Por Erick Gimenes.
O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, fez cumprir sua palavra: passou com a boiada por cima de normas, Constituição, órgãos públicos, comunidades, florestas e quem mais ousasse estar pelo caminho do “progresso brasileiro” em 2020.
Em um ano marcado por recordes de destruição ambiental e pelo desmonte estatal, o fogo consumiu Amazônia e Pantanal como nunca antes se registrou, servidores foram perseguidos simplesmente por desempenharem seu trabalho, militares sem conhecimento técnico foram alçados a chefias estratégicas e o mundo passou a olhar para o Brasil como um inimigo do meio ambiente.
Em janeiro, uma situação sintomática: o ministro da Economia, Paulo Guedes, viu-se emparedado por representantes de fundos de investimentos, durante o Fórum Econômico Mundial, em Davos (Suíça). A sinalização era clara: ou o Brasil consertava sua política ambiental ou o investimento externo seria retirado do país
Uma das consequências pode ser a não concretização de um acordo entre o Mercosul e a União Europeia, o que representaria a perda de R$ 50 bilhões por ano ao Brasil. Acuado, Guedes tentou acalmar os ânimos, minimizando a crise e culpando os pobres pela devastação florestal no país. O presidente Jair Bolsonaro também fez esforço para conter os danos, enviando um discurso em vídeo aos líderes mundiais, no qual garantia, entre outras falsidades, que “somos o país que mais preserva o meio ambiente”.
Não convenceu. Com a sinalização de retirada do dinheiro externo do Brasil, foi preciso que o governo tomasse medidas imediatas para tentar melhorar a imagem do país lá fora. A primeira resposta foi a criação do Conselho Nacional da Amazônia, comandado pelo vice-presidente, o general Hamilton Mourão.
Para Paulo Barreto, pesquisador do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), a medida não passou de uma encenação, sem efetividade em campo.
“Dadas essas pressões que já começaram no ano passado e se intensificaram este ano, o Brasil criou uma fachada – a criação do Conselho e mandar as Forças Armadas para o campo -, mas com pouca efetividade, porque ele já tinha criado um antídoto”.
O antídoto foi o decreto 9.760, de abril de 2019, que criou a chamada “conciliação” de multas ambientais. A medida, na prática, serve como proteção aos infratores, permitindo que eles sequer sejam julgados. “É uma encenação. O que a gente tem, agora, é certeza da impunidade”, diz Barreto.
Militarização
A submissão do Conselho da Amazônia a Mourão foi um dos passos rumo à militarização dos órgãos ambientais brasileiros, que passou a ser frequente desde então. Em 30 de abril, por exemplo, Salles exonerou dois conceituados chefes da área de Fiscalização Ambiental do Ibama – Renê Luiz de Oliveira e Hugo Ferreira Neto Loss – para dar lugar ao coronel da reserva Walter Mendes Magalhães Júnior, ex-comandante da Rota (a sangrenta tropa de elite da PM paulista).
Os exonerados, servidores de carreira, eram reconhecidos por ter vasto conhecimento técnico e comprometimento na área. Antes de serem retirados do caminho, eles vinham respaldando operações de fiscalização contra crimes ambientais, principalmente de extração de madeira e garimpo ilegais.
Em 6 de maio, mais militarização. Um decreto de Bolsonaro instituiu uma ação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), passando às Forças Armadas o poder sobre todas as operações contra desmatamento ilegal e incêndios na Amazônia Legal.
Com isso, servidores técnicos perderam espaço e prestígio. Dali em diante, quem quisesse trabalhar na Amazônia teria que passar por cima dos militares.
“Tivemos a continuidade e intensificação de um processo de desmonte das nossas instituições, uma militarização absurda de todos os órgãos ambientais – Ibama, ICMBio e o próprio Ministério do Meio Ambiente -, onde técnicos capacitados, treinados e concursados foram substituídos gradualmente por policiais militares de São Paulo, cuja única experiência era atuar na repressão policial”, relata Beth Uema, diretoria da Ascema Nacional, a associação que representa os servidores de carreira em órgãos de meio ambiente.
A troca nos comandos foi só um capítulo da guerra travada por governantes contra os servidores públicos do Ibama do ICMBio, que se fortaleceu a partir da morte de um serrador em Rorainópolis, no sul de Roraima, ainda no começo do ano.
Francisco Viana da Conceição, o “Neguinho”, foi atingido por um tiro durante uma fiscalização do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e da Polícia Militar (PM), em uma zona de mata.
Sem investigação dos fatos, governantes do norte do país passaram a pedir a cabeça de fiscais, inflando perseguições dentro dos órgãos e até entre a população. A grita seguiu como linha de trabalho para esses mandatários e para o próprio Bolsonaro, que seguiu induzindo os brasileiros a pensar que fiscais ambientais são “inimigos do progresso”.
“A gente tem vivenciado, dentro das instituições, um ataque quase que diário a todos os servidores que tentam cumprir com sua obrigação de fiscalizar, de monitorar. Esses ataques nem sempre são tão visíveis, porque são aqueles ataques que acontecem no dia a dia, aquele assédio diário, a retirada gradual de direitos, punições injustas, demissões que a gente nunca sabe exatamente por que aconteceu, perseguições. É um aparato montado para desmontar a área ambiental, que tem causado muito desolamento e muito desânimo dentro da categoria”, comenta Beth Uema.
Além do enfraquecimento interno dos órgãos, Bolsonaro também retirou a sociedade civil das decisões nacionais envolvendo questões socioambientais.
Por meio de decretos, o presidente excluiu, por exemplo, todos os membros da sociedade civil da participação no Fundo Nacional do Meio Ambiente e retirou entidades ambientalistas, representantes de povos indígenas e movimentos sociais da composição da Comissão Nacional de Biodiversidade (Conabio).
O geógrafo e professor doutor Wagner Costa Ribeiro, da Universidade de São Paulo (USP), destaca que o enfraquecimento da participação social é estratégia pensada para que os colegiados estejam cada vez mais aparelhados ao governo.
“É lamentável, porque você torna esses comitês menos transparentes, com menor participação social, e evidentemente com uma posição majoritariamente governista, o que faz com que a expressão “passa a boiada” se torne mais factível”, afirma.
O desmonte estatal presumivelmente piorou a tragédia ambiental: o desmatamento na Amazônia brasileira atingiu 11.088 km2 até novembro, a maior área registrada nos últimos 12 anos, segundo dados oficiais do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). Houve crescimento de 9,5% em relação a 2019.
No Pantanal, ainda de acordo com o Inpe, nos meses de julho, agosto e setembro, foi registrado aumento nas queimadas de, respectivamente, 241%, 251% e 181%. Apenas no mês de setembro, 14% de todo o bioma foi devastado pelo fogo. Além de toda a destruição florestal, o local virou um cemitério de animais selvagens.
O pampa, no Rio Grande do Sul, também teve recorde de queimadas. Até setembro, foram destruídos 6.044 km². O recorde anterior, considerando o ano inteiro, era de 2003, quando foram queimados 2.488 km². Fora isso, o bioma ainda é seriamente ameaçado pelo avanço indiscriminado da soja.
Leia mais:
Viva o humano e danem-se os outros seres: assim pensa o canibal de garfo e faca!