Por Caroline Oliveira.
Enquanto Michel Temer e o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, se preparam para uma viagem oficial a Davos, onde pretendem vender a imagem de “um novo Brasil”, um destino seguro para investimentos, o País figura entre as nações com os mais graves retrocessos na área de direitos humanos, segundo o relatório anual da Human Rights Watch, divulgado na quinta-feira 18.
Em entrevista a CartaCapital, Maria Laura Canineu, diretora do escritório brasileiro da organização, afirma que a crise econômica não pode ser um obstáculo para resguardar a dignidade humana.“Em 2017, houve grave deterioração da situação no Brasil, em que problemas crônicos foram exacerbados pela contínua negligência das autoridades”, lamenta a advogada.
CartaCapital: Em 2017, o governo cortou verbas para as ações de combate às formas contemporâneas de escravidão, o que levou à diminuição do número de operações e de trabalhadores resgatados. Quais são os impactos dessa decisão política?
Maria Laura Canineu: Ao longo dos anos, o Estado brasileiro avançou muito nessa questão. Como resultado dos esforços do Ministério Público do Trabalho e do Ministério do Trabalho, dezenas de milhares de brasileiros submetidos a condições análogas à escravidão foram resgatados.
No entanto, em 2017, o próprio governo tentou flexibilizar a definição do trabalho escravo, em prejuízo dos direitos humanos e do trabalho digno. Obviamente, com a redução desses esforços, há um profundo impacto na vida daqueles que não puderam ser libertados.
CC: Em 2016, 437 policiais brasileiros foram mortos, a maioria fora de serviço. No mesmo ano, policiais mataram pelo menos 4.224 cidadãos. Nesse contexto, o Congresso aprovou um projeto que impede o julgamento de militares em Operações de Garantia da Lei e da Ordem em tribunais comuns presididos por civis. Essa nova lei não pode ser interpretada pelos soldados como uma espécie de “carta branca” para cometer violações?
MLC: A violência policial continua a ser uma de nossas maiores preocupações. Nesse ponto, vale destacar três aspectos. Primeiro, temos uma polícia despreparada para proteger a população. O número de resolução de crimes no Brasil é ínfimo.
Em segundo lugar, ela abusa de suas prerrogativas. A polícia mata demais em confrontos com suspeitos, e há graves indícios de execuções extrajudiciais. Além disso, os policiais também estão desprotegidos, com direitos restringidos. É evidente a ameaça à sua integridade física, às boas condições de trabalho, à liberdade de expressão.
Documentamos casos de policiais presos ou que sofreram punições desproporcionais por participar de greves no Espírito Santo, Rio Grande Norte e Rio Grande do Sul. Evidentemente, o projeto que confere à Justiça Militar a atribuição de julgar crimes cometidos por soldados contra civis é um grave retrocesso.
As normas internacionais são muito claras de que a violência policial, especialmente a de natureza grave, não pode ser investigada e julgada no âmbito militar, porque ele não é imparcial. Essa não é uma lei comum de ser aprovada em épocas de pleno exercício da democracia e do Estado de Direito.
CC: Em 2016, mais de 24 mil adolescentes estavam internados em unidades socioeducativas no Brasil, quase 24% acima da capacidade das instituições. Nesse contexto, como a senhora avalia as propostas de redução da maioridade penal?
MLC: Alguns dos problemas do sistema prisional também estão presentes no sistema de retenção juvenil, que deveria ser “socioeducativo”. Em São Paulo, houve uma evolução em relação à estrutura e às oportunidades educacionais nos últimos dez anos.
Estados como Ceará, Pernambuco e Paraíba ainda se encontram, porém, em situação bastante desumana, e não é incomum haver mortes dentro das unidades. Tanto o projeto que prevê o aumento do tempo de internação quanto aquele que permitiria a redução da maioridade penal, em nossa opinião, são nocivos. Em comparação com outros países, esses projetos podem aumentar a reincidência, prejudicando a segurança pública. Essas crianças e adolescentes têm um perfil bastante vulnerável.
