50 anos do golpe contra Allende: “Sou um atleta com consciência social”

Entrevista exclusiva com Carlos Caszely, ex-jogador de futebol da seleção chilena e ídolo do Colo Colo na década de 70. Num ato protocolar recusou-se a cumprimentar Pinochet e em retaliação sua mãe foi detida e torturada pela ditadura. Sua visão da política, da democracia e do jogo. Jornalista e professor de Educação Física, nunca escondeu nada.

Na foto Carlos Caszely, ex-jogador de futebol da seleção chilena.

 

Entrevista do jornalista Gustavo Veiga em “Derrubando Muros”.

Versão original em https://gustavojveiga.wordpress.com/2023/09/10/soy-un-deportista-con-conciencia-social/

Uma voz, a sua voz, ergueu-se contra a ditadura de Pinochet no meio de um longo silêncio de dezessete anos. O atentado ao Paláco de La Moneda o surpreendeu nos treinos da seleção chilena. Naquela manhã de 11 de setembro de 73, os jogadores receberam a notícia do técnico Luis ‘Zorro’ Álamos. Eles estavam se preparando para uma partida contra a União Soviética pelos playoffs da Copa do Mundo na Alemanha Ocidental. Carlos Caszely, a voz que se recusou a apertar a mão do ditador num ato formal, era um jogador de futebol consagrado que mal tinha 23 anos. Fez parte do elenco do Colo Colo onde estreou em 1967. Foi artilheiro da Copa Libertadores pouco antes do golpe de Estado. Até que a sua transferência para a Europa se tornou inevitável. Jogou no Levante e no Espanyol e voltou ao clube onde foi titular em 1978. Politizado, declarado socialista, apoiou o governo de Salvador Allende e sua Unidade Popular. Esse perfil militante que nunca escondeu o expôs à vingança do regime. Foi perseguido, vigiado todas as vezes que retornou a Santiago do Chile e sofreu a prisão e tortura de Olga, sua mãe.

Não saberia até várias décadas depois que essa dor estaria ligada a outra. Sua vida foi suspensa em 22 de fevereiro de 2022, quando perdeu sua companheira María de los Ángeles Guerra. Eles estavam juntos desde que se deram as mãos pela primeira vez, em 20 de outubro de 1972. Até hoje, o tempo de sua ausência foi registrado em detalhes meticulosos. “Um ano, seis meses e quatro dias”, diz ele, no momento da entrevista. Caszely completa hoje 73 anos e é uma figura muito querida no Chile. Ele estudou dois cursos universitários: educação física e jornalismo. A primeira enquanto jogava futebol e a segunda sendo “velho”, como ele diz. Apaixonado e memorável, ele se lembra daquelas horas de 1973, quando ocorreu a tragédia.

-Carlos, se você olhar para trás, o que você lembra daquele 11 de setembro?

– Lembro-me como se fosse hoje. Cinquenta anos depois, essas memórias florescem novamente. Acordei às 7h da manhã e fui para a Universidade. Cheguei às 7h30 de carro para me encontrar com alguns colegas e conversar um pouco sobre o que estava acontecendo no país. Comecei a aula às 8h e terminei às 9h30. Mas às 9h15 comecei a sair porque tinha que ir treinar com a seleção, porque naquela época íamos para a Rússia jogar os playoffs. E quando chegamos a Pinto Durán, o grande professor Luis Álamos nos disse: ‘estão bombardeando La Moneda’. Eram 9h30 mais ou menos. Perguntei-me: estamos em guerra com os argentinos? Os bolivianos estão nos bombardeando? Os peruanos estão nos bombardeando? Mas nunca me passou pela cabeça que aviões chilenos atacassem o La Moneda. Eu vivia em um mundo maravilhoso de dinheiro, carros, viagens, grandes hotéis e o outro mundo da universidade onde todos tínhamos que arrecadar dinheiro para podermos almoçar. Havia duas vidas em um ser humano. Depois fui procurar minha namorada, María de los Ángeles, onde ela estudava Psicologia Infantil e ela não estava. E fui até a casa dela para ver como ela estava e se havia chegado bem. Isso aconteceu em 11 de setembro.

– Como continuaram seus dias após o bombardeio e o golpe de Estado?

-Não poderia ser normal que a televisão mostrasse apenas desenhos animados e as rádios mostrassem comunicados militares. Os primeiros comunicados diziam que não podíamos sair de casa, não podíamos sair para fazer compras, você ficava preso na sua própria casa. E aí vem outra impressão forte, porque na quinta-feira, dia 13, um dos comunicados diz que você pode sair para fazer compras entre 12 e 14h. Acontece que você vai às compras e no supermercado tinha açúcar, chá, café, pão, tinha de tudo. E quatro dias antes as filas eram enormes para que as pessoas pudessem comprar. Quatro dias antes não havia pão, nem carne, nem açúcar, não havia nada. E dois dias depois estava tudo. Quando Kissinger veio ao Chile oferecer dinheiro para derrubar Allende, os grandes empresários que tinham tudo salvo estavam envolvidos. Porque você não ia fabricar um pote de café em dois dias, nem um pedaço de manteiga, talvez o pão seja, porque o pão é feito diariamente por pessoas que fazem às 4 da manhã, mas o macarrão, o arroz , você não poderia fazê-los durante a noite.

