteis pra quem gosta de história da música: por exemplo, digitalizar fitas cassete (ou K-7) – aquelas clássicas fitas magnéticas lançadas em 1963 e que até meados da década de 90 a gente ainda escutava nos walkmans da Aiwa.
Pois bem, um dos representantes deste seleto grupo dos bem intencionados com a memória da música é Edson Luís de Souza, morador de Jaraguá do Sul e sobrevivente da cena underground do norte de Santa Catarina. Ele mantém o blog Demo-Tapes Brasil, no qual disponibiliza seu grande acervo pacientemente catalogado e disponibilizado para download.
Passeando pelo site, entre muitas boas lembranças, encontramos o K-7 Isto Não É Tudo!! da banda Permissivos. A banda “aconteceu” em Blumenau na década de 90, e apesar dos arranjos muito elementares calcados no punk rock e hardcore, conquistou fãs com suas letras originais, que dialogavam com a política e o cotidiano do Vale do Itajaí.
A fita começa com Pecados Capitais – música que fala dos abismos sociais e do consumismo:
O mundo é maravilhoso quando se é rico, bonito e famoso… (Trecho de Pecados Capitais)
Na sequência, 4 Semanas e Meia e Um Funeral mira na futilidade das relações rasas e critica o romantismo adocicado. O título tem mais sentido ao ser contextualizado na década de 90, que começou com a explosão da música de massa – como a enjoativa balada Quatro semanas e meia de amor (da dupla Luan e Vanessa), que tocou incessantemente nas rádios do Brasil – e nos cinemas, foi atravessada pela produção exorbitante de comédias românticas tais como a clássica Quatro Casamentos e Um Funeral, a qual era embalada pelas canções “bonitinhas” do Yet Yet Yet. A composição da Permissivos, bem mais agressiva, ataca a figura da “princesa” enquanto ícone da cultura de superficialidade que ganhava volume em Blumenau e em todo o país.
A fita torna-se ainda mais interessante a partir da terceira música, Ação Prolongada – momento que relembra a invasão do Kuwait pelo Iraque, episódio que foi o estopim para a Guerra do Golfo Pérsico. Embora o lançamento do K-7 Isto Não É Tudo!! tenha ocorrido na década de 90, é interessante como a composição tem um tom meio premonitório, antecipando os eventos que se estenderam durante 15 anos após a circulação da fita. Nela, o grupo se posiciona contra o Iraque por este ser o “lado forte” da ocasião, ao iniciar uma violenta ação contra o minúsculo país vizinho. A letra não poupa ninguém: ataca desde o fundamentalismo religioso até a omissão “interessada” da Organização das Nações Unidas. Depois dizem que rock não é música educativa…
Na década de 90, que para muitos é considerada “a última do verdadeiro rock”(*), a Permissivos tocou ao lado de bandas importantes da região, como a The Zordem (em atividade até hoje), e abriu shows de bandas como a gaúcha Maria do Relento. O guitarrista Cristiano atualmente integra a banda Stuart.
A composição Um rapaz romântico tem ideia semelhante à da primeira faixa. Um punk rock bem clássico (aceleração, poucos acordes, bateria sem variações) para anunciar a negação a “cravos na lapela”, “mandar flores” e outras atitudes típicas dos “príncipes”.
Cerveja, a quinta música, está entre as melhores do álbum, por ser a mais criativa e bem arranjada, com uma levada hardcore que lembra o Ultraje a Rigor. A letra é uma primorosa homenagem aos encontros sociais e intelectuais promovidos pela bebida (vamos lembrar que a banda é de Blumenau, terra onde a cerveja é quase uma religião). Pra quem aprecia (a bebida, a banda e/ou o gênero), vale a pena escutar:
Na sequência, o grupo passeia no mundo obscuro da prostituição, fazendo uma descrição superficial, mas verdadeira, dos negócios de agências de acompanhantes, em Satisfação Garantida (“ou seu dinheiro de volta”).