CC: Em junho de 2016, havia 720 mil presos no Brasil, a terceira maior população carcerária do mundo. A superlotação é evidente: são dois detentos por vaga disponível. Esse ambiente abre espaço para a expansão das facções criminosas?
MLC: A superlotação e o reduzido número de servidores, muito inferior à necessidade e às recomendações internacionais, tornam impossível controlar as prisões. Esses dois fatores deixam os detentos vulneráveis à violência e ao recrutamento das facções, que oferecem “proteção”. As rebeliões de janeiro de 2017 (que resultaram na morte de mais de uma centena de presos apenas em três estados) expõem a situação de extrema insegurança deles. Muita coisa pode ser feita.
Primeiro, o Estado precisa retomar o controle do sistema prisional. Outro ponto é a ampliação do acesso à Justiça. As audiências de custódia são fundamentais para determinar se um preso, ainda não condenado, pode aguardar o julgamento em liberdade. Atualmente, apenas 12% dos presos têm acesso às atividades educacionais e 15%, às atividades laborais.
É ínfima a porcentagem de presos com acesso a reais oportunidades de ressocialização. O padrão internacional é a separação de presos provisórios e os já condenados. No Brasil, isso não é encontrado em todo o sistema. Por fim, eu destacaria a reforma da Política de Drogas, que contribui para esse contexto de superlotação.
CC: Segundo o 11º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, apenas 11% dos 4.657 assassinatos de mulheres foram classificados como feminicídios em 2016. O Estado está preparado para lidar com a violência de gênero?
MLC: O Brasil tem 61 mil homicídios por ano. O feminicídio é um crime bastante específico. A mulher está sujeita a essa violência pelo simples fato de nascer mulher, de existir. Se a violência doméstica não for combatida desde o início, quando a mulher leva esse problema para o conhecimento das autoridades, mais tarde ela pode resultar em feminicídio.
Em 2016, fizemos um trabalho em Roraima, onde só existe uma Delegacia da Mulher. Cerca de 8,4 mil casos de violência contra a mulher estavam prescritos, porque não houve nenhuma investigação. Nesses inquéritos, há denúncias de assédio, agressão física e ameaças, fora os casos não reportados à polícia. Existe uma série de empecilhos e por isso há uma subnotificação enorme. A mulher procura ajuda, mas o Estado não responde adequadamente.
CC: O relatório também destaca o aumento da violência no campo em 2017, quando os conflitos por terra resultaram na morte de 64 brasileiros entre janeiro e outubro.
MLC: Assusta o número de mortes de pessoas envolvidas em conflitos de terra em 2017, é o maior desde 2003. Pior: as medidas políticas adotadas no ano passado podem agravar essa situação. O governo reduziu o orçamento da Fundação Nacional do Índio (Funai) e os deputados da CPI do Índio, em sua maioria ligados ao agronegócio, incriminaram várias lideranças indígenas. É um ambiente favorável à violência no campo, que está relacionada ao avanço da grilagem e dos madeireiros ilegais.
As vítimas típicas são os trabalhadores rurais, os sem-terra e os indígenas. Todos eles integram grupos vulneráveis, excluídos economicamente. Para essa população, o acesso à Justiça é bastante dificultado. As investigações de assassinatos e outros tipos de violência são bastante deficientes. Não há recursos suficientes nem interesse político para promover uma melhor investigação policial. O nível de impunidade é gritante.
CC: A crise econômica também tem impacto na garantia ou na violação de direitos?
MLC: O ano de 2017 foi de grave deterioração da situação dos direitos humanos no Brasil, onde problemas crônicos foram exacerbados pela contínua negligência das autoridades. Existe uma série de violações que continuam sem a devida atenção, independentemente da crise econômica.
As violações mais graves, seja no sistema prisional, seja nas ruas, por parte da própria polícia, representam uma falência histórica do Estado brasileiro. Em época de maior ou menor potencialidade econômica, o País não enfrentou os seus problemas estruturais. Muitas ações demandam recursos, mas existem medidas simples que nunca foram tomadas.
Fonte: Carta Capital