Ontem fui à abertura do 16º FAM – Festival de Audiovisual do Mercosul, de Florianópolis, para assistir aos efeitos da última parceria de Tom Jobim, dessa vez no cinema.
Claro que sendo parceria com o Maestro Soberano só poderia mesmo dar em excelência, pois se em poesia Tom não dispensava a exatidão de um Vinícius de Moraes, no cinema não aceitaria nada menos do que a definição do diretor de “Vidas Secas”, indicada por Akira Kurosawa, o Michelangelo da cinematografia mundial, como uma das 10 mais importantes obras já produzidas na história universal da 7ª Arte.
Só mesmo um gênio para reproduzir com tanta fidelidade a outro, em expressão de distinta linguagem. Nelson Pereira dos Santos compôs na tela o que Jobim fazia no teclado do piano pensando em orquestras: simplicidade revestida de discreta porém sofisticada elegância, através dos mesmos temas básicos que marcaram toda a Bossa Nova: a Mulher e a Natureza.
Um aceno de adeus pelas mãos de cada uma das depoentes, três mulheres da vida de Tom, dividiram as passagens da amena harmonia nelsonjobiniana, introduzindo as evoluções do arranjo pelo divagar de um dos movimentos que Jobim mais admirava e gostava de contemplar: o voo do urubu.
O filme se apresenta em depoimentos, imagens de vídeo e fotos em preto e branco do Maestro. E inicia com a exuberância natural da Praia de Moçambique de Florianópolis revestindo a irmã Helena Jobim a discorrer sobre a infância e início de juventude do mais consagrado compositor brasileiro. Na sequência, me fazendo imaginar um possível Parque Lage remodelado, na realidade Tereza, a primeira esposa do Tom, foi envolvida pelo magnífico ambiente de uma fazenda em Itaipava, no alto da Mantiqueira fluminense. E, por fim, à Ana, fotógrafa e vocalista que acompanhou o Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim em seus últimos tempos, se resguarda o invólucro de uns dos cenários favoritos do músico: o Jardim Botânico do Rio de Janeiro.
A refinada escolha das locações não poderia ser mais primorosamente jobiniana.
Pra finalizar, Nelson Pereira retoma a irmã, Helena, ainda na Praia de Moçambique, rememorando a frase de uma parente da família que, invejosa dos muitos momentos contemplativos do Maestro Soberano do Chico Buarque e de todos os brasileiros, dizia: “Eu queria tanto poder olhar e ver o que o Tom vê quando contempla a natureza”.
Confesso que esse reflexo do final da Luz do Tom marejou meus olhos.
Nelson viu e transmitiu com muito delicada precisão a luz daquele tão saudoso contemplar, mas não sou crítico de cinema ou de música para estar aqui a comentar o filme que como trilha, evidentemente, recompõe o que de melhor Jobim compôs. Se é que alguma vez compôs algo que não fosse o melhor.
Se não tenho escopo e estatura para comentar a magnificência de um Tom Jobim ou de um Nelson Pereira, pelo menos creio poder me permitir a contar aqui 3 histórias curtas que, por mera coincidência, tive o prazer de conviver com o mestre do Cinema Novo. O conheci quando vivia em Salvador e andava com Siri, Roberto Gaguinho, Geraldo Sarno, Tuna Espinheira e outros remanescentes da vertente glauberiana do movimento. Certamente foi Magago quem me apresentou ao carioca.
Na verdade Nelson nasceu em São Paulo, mas se fez famoso desde “Rio, 40 graus”, seu primeiro longa-metragem, e carioca ficou. Mas ontem, ao chegar à antessala de espera do cinema da UFSC com um casal de amigos queridos, logo avistei os não menos queridos Janete Moro e César Cavalcanti, diretor de produção do “A Luz do Tom”. Conversavam com o Nelson, mas senti-me intimidado de falar com o Mestre. Ele era o homenageado da abertura do FAM, procurado pelos que queriam expressar admiração, e eu não iria atrapalhar as pessoas. Além disso, estava certo de que não mais se lembraria de mim, depois de tantos anos.
