Por Frederico Lyra de Carvalho, Université Lille 3/CEII.
A ideia deste artigo é menos falar sobre as novidades musicais que Chico Science, junto com a Nação Zumbi, trouxe à música não apenas pernambucana, mas brasileira, ou da marca e abertura que deixou como herança para os criadores musicais que lhe seguiram (mas também, negativamente, para os que não o quiseram seguir), ou ainda daquela memória ainda viva daquela segunda-feira 03 de fevereiro em um longínquo 1997, quando um então menino de 11 anos ao acordar recebe da sua mãe a notícia que, aquele através do qual não há muito tempo havia descoberto subjetivamente uma coisa chamada música, tinha morrido na véspera em um acidente de carro na divisa entre as cidades do Recife e Olinda. Não lembraremos da aula que este não compareceu para se encontrar com seu melhor amigo para juntos (acompanhados do irmão deste último com então 8 anos) ouvirem aqueles dois incríveis álbuns e chorarem juntos a perda daquela figura que, muito por conta da pouca idade, pouco tinham visto e menos ainda entendiam a dimensão da sua obra, personagem e da sua morte. Era como uma perda súbita de um passado que nunca chegou de fato a acontecer, mas que nem por isso é menos verdadeiro.
Logo na primeira frase da primeira faixa – Monólogo ao Pé do Ouvido – do primeiro disco – Da Lama ao Caos (1994) – Chico Science anuncia que uma evolução musical é modernizar o passado. Esta aparente inversão temporal vai permear toda a sua obra. Para ele era lá de trás que poderíamos mobilizar algo. Esta mesma letra termina com a afirmação de que Zapata, Sandino, Zumbi, Antônio Conselheiro, os Panteras Negras, Lampião (e a sua imagem e semelhança) cantaram algum dia. Ora, o que um dia cantaram um líder revolucionário mexicano, um líder revolucionário do Nicarágua, uma organização socio-racial revolucionária no centro do império, um líder religioso no sertão nordestino, um cangaceiro (e seus pares, bandidos por uma questão de classe) no sertão nordestino ? A glória, a arrogância, o orgulho dominam a imaginação, o medo dá origem ao mal. Aqueles convocados por Science, ao contrário, efetuaram e representam lutas coletivas que alimentam a imaginação. Eles pareciam ao menos saber o que não queriam. No entanto, não é que precisemos das mesmas notas que eles tocaram. Mas sim, contra os demônios que nos impedem de ouvi-las na invenção do homem, sujeito, desconhecido, do eco que delas soam nos ouvidos. Nesta abertura ritualística de voz e percussão Chico Science nos deixa um canto profético, uma anunciação. O batuque que nos batiza é o mesmo que faz os sinais do futuro[1], ecoando, atravessarem o tempo. Analisar as figuras que Chico Science evoca sob uma perspectiva do futuro pode dar bons frutos. Aquilo que não fazia total sentido em um determinado tempo, poderá ser lido em algum futuro hipotético. De uma certa forma, o futuro já começou, era o que ele havia percebido. Como Paulo Arantes observa, já faz algum tempo o futuro é rebatido no presente. No entanto captar estes sinais e figuras necessitam algum tipo de engajamento direto na coisa, não são todos que vão enxergar esta abertura. Talvez Science enxergasse estes personagens históricos como símbolos de algo inacabado, que ecoando, parecem convergir.
Através dele poderíamos, quem sabe, atualizar a ideia de uma agricultura celeste e reinterpretá-la como uma agricultura à ser apreciada por estar separada da noção de trabalho. Uma agricultura que bateria de frente com o agronegócio, este último terrestre, na sua necessidade de conquistar indefinidamente mais e mais territórios, de expulsar mais e mais populações dos seus locais, de destruir mais e mais florestas. Terrestre como o sistema de onde a sua lógica deriva que segue de vento em polpa em uma expansão indefinida a autodestrutiva. Science, de uma certa forma, nos traz a lembrança de que, ao menos tecnicamente, o problema da produção alimentar já está resolvido. Quando afirma que “um curupira já tem o seu tênis importado” ele nos sugere que, embora nos seja impossível acompanhar o motor da história, por estarmos sempre com um certo descompasso em relação a ela, não é revivendo, mas modernizando o passado que algo pode surgir. O problema efetivo mora em outro lugar, não dá mais para tirar o tênis.
Em Chico Science existe esta abertura negativa para o futuro, para algo que pode vir, mas que, ao mesmo tempo, não está assegurado o que, há uma ambiguidade que de uma certa forma nos obriga tomar uma decisão. Não obstante, nos recorda Science, ”enquanto o mundo explode, nós dormimos no silêncio do bairro”, o que, segundo ele, não é necessariamente um mau sinal pois é neste mesmo sono, de olhos fechados e mordendo os lábios, sem precipitação, que os desejos necessários para se fazer alguma coisa efetiva são criados e alimentados. Talvez ele esteja nos pedindo uma certa dose de paciência. Resta saber porém se, ao mesmo tempo em que “a engenharia cai sobre as pedras”, e que o “lixo do mangue” se acumula indefinidamente, se nós estamos nos movendo da “lama ao caos” ou do “caos à lama”. Aqui, qualquer engano pode ser fatal.
[1]Ver : Zizek, Slavoj: “Conclusion: Signs from the future” in The year we dreaming dangerously, London, Verso, 2012, p. 127-135
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Fonte: Lavra Palavra.