– O tempo passou e ele fez um gesto inusitado. Não se registra o caso de outro atleta que se recusou a cumprimentar um ditador como Pinochet no prédio Diego Portales, porque o La Moneda havia sido bombardeado e só foi reaberto em 1981?

-Eu diria que fiz isso pela dignidade e pelos direitos humanos das pessoas. Eles não estavam consertando o La Moneda e levaram muitos anos para começarem a reconstruí-lo. Tentar reconstruí-lo porque a dor naquelas paredes deve continuar até hoje. Esse evento ocorreu pouco antes da Copa do Mundo na Alemanha e acho que representou a 90, 95 por cento de um país democrático. Porque você sabe que quem está uniformizado em nenhum país é democrático. Eles têm o comando prussiano, o comando inglês, é a verticalidade do comando. O que o general diz está feito! (enfatiza). Há muitos soldados amigos meus que tinham 18, 19, 20 anos, que nos disseram que foram forçados a ir atirar nas cidades ou, se não o fizessem, iriam levá-los à corte marcial e torturá-los. No Estádio Nacional há várias fotos de militares com patente e que foram mortos, por dizerem não a uma ditadura. Por isso digo às pessoas que estão à direita no meu país para lerem o que os Estados Unidos desclassificaram hoje e esse país não é comunista. Eu diria a eles para lerem o que as pessoas de lá dizem. Por que foi o golpe? Como foi? Porque um país só, pobre como o meu, não poderia levar a cabo um golpe de Estado sozinho. Teve que vir com o apoio dos EUA, a Operação Condor, Operação Chumbo como a chamam no Brasil, que devastou as democracias do Brasil, Uruguai, Paraguai, Chile, Argentina. Se você me perguntar de que partido sou, eu respondo: sou do partido do atleta com consciência social. Esse sou eu.

– Do que se trata?

– Aquele que tenta garantir que todos vivamos bem. Não quero destruir a casa do rico, não quero o carrão do rico. Quero que aqueles que não têm nada tenham, espero, um teto sobre suas cabeças, pão para comer, e esse foi meu objetivo durante toda a minha vida. Sou um homem aberto, porque nunca escondi nada. E é por isso que acho que há reconhecimento no mundo e não tanto aqui no Chile, mas no mundo.

-Como foi aquele encontro com Pinochet?

-Foi o primeiro que tivemos onde eu não cumprimentei ele, não apertei a mão dele. Acredito que foi uma rebelião para responder ao problema dos direitos humanos no nosso país. Uma rebelião de criança… Acho que o universitário dentro de mim saiu. Porque o jogador de futebol muitas vezes esquece as suas raízes, quando começa a ganhar um Porsche, uma casa com piscina, esquece-se um pouco do seu entorno e das suas gentes. Vivemos em sociedade e como sociedade devemos ajudar uns aos outros. Vamos apoiar uns aos outros, ajudar uns aos outros, ver como melhoramos como sociedade. Uma vez, na Europa, disseram-me: a direita no seu ADN só tem grana, grana, grana. E a esquerda é social, mas de repente você percebe que a esquerda também é grana, grana, grana. Vemos isso hoje em nosso país. Essa rapaziada que veio governar, que falaram tanto contra o dinheiro que os deputados e senadores nacionais ganhavam, fazem a mesma coisa, exatamente a mesma coisa. Enquanto o ser humano não mudar a sua forma de pensar, de ser e de fazer, será muito difícil que a sociedade mude.

– Depois daquele episódio em que o senhor não cumprimentou Pinochet e teve sua identificação com a Unidade Popular, começou a perseguição?

– Claro que sim. Infelizmente minha mãe foi presa e torturada. Fui seguido até aqui quando vim da Espanha para o Chile e até quem me seguiu me disse: desculpe Carlitos, acabaram de nos mandar e eu não entendi. Porque se não me seguissem, talvez tivessem sido levados à corte marcial e talvez até desaparecessem. Eles invadiram minha casa duas vezes. Essa relação com a Unidade Popular pesa até hoje, porque continuo mencionando o presidente Allende. Acho que ele tentou fazer o que era melhor para o país e quando quis nacionalizar o cobre, todas as grandes multinacionais se acertaram para dar o Golpe. Ele queria que todos estudassem e você sabe que um lápis é mais poderoso que uma pá, então ele, através do cobre, do salário chileno como dizem, ele queria ter uma educação gratuita, um pouco mais que saúde gratuita, porque hoje é um desastre. Você não pode ficar doente no Chile porque vai morrer.

– Existe uma teoria do jornalista chileno Luis Urrutia, apelidado de Chomsky, de que a grande equipe do Colo Colo de 1973 atrasou o golpe porque era um fator de unidade nacional que os golpistas não queriam perturbar.