A amiga insistiu e numa brecha acabei tomando coragem, confirmando logo que sabia que ele não iria se recordar de minha pessoa, mas perguntando se lembrava de quando se transmudou em “o famoso Nelson Pereira de Souza”.
No ato! Riu e tentou confirmar: “- Onde estávamos mesmo? No refeitório da Universidade de Campo Grande?”
Rememorei-lhe a história. Conforme combinado nos encontramos no bar do hotel onde se hospedava e pediu-me para esperar porque tinha de aguardar o presidente da Academia Sulmatogressense de Letras. Alertei: “- Então, se prepare”. Logo chegou o tal presidente e ao me reparar na mesa indicada pelo garçom, fechou a cara. Mas estendendo a mão ao elegante Nelson que já se levantava, apertou-a efusivo: “- Então você é o famoso Nelson Pereira de Souza.”
Sério e simples como sempre, Nelson respondeu sem nenhuma intenção de ironia: “- Se sou famoso não sei, mas sou dos Santos.”
Desde ali, só fui reencontrar o Pereira dos Santos, ontem. Já o outro curta do Nelson, nem mesmo ele viu nem ficou sabendo do final. Não lembro exatamente qual dos da turma dos cineastas baianos, provavelmente o Agnaldo Siri, o apresentou a Manuel Cabelinho, proprietário de um pequeno e curioso botequim da Ladeira do Castanheda que sobe do Largo da Barroquinha para a Rua da Palma, ali nas imediações do início da Baixa do Sapateiro.
Se encantou a tanto com a lendária figura de Cabelinho (personagem central de um de meus contos do “Filhos de Olorum – Contos e Cantos de Candomblé”) que a moda Hitchcock introduziu uma cena dele mesmo, Nelson, subindo a ladeira popularmente conhecida como a “do Quebra Cu” ao lado do calvo e renomado alquimista. Pra quem não tem noção de quem foi Manuel Cabelinho fica difícil compreender as razões do diretor de “Tenda dos Milagres”, mas para nós, discípulos e iniciados nos sabores das misturas etílicas do saudoso guru, nada mais óbvio e explícito.
Pois numa tarde, quando Nelson compareceu à botica ou boteco de Cabelinho acompanhado de Jorge Amado, imediatamente se providenciaram assentos para aqueles mestres maiores, dispostos no aperto da estreita calçada. Nós outros, que sentados ao meio-fio estávamos, por ali ficamos, maravilhados, ouvindo a conversa.
Lá pelas tantas, Jorge Amado questiona: “- Nelson: você provém dos cristãos novos como eu, não é?”. E Nelson não se furta: “- Ah! Sim… Pereira é mesmo coisa de judeu que teve se converter ao catolicismo.”
“- Pois o meu Amado também…” e para meu espanto, Jorge discorre um fraseado apologético aos heroicos errantes hebreus que se espalharam pelo mundo. Logo depois Nelson se levantou para falar com alguém e cochichei ao escritor: “- Ô Jorge! Que história é essa? Nos seus livros você vive se vangloriando de ser descendente de árabes.”
“- Não enche o saco! Não está vendo que a identificação étnica é para ser agradável? E acaso não somos todos semitas?”
Já o terceiro curta do Nelson foi antes do de Campo Grande, mas mais de 5 anos depois desse da Bahia, quando eu andava pelo Rio de Janeiro a convite de Lael Rodrigues, então sócio da CPC – Central de Produções Cinematográficas, com Tizuka Yamazaky e José Frazão que hoje reencontro também vivendo em Florianópolis (César contou que está de partida para a Inglaterra, mas não sei se temporário ou de muda).
