Qual a principal diferença das eleições na Espanha e no Brasil?
O sistema parlamentarista espanhol difere muito do brasileiro. As listas fechadas em partidos e a eleição indireta, pois é o parlamento constituído que acaba definindo a partir do poder que as urnas lhe concedeu. Não podemos esquecer que vivemos, na Espanha, de um sistema monárquico medieval que nenhum partido moderno conseguiu desconstruir. Somente o que eles chamam de modernizar, o que significa arrastar alguns ranços do franquismo, a ditadura que mais durou na Europa. Isso deixa marcas profundas. Além disso, as eleições no Brasil são uma festa democrática, apesar dos pesares. Aqui o voto não é obrigatório, como no Brasil. E houve muito protesto porque a votação foi bem no meio das férias de verão. A praia falou mais alto. No Brasil, praia é cotidiano. Dos mais empobrecidos, principalmente. E ainda que a multa por não votar seja irrisória, a participação no Brasil é bem melhor que a da Espanha.
O que vai acontecer depois das eleições?
Aqui, nem com bola de cristal. Pra termos uma boa ideia, no dia seguinte após as eleições, o Ministério Público, o judiciário que aqui eles chamam Fiscalía Geral do Estado, mandou buscar novamente pra prender o deputado europeu Puigdemont, ex-presidente da Catalunha, de direita, independentista, atualmente exilado pois sabe que se bota o pé na Espanha vai pra cadeia. Porque o perseguem? Por ter colocado urnas pros catalães votarem sobre o seu futuro político. De quem depende Pedro Sánchez, atual Presidente “En Funciones”, enquanto não se resolve toda a confusão de não ter maioria nem para assumir a presidência novamente? De Puigdemont, grosso modo, o político mais capaz atualmente de definir o futuro de toda a Espanha, com seus 7 deputados apenas, que podem decantar a balança. O problema, de fundo, é que o Brasil entrou no fascismo bolsonazista por causa do Lawfare, a prisão de Lula. Na Espanha, o Lawfare é cotidiano, dia-a-dia, como a maior herança da ditadura franquista. O Poder Judiciário espanhol é reprovado por referências jurídicas firmes do mundo inteiro.
O que representa o partido VOX, pra um eleitor normal brasileiro que não o conhece?
Bolsonarismo puro e duro. Fácil explicar. O detalhe é que enquanto na Europa isso que chamam de Extrema Direita – eu prefiro chamar de Fascismo, diretamente – vem crescendo assustadoramente, e aqui até ganharam eleições locais em muitos territórios, faz dois meses, foram a principal frustração nas eleições de domingo passado. O que não significa que se há de subestimar as suas três dezenas de deputados e as prefeituras e governos locais que eles recentemente conquistaram. Não podemos perder de vista que VOX é o filho do PP que saiu da casa do pai faz poucos dias e os votos de mais ou menos fascismos voltam pra dentro do PP, segundo as circunstâncias.
Porque Maria Dantas perdeu e não foi reeleita, depois do excelente mandato que desempenhou no Congresso Espanhol?
Ninguém saberá responder isso melhor do que ela. Principalmente agora, depois de toda a experiência parlamentar que a fez crescer muitíssimo, como “animal político” que ela sempre foi. O que eu sei é que não foi nada fácil para ela este mandato. Primeiro que ela encarnou a luta AntiVOX como ninguém, pois não esqueçamos que ela faz parte (e também me levou pra dentro, junto com outras companheiras brasileiras que aqui vivemos) de UCFR, Unidade Contra o Fascismo e o Racismo, a união de forças antifascistas e antirracistas que serve – na Catalunha – de exemplo de como eliminar esse mal na raiz. Logo, ela foi (acabou sendo, porque não foi algo tão premeditado quanto se pode imaginar) uma das mais importantes vozes da luta pelo Voto Migrante, que aqui não é para todos, é excludente, e poderia ser decisivo diante dessa política complexa e bloqueada em si. Pra completar ela vem da Catalunha, que em Madri já é um lugarzinho complicado (pra não dizer mal visto), por um partido independentista (o atual principal problema político de uma Espanha mais desigual do que muitos brasileiros podem pensar), e ainda por cima não tem medo de tema polêmico. Sem ela, na minha opinião, a Lei Trans, referente europeu, não haveria sido aprovada. Sem ela, a mão manchada de sangue imigrante do Ministério de in-Justiça de Sánchez, na fronteira com uma África assassinada, não teria sido denunciada com a contundência que Maria traz na veia. Quem a conhece, sabe. Mas, Maria vem da luta antirracista e o futuro dessa luta, com ela, não tem nada a perder. Só a ganhar. Venceremos.
Você já pensou em entrar pra política na Espanha?
Claro que sim. Desde o primeiro dia. Eu cursei uma pós-graduação em Ciência Política logo depois de haver participado ativamente do movimento estudantil, da CUT, da CONTAG, de atividades de formação do MST, não por acaso. Eu me filiei ao PT muito antes do meu primeiro fio de cabelo branco. E não é por outro motivo que aqui eu faço parte do Núcleo do PT em Barcelona, além da FIBRA, do Comitê de Apoio ao MST em Barcelona, de Marx21, acompanho as assembleias da Candidatura de Unidade Popular, e até concordo com diversas estratégias independentistas (antimonárquicos, republicanos, questionando as bases capitalistas da repressão, etc.). Nunca fui ingênuo em relação a isso. E, por isso mesmo, jamais deixei de atuar politicamente (muito mais do que a questão partidária). Por isso a pergunta não é se a gente entra pra política, mas como a política, que tá na vida, dentro da gente, pode estrategicamente, contextualmente se expressar. Por exemplo, eu creio mais na representatividade política de uma mulher negra, trans, periférica, desprivilegiada (eu sou MUITO consciente dos meus privilégios), e na capacidade efetiva de transformação social efetiva, concreta, urgente, que isso pode significar para o Brasil. Quando a gente migra, tudo se complexifica ainda mais. Se abrem mil possibilidades, com as dificuldades e oportunidades inerentes ao fato migratório. A bagagem política serve muito nessas horas. Não dá pra dormir tranquilo vindo de onde viemos. Mas o debate inegável é sobre a paciência que algum privilégio pode botar na boca de uns, e a fome, a sobrevivência, o cansaço de ser eternamente resistência, o filho chorando doente de fome, o medo de dormir na rua ou de já dormir na rua, o desespero de sentir-se assim “longe de casa”. Tem gente que vive de boas, ou até mal com isso. Mas tem gente que, com isso, não sabe nem o que é viver. Eu não me preocupo com a dor do outro. Eu vivo com ela. Lidar com isso é o que significa política pra mim. Acho que respondi a essa pergunta. A todas, aliás. Sim?
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