Por Lilian Venturini e João Paulo Charleaux.
Dilma Rousseff falou por 45 minutos em seu discurso aos senadores durante o julgamento de seu impeachment na manhã desta segunda-feira (29). Foi o momento em que a presidente afastada, prestes a ser definitivamente retirada do Palácio do Planalto, pôde desenvolver sua narrativa sobre o processo.
Como ouvintes no plenário, Dilma tinha não apenas os senadores, considerados “juízes” do impeachment. Também estavam lá convidados, da defesa e da acusação, que da galeria do Senado acompanharam o seu discurso, entre eles os apoiadores Luiz Inácio Lula da Silva, ex-presidente e seu padrinho político, e o cantor e compositor Chico Buarque.
Por 15 vezes, Dilma falou em “democracia”, no contexto de sua tese central: o impeachment, apesar de aparentar legalidade formal, é um golpe parlamentar para retirar do poder um governo legitimamente eleito e substituí-lo por outro, com uma agenda oposta àquela escolhida pelas urnas em 2014. A democracia, afirmou Dilma aos parlamentares, também está “no banco dos réus”.
“Lembrem-se do terrível precedente que a decisão pode abrir para outros presidentes, governadores e prefeitos. Condenar sem provas substantivas. Condenar um inocente”, disse ela. “Não aceitem um golpe que em vez de solucionar, agravará a crise brasileira.”
Formalmente, Dilma é acusada de ter cometido crimes de responsabilidade pela prática de pedaladas fiscais e pela assinatura de decretos que aumentaram os gastos do governo. Desde o dia 12 de maio, ela está afastada das funções, assumidas pelo seu vice, o hoje presidente interino Michel Temer.
Evocando sua trajetória política e sem mencionar nenhuma vez seu partido, o PT, a presidente afastada fez um apelo aos senadores para que não condenem uma “inocente” e para que não “aceitem um golpe”. “Cassar em definitivo meu mandato é como me submeter a uma pena de morte política”, afirmou Dilma.
São necessários 54 votos entre os 81 senadores para que Dilma seja cassada. A votação deve ocorrer entre terça-feira (30) e quarta-feira (31). Se confirmada a já esperada derrota, a petista ficará inelegível por oito anos e Temer será efetivado no cargo, com mandato até o fim de 2018.
Abaixo, o Nexo organizou os eixos do discurso inicial da presidente afastada – depois, ela viria a responder a perguntas dos senadores. É nessa fala em que estão condensadas as ideias que ela pretende deixar “para a história”, já sabendo que a derrota no plenário é algo praticamente certo.
Biografia pessoal e luta pela democracia
O julgamento do impeachment é, segundo Dilma, parte da mesma luta pela democracia iniciada na clandestinidade há quase 50 anos. A petista fez paralelos entre o julgamento e a prisão a que foi submetida em 1970, quando era militante do VAR-Palmares (Vanguarda Armada Revolucionária Palmares), grupo guerilheiro que se opunha ao regime militar. Na cadeia, Dilma foi submetida à tortura e diz trazer ainda hoje as “marcas dolorosas” no corpo e na alma. A palavra “tortura” foi usada cinco vezes nos 45 minutos de discurso.
A presidente afastada se lembrou de quando foi julgada por membros da Justiça Militar na década de 70. Disse que nem mesmo quando torturada traiu seus princípios e compromissos, razão pela qual, agora, não cederia ao “obsequioso silêncio dos covardes”. A presidente afastada fez menção ainda ao câncer no sistema linfático que teve em 2009. Dilma disse ter visto “a face da morte” na tortura e na doença, mas, hoje, teme apenas “a morte da democracia”.
“Na luta contra a ditadura, recebi no meu corpo as marcas da tortura. (…) Na época, eu era muito jovem. Tinha muito a esperar da vida. Tinha medo da morte, das sequelas da tortura no meu corpo e na minha alma. Mas não cedi. Resisti”
“Por duas vezes vi de perto a face da morte: quando fui torturada por dias seguidos, submetida a sevícias que nos fazem duvidar da humanidade e do próprio sentido da vida; e quando uma doença grave e extremamente dolorosa poderia ter abreviado minha existência”
Elite contrariada e ‘golpe’
Três ex-presidentes brasileiros foram citados nominalmente por Dilma na leitura de sua defesa: Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e João Goulart. Ao citá-los, a petista se colocou como vítima dos mesmos movimentos golpistas da “elite conservadora brasileira” que abalaram a democracia no passado.
