Por Elaine Tavares.
Fui criada na pampa, banda oriental. Sangue Charrua, artiguista e maragata. Quando criança, seguia apenas a tradição, contada e recontada por meu pai. Orgulho de ser gaúcha e farrapa. Depois, cresci, e fui beber nos livros. A revolução farroupilha começou a tomar outros contornos. Para alguns autores, nem foi revolução, apenas uma chantagem armada pelos latifundiários. Negros foram traídos na promessa de liberdade, e o povo pobre serviu de bucha de canhão. Os verdadeiros heróis da saga farrapa foram obscurecidos pelos “generais” oligarcas. Esses ganharam estátuas.
Estudei também a longa saga de libertação da América Latina e suas guerras de independência para escapar do jugo colonial. Nada muito diferente. Os criollos – inclusive Bolívar – nada mais eram do que os representantes do latifúndio, da oligarquia da colônia. E como na peleia gaúcha, também pelos campos de nuestra América caíram índios, negros e pobres, lutando por um sonho que não se fez real.
Bolívar foi um caso à parte. Nascido aristocrata começou sua cruzada contra Espanha ainda como um riquinho venezuelano. Foi sua derrota em 1813 que o colocou em contato com a gente real.
Desterrado para a Jamaica, ele acabou no Haiti, onde foi buscar ajuda com o general Alexandre Petión, então comandando a nação negra recém-liberta. Petión mostrou a Bolívar que nenhuma liberdade poderia vir sem o compromisso do fim da escravidão e sem o respeito aos indígenas. Bolívar concordou. E firmaram um pacto. Petión dava os barcos, as armas e as gentes e Bolívar se comprometia por varrer a escravidão da América baixa.
Foi assim que começou a libertação. Desde a vontade política da nação negra haitiana. Bolívar não pode cumprir a promessa que fizera a Petión. Traído pelos seus próprios companheiros – que nunca haviam deixado de ser fazendeiros sedentos por terras e poder – ele mesmo encontrou a morte, sem conseguir libertar os escravos. Onde pode, o fez. Mas, derrotado e morto, não conseguiu honrar, na íntegra, o acordo com o general haitiano.
No Uruguai, outro homem incrível da guerra de independência, Artigas, mobilizou para frente de batalha as mulheres, os negros e os índios. Tinha para eles a promessa da liberdade. E eles o seguiram, inclusive na derrota, porque confiavam. Artigas, como Bolívar, também foi traído, mas viveu para ver o massacre de seus irmãos Charrua na carnificina de Salsipuedes. São os Charrua, um dos grandes artífices da libertação do Uruguai, bem como os negros e as mulheres que, derrotados, também passaram ao esquecimento. Mesmo Artigas, morreu desterrado.
No Rio Grande não foi diferente. Sob as bandeiras dos latifundiários, se levantaram as gentes. Negros, índios, mulheres e homens, em busca da sonhada liberdade, da terra, da vida boa. Nesse caso, traídos pelos fazendeiros que, acordados com o governo imperial, voltaram à vida normal tão logo se sentiram contemplados, enquanto tantos pereceram na tentativa de alcançar esse sonho. O massacre de Porongos, dos lanceiros negros, segue uma chaga aberta.
Todo repúdio aos traidores, aos fazendeiros, aos políticos sem coração. Mas, todas as honras aos homens e mulheres que acreditaram no sonho da liberdade, que enfrentaram a degola, as baionetas, o vagalhão da violência e da morte. Os “de abajo”, os pequenos, a maioria, que semeou o chão do Rio Grande com seu sangue.
Sim, houve uma revolução, porque as gentes a fizeram em nome da liberdade. Sim, tivemos heróis. Mas seus nomes não estão no panteão rio-grandense. O que não significa que não possamos reverenciá-los. Porque, afinal, eles ainda vivem no corpo de toda uma nação que segue dependente. Essa gente somos nós!
Fonte: http://eteia.blogspot.com.br/2016/09/20-de-setembro-dia-dos-gauchos-e.html.