Lael quis porque quis transformar um conto meu em roteiro de longa metragem, apesar de Tizuka e eu mesmo tentarmos convencê-lo de que a EMBRAFILME jamais financiaria uma sátira ao golpe de 1964. O próprio Nelson Pereira dos Santos, que com Glauber Rocha idealizou a empresa estatal que deveria promover o cinema brasileiro, era censurado pela Embra! Quanto mais nós: eu – um ilustre escritor desconhecido – e Lael, apenas conhecido pelos excelentes trabalhos de montagem dos filmes da série de comédias sobre o malandro “Dino”, de Hugo Carvana.
Batata! Como dizia Nelson, a ditadura censurava a história do Brasil (mandou retirar o seu “Como era gostoso meu francês” de cartaz) e não hesitou em censurar a própria história. Mas enquanto ainda tentávamos desenvolver um roteiro, Tizuka estava montando o “Gaijin” e nos convocava para discutir cada mudança de sua construção criativa, em imagem ou som. O som era lá no xará do Nelson Pereira, no estúdio NelSom que encabeçava o Largo das Laranjeiras.
Aquilo era terrível porque todo mundo acorria ao NelSom e tínhamos de passar horas esperando vagar o estúdio para a gravação de algum novo efeito ou trilha sonora inventada pela Tizuka. Para amenizar o tempo, Lael logo me levou ao boteco à esquerda, lá no meio da quadra do Largo, ao lado de uma oficina mecânica. E ali ficávamos conversando com os mecânicos, apostando cachaça na “porrinha” (jogo de palitos de fósforo), falando de futebol, reclamando do governo e, em momentos de maior consistência intelectual, cotejando a beleza das mulheres.
Vez por outra, de passagem, iam pela calçada Cacá Diegues, Ruy Guerra e outros cineastas consagrados. Acenavam para o Lael e seguiam em direção a algumas quadras adiante, onde havia um bar mais qualificado, daqueles citados pela turma do Pasquim.
Nelson Pereira era raro por ali, mas quando aparecia nos acompanhava ao boteco dos mecânicos e se misturava aos nossos papos. Quando presente, aí sim aqueles autores de tantos roteiros sobre a opressão e miséria do povo brasileiro adentravam para pedir a benção do Mestre, convidando-o para acompanhá-los até o outro bar, bem mais adequado a alguém de tamanha significância na história da cinematografia brasileira.
Há pouco alguém me comentou que a superstição do Guimarães Rosa, temente da prometida imortalidade da Academia de Letras e que veio a falecer logo depois de envergar o fardão; parecia ter se concretizado também no Nelson Pereira. Contou o comentarista que depois de ser o primeiro cineasta a ocupar uma cadeira da casa de Machado de Assis, Nelson lhe parecera mais envelhecido e abatido.
Ontem não percebi nada disso. Claro que com um pouco menos de cabelo, mas ainda o mesmo Nelson, inclusive no bom humor e simpatia. Conversamos pouco, mas sorriu e brincou com a lembrança da história do “famoso Nelson Pereira de Souza”, na mesma simplicidade com que se desculpava aos medalhões do cinema para permanecer ali entre nós, dois jovens neófitos e uma rapaziada suja de graxa e gasolina.
Pois foi essa simplicidade que uma vez me deixou constrangido no acaso de, então, estarmos apenas nós dois numa daquelas mesas do boteco e, assim mesmo, ele recusar o sempre convite de alguns eméritos colegas. Se não me falha a memória, entre eles o Arnaldo Jabor.
Considerando que a recusa fora motivada por sua indefectível elegância para com todos, dela o desobriguei assim que saíram: “- Ô Nelson! Se queres ir com teus amigos, não te preocupes comigo. Daqui a pouco o Lael deve estar por aqui.”
“- Não Raul! Não é isso, não. E que eu ainda sou do tempo da esquerda-cachaça. E esse pessoal já é da esquerda scoth.”
E ficou ali, provocando-me com aquela curta explicação a algumas ponderações sobre os longos discursos dos intelectuais da esquerda. Já então Nelson Pereira dos Santos me fez pensar o que hoje, amiúde, me explica um ou outro desses Jabor que se revelam por aí.