Dilma citou a “hedionda trama” da “República do Galeão” contra Getúlio. O episódio, ocorrido nos anos 1950, já havia sido mencionado indiretamente em março pelo ex-presidente Lula. O petista havia se referido à Operação Lava Jato como “República de Curitiba”, cidade onde ocorre o julgamento do caso em primeira instância.
Juscelino foi citado como vítima do “episódio de Aragarças” – trama de militares da Força Aérea que, em 1959, tentaram sacá-lo da presidência bombardeando o Palácio do Catete, então sede do governo. Jango foi lembrado como vítima do golpe que, a partir de 1964, instaurou o último período de ditadura militar no Brasil, que duraria até 1985. Na leitura da petista, seu processo de impeachment é mais um capítulo das décadas de luta entre presidentes democráticos e as “elites conservadoras e autoritárias” do Brasil.
“Getúlio Vargas (…) sofreu uma implacável perseguição; a hedionda trama orquestrada pela chamada “República do Galeão, que o levou ao suicídio. ( …) Juscelino Kubitscheck (…) foi vítima de constantes e fracassadas tentativas de golpe, como ocorreu no episódio de Aragarças. (…) João Goulart (…) superou o golpe do parlamentarismo mas foi deposto e instaurou-se a ditadura militar, em 1964. (…) Hoje, mais uma vez, ao serem contrariados e feridos nas urnas os interesses de setores da elite econômica e política nos vemos diante do risco de uma ruptura democrática”
Articuladores do ‘golpe’
O único político vivo citado nominalmente por Dilma foi, além de Lula, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), chamado de “vértice da aliança golpista”. A palavra “vértice” é usada em relação a duas outras pontas do que seria o triângulo do impeachment, na versão dela: o PSDB, cuja pressão sobre seu mandato se fez sentir desde a divulgação do resultado eleitoral de 2014, além de outros políticos que, segundo ela, queriam barrar a Lava Jato, maior operação contra a corrupção já realizada no país. Para Dilma, foi isso que criou o clima político necessário para fazer o impeachment avançar, “com apoio escancarado de setores da mídia”.
Cunha está afastado do mandato e da presidência da Câmara por ordem do Supremo, onde é réu em dois processos que envolvem corrupção, evasão de divisas e lavagem de dinheiro, além do processo de cassação em curso na Câmara pela acusação de ter mentido a seus colegas sobre a existência de contas na Suíça.
O peemedebista foi quem abriu o processo de impeachment contra a petista, em 2 de dezembro de 2015 e conduziu a aprovação em plenário da Câmara da autorização para a abertura do processo, em 17 de abril – depois disso acabou afastado pelo Supremo. Para Dilma, houve uma “chantagem explícita” da parte de Cunha, pois a denúncia do impeachment só foi aceita por ele depois que o governo negou-lhe apoio para salvar o próprio mandato.
“Todos sabem que este processo de impeachment foi aberto por uma ‘chantagem explícita’ do ex-presidente da Câmara, Eduardo Cunha, como chegou a reconhecer em declarações à imprensa um dos próprios denunciantes. Exigia aquele parlamentar que eu intercedesse para que deputados do meu partido não votassem pela abertura do seu processo de cassação”
Segundo Dilma, a atuação de seus opositores foi o “elemento central” “para o aprofundamento da crise econômica”, já que, segundo ela, eles agiram para barrar as medidas de socorro à economia defendidas pelo governo. “Foi criado assim o desejado ambiente de instabilidade política, propício a abertura do processo de impeachment sem crime de responsabilidade”, afirmou.
Mulheres, misoginia e minorias
Dilma fez um forte apelo às mulheres. Ainda em março, antes de ser afastada, vieram de grupos e movimentos ligados a direitos da mulher parte dos atos em defesa à permanência da petista no cargo.