– Não sei, porque embora seja verdade que o país estava muito dividido naquela época, por tudo que aconteceu… mas o Colo Colo jogava e todo mundo era colocolino. O que vou dizer não sei se vai incomodar vocês ou não, porque incomoda alguns jornalistas argentinos… O Independiente nos roubou a Taça Libertadores da América, digo assim, com muita clareza. Quando vejo as imagens… do que chamo de roubo do século, foi o maior roubo da história do futebol sul-americano. Na primeira das três finais, aos 46 minutos do segundo tempo, empurraram o nosso goleiro com a bola e tudo dentro do gol, está muito claro. Na segunda houve um gol legítimo que foi anulado no estádio nacional. Saiu cruzamento pela esquerda, Pavoni penteou, fui para o poste mais distante e quando o Santoro saiu bati na lateral com a frieza que tive para finalizar e Arphi Filho cobrou impedimento. Depois de 40 anos e antes de morrer, o árbitro, em entrevista que concedeu na Arábia Saudita, disse: recomendaram que o Colo Colo não fosse campeão da Copa Libertadores.

– Como você viveu aquela paródia de entrar no Estádio Nacional em 1973, marcar um gol inigualável e se classificar para a Copa do Mundo na ausência da União Soviética nos playoffs?

– Eu chamo isso de teatro do absurdo. Não há outra palavra para definir o que aconteceu naquele dia, porque no sábado à noite nos disseram que a Rússia não viria jogar, e depois de um tempo nos anunciaram que o Santos viria, ou seja, os dirigentes sabiam há uma semana ou duas semanas. … antes que a União Soviética não chegasse. Eles tinham tudo muito guardado, porque se soubéssemos uma semana antes eu não vinha da Espanha, Elías Figueroa não vinha do Brasil, Carlos Reinoso e Alberto Quintana não vinham do México, então talvez nenhum de nós tivesse vindo. Eu acho, não sei…

-Eles o definiram como o jogador do povo, como você se dá com esse conceito?

-Até hoje, aos 73 anos, tenho o amor e o respeito das pessoas por onde passo. Nunca mudei de posição, sempre fui o mesmo.

-É verdade que você teve a oportunidade de jogar no Real Madrid e isso não aconteceu porque simpatizava com o governo da Unidade Popular?

-O Real Madrid me acompanhou na Copa Libertadores da América por um ano. Naquela época tinha observadores em todo o mundo e quando cheguei ao Levante, um companheiro meu que veio do Real Madrid, Antonio Calpe, me disse: Chileno, o pessoal do Real está te seguindo para ser o substituto do Amancio, porque ele já está terminando a carreira, mas não te trouxeram porque você era apoiador de Allende. Isso é o que ele me disse.

-Quinze anos depois de 1973, em 1988, você se vingou de sua mãe na campanha Não a Pinochet. Como foi estrelar aquela campanha pelo Não?

– Com certeza foi com o coração. Quando me chamaram para aquela campanha do Não, para ler uma frase, eu disse que não iria ler nenhuma frase. Não, mas como… Falei que para gravar precisava de duas câmaras, com dois realizadores, e quando gravámos o que tínhamos proposto com a minha mãe, teve um impacto tão grande que 7 por cento dos indecisos, apurados, votaram Não. Foi por isso que a votação ganhou. Não. Mas todos os políticos de merda se esqueceram dela mais tarde, quando minha mãe morreu e nenhum deles veio se despedir dela. Aí se percebe que quando o ser humano precisa ganhar um voto ele é capaz de tudo. Mas quando já não precisam de ti, não podem visitar alguém que arriscou tudo pela democracia deste país.

– Como você observa o futebol hoje, esses jogadores que têm todos os bens de luxo que você descreveu antes multiplicados por mil?

– O futebol mudou cem por cento no seu ambiente. Mas o futebol em si, dentro de campo não mudou, nos 105 por 70 metros, não mudou. No futebol o inteligente sempre vai vencer o bruto, porque hoje eles têm o GPS, e para que serve o GPS se nos fizeram cinco gols? Para que serve o GPS se um rapaz corre quarenta quilómetros por jogo e depois aparece outrao que corre quatro e marca dois gols? Essa coisa externa que o futebol tem é mentira. Todas essas coisas nos levam às vendas, à publicidade, mas eu diria que o futebol como ele é nunca morrerá, porque Messi, porque Maradona, porque Caszely, porque Pelé, porque Johan Cruyff, porque Bochini, porque Beto Alonso, eles vão pensar e vão ser diferentes, e vão conseguir desequilibrar quem tem GPS. Àquele que corre, corre e corre, mande-o correr numa pista de atletismo.

-Você tem sido um homem feliz apesar das situações que viveu?

-Sim, sou um homem muito feliz desde que nasci até 22 de fevereiro de 2022 (data da morte da companheira* N.T.). E então tudo desabou para mim. Tenho quatro filhos e oito netos. São eles que me mantêm vivo um pouco. Há dias que duram semanas no tempo e há semanas que duram um dia. Não sei que porra estou fazendo, não sei.

-Sua vida precisa de um livro para contá-la.

-Sim, estou escrevendo um.

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