Embora Isto Não É Tudo!! não seja um exemplo de capricho em termos de produção musical, merece atenção o caráter transgressor presente integralmente no álbum. Em seu livro Rock and Roll: Uma História Social, Paul Friedlander, caracteriza o punk como um estilo heterogêneo, compreendendo uma miscelânea complexa de ingredientes e orientações, que se espalhou sobre uma infinidade de artistas. Palavras eram vomitadas por vocalistas sem noções prévias de tom e melodia. A maioria das letras refletia sentimentos em relação à sociedade corrupta e em desintegração à situação difícil dos companheiros da subcultura. A música e as letras revelavam uma atitude de confrontação que refletia graus variados de ódio justificado, de performance técnica, exploração artística do choque de valores e intenção de renegar as instituições oficiais de produção de música (2004, p. 352).
Assim, a Permissivos merece destaque pela sólida participação na construção do rock blumenauense daquela década. Era uma banda querida do público pela atitude punk que gritava na desorganização dos arranjos, nos solos de guitarra tocados fora da harmonia, no vocal um tanto desafinado, na diversão garantida de seus shows e em letras que traziam críticas criativamente construídas. Este comportamento é evidente sétima faixa, Le Etat Et Moi, quando o grupo volta a mostrar seu lado mais politizado:
Eu mando nessa porra, quem mandou me eleger?
Eu sou o estado, você tem que obedecer
Enquanto estiver aqui e o meu mandato exercer
Eu posso fazer tudo o que eu bem entender!
Sentado no Planalto eu vejo o povo se foder
De braços cruzados, vendo tudo acontecer!
Se o caldo engrossar, viajo para o exterior,
Deixando toda a merda para o meu sucessor!
Povo ignorante, gosta de ser enganado!
Não percebe a corrupção comendo solta no Senado?
Por que eu deveria dar verbas à educação,
Se a cultura é uma arma, quando posta em certas mãos?
Letra de Le Etat Et Moi
A música de encerramento denomina-se Festa Alemã e traça, de certa forma, um retrato das edições da Oktoberfest dos anos 90 em Blumenau. Tudo bem que hoje a festa está reduzida a especulação da embriaguez e do sexo fácil, ambos travestidos de uma pseudo-germanidade que não tem nada a ver com a real história da colonização do Vale. Mas em outros tempos, a Oktober foi uma festa muito rock ‘n’ roll, chegando mesmo a ter festivais agregados onde o público conferia grandes shows de bandas nacionais. A música em questão aborda de forma divertida este processo de transição para uma festa muito mais turística e mais distante deste gênero musical.
A fita Isto Não É Tudo!! da banda Permissivos, está disponível para download neste link disponibilizado pela Demo-Tapes Brasil. Vale a pena, também dar uma boa olhada em todo o site, já que o organizador separa as músicas por faixa, digitaliza os encartes, fornece dados sobre as bandas e até fotografa os cassetes! Pra quem viveu a cena metal, indie, folk e punk registrada nestas pequenas joias magnéticas por todo o Brasil, a visita é obrigatória.
Você também pode conferir trabalhos de bandas catarinenses disponíveis no site, clicando aqui. Enquanto novas postagens do Solo Catarina não aparecem, divirta-se viajando no tempo com as fitinhas!
* Para alguns estudiosos, a concepção clássica de rock teve seu “sepultamento’ com o lançamento do álbum OK Computer, da banda britânica Radiohead, em 1997. O disco causou impacto com uma proposta estéril e fria, predizendo a queda do gênero e ascensão de outras propostas ligadas ao pop e à música eletrônica. Segundo Carlos Eduardo Lima, o disco “modificou a música feita na Inglaterra e abriu espaço para algo ainda mais distante e plástico”. Para saber mais, leia aqui.
FRIEDLANDER, P. Rock and roll: uma história social. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 2004.
(Fonte das imagens: Demo-Tapes Brasil)
Fonte: Solo Catarina.