Ao falar em “mulher”, Dilma destaca sua própria biografia, pelo fato de ser a primeira mulher eleita presidente da República, mas acena à sua principal base de apoio nesta etapa. Diante de um Congresso formado majoritariamente por homens, ela também associou a oposição feita a ela ao preconceito por ser mulher. “O governo de uma mulher que ousou ganhar duas eleições presidenciais consecutivas”, disse.
“As mulheres brasileiras têm sido, neste período, um esteio fundamental para minha resistência. (…) Parceiras incansáveis de uma batalha em que a misoginia e o preconceito mostraram suas garras, as brasileiras expressaram, neste combate pela democracia e pelos direitos, sua força e resiliência. Bravas mulheres brasileiras, que tenho a honra e o dever de representar como primeira mulher presidenta do Brasil”
Dilma ainda explorou a figura feminina para fazer um contraponto ao governo interino, o qual acusou de estar submetido a “princípios ultraconservadores” e distanciado das agendas de negros e homossexuais.
“(…) um governo que, já na sua interinidade, não tem mulheres comandando seus ministérios, quando o povo, nas urnas, escolheu uma mulher para comandar o país. Um governo que dispensa os negros na sua composição ministerial (…) Conquistas importantes para as mulheres, os negros e as populações LGBT estarão comprometidas pela submissão a princípios ultraconservadores”
Comparação com Temer
Dilma não citou Temer nenhuma vez. As referências ao vice, agora presidente interino, foram indiretas, por meio de adjetivos como “desleal”, “covarde”, “traidor” e “usurpador”. Como se estivesse em uma disputa eleitoral, Dilma tentou desqualificar o governo Temer.
“O que está em jogo são as conquistas dos últimos 13 anos”, afirmou Dilma, ao enumerar as principais ações de seu governo e de Lula. Nessa, a petista colocou o Bolsa Família, os programas de acesso à universidade, a valorização do salário mínimo e o Mais Médicos. Do lado oposto, Dilma criticou propostas de Temer que, segundo ela, são um “verdadeiro ataque às conquistas dos últimos anos”.
“A ameaça mais assustadora desse processo de impeachment sem crime de responsabilidade é congelar por inacreditáveis 20 anos todas as despesas com saúde, educação, saneamento, habitação. É impedir que, por 20 anos, mais crianças e jovens tenham acesso às escolas; que, por 20 anos, as pessoas possam ter melhor atendimento à saúde; que, por 20 anos, as famílias possam sonhar com casa própria”
O “congelamento” por 20 anos das despesas de governo é uma referência à proposta de Temer de criar um teto de gastos para o governo. A proposta ainda não foi aprovada pelo Congresso. Dilma ainda afirmou que seu substituto também mexerá na Previdência e nas leis trabalhistas, além de promover uma maior abertura para a iniciativa privada de áreas sensíveis e estratégicas para o país, como o petróleo da camada do pré-sal.
Os autos do processo
Dilma dedicou quase 10 minutos do discurso para a parte jurídica que envolve o processo contra ela. A presidente afastada rebateu a acusação de que cometeu crime de responsabilidade ao assinar três decretos de suplementação orçamentária e ao executar as pedaladas fiscais.
Dilma atacou a seletividade com que, segundo ela, o Tribunal de Contas da União apreciou os atos de seu governo e cuja manifestação serviu de base para o argumento da oposição. A petista lembrou também de decisões recentes do Ministério Público Federal do Distrito Federal que, em processo sobre as pedaladas, afirmou não reconhecer a prática de crime de responsabilidade.
Para Dilma, a ausência de fundamentação jurídica expõe a “fragilidade das acusações” e deixa claro que o processo está marcado por “um clamoroso desvio de poder”.
“Tem-se afirmado que este processo de impeachment seria legítimo porque os ritos e prazos teriam sido respeitados. No entanto, para que seja feita Justiça e a democracia se imponha, a forma só não basta. É necessário que o conteúdo de uma sentença também seja justo. E no caso, jamais haverá justiça na minha condenação”