Por Marina Empinotti.
Caminhou pelo calçadão até chegar à igreja. Na mãozinha esquerda, a caixa de engraxate mal pintada. A direita, vazia, contorcia-se em forma de concha, num pedido silencioso por moedas. Apenas duas ou três pessoas rezavam baixo dentro da capela, nenhuma com sapatos que pudessem levar graxa. O menino foi até elas na esperança de conseguir um pouco do trocado que iria para a caixinha do padre. Nada.
Devagar, murmurando algo consigo mesmo, passou o portão pelo qual entrara e deixou o pátio da igreja, onde outra senhora, incapaz de andar, pedia dinheiro sentada no chão de paralelepípedos gelados. Foi até uma mesa de xadrez próxima, onde um grupo de senhores jogava uma partida de dominó barulhenta. Observou os jogadores por um momento sem lhes dizer nada. Não parecia compreender as regras, embora observasse atentamente a exaltação dos velhinhos a cada jogada bem feita. Logo a partida terminou e iniciou-se a discussão entre vencedores e derrotados; hora certa para ir embora.
Desceu um pedacinho da Trajano, até chegar a uma cafeteria movimentada. Lá, com as mãos novamente em forma de concha, passou pelas mesas e balcões implorando, ocasionalmente apontando para a comida servida, como se dizendo que aquilo também o interessava. Além de negativas e empurrões, nada conseguiu mais uma vez, mas não desistiu.
Andando um pouco mais pela mesma rua, alcançou uma quitanda vazia, exceto pela senhora que atendia no caixa. Algumas frutas e verduras pendiam do teto baixo, outras estavam em caixotes e algumas, empilhadas em enormes fruteiras. Por um momento analisou o local de fora, como quem escolhe o que vai levar para casa. A atendente da loja revelou ser também proprietária do estabelecimento ao chamar o menino para dentro e entregar-lhe uma grande sacola de laranjas.
Não agradeceu. Não sorriu. Não mudou a expressão cansada e desconfiada que estampava. Não acreditava no que acabara de ganhar. Clientes chegaram e a senhora o conduziu gentilmente para fora da venda. Ele deu alguns passos vagos e sentou-se no chão, ainda encostado na parede da loja. Lentamente, largou a caixa de engraxate ao seu lado e abriu a sacola entre as perninhas magras, fitando o conteúdo por alguns instantes. Estavam boas ou seriam apenas sobras a ponto de apodrecer e ocupar espaço desnecessário na quitanda?
Pareciam boas. Tirava, uma a uma, as laranjas da embalagem e observava atentamente cada detalhe da fruta, girando-a na própria mão à procura de imperfeições. A inspeção foi longa e minuciosa. Acabada a vistoria, levantou-se rápido. Na mão esquerda, a caixa de engraxate mal pintada. A direita agora levava a sacola cheia de frutas. Era impossível saber o resultado do exame, pois sua expressão, mais uma vez, não mudara.
Os passos antes longos e vagos se tornaram curtos e ágeis, como se tivessem ganhado um rumo a seguir. Não entrou mais em lugar algum, nem parou para descansar. Nada mais o interessava, senão andar rápido para onde quer que estivesse indo. Logo deixou o centro histórico da cidade, atravessou a avenida Mauro Ramos e entrou numa das vielas que levam às casas do morro. Deveria morar lá.
Subiu um pouco a rua apertada e logo ouviu alguém chamando-o com um assobio. Era outro menino, um pouco mais velho, que descia a ladeira com uma bola de futebol velha embaixo do braço, apontando pra ela como quem chama para jogar. Mais uma vez sem mudar sua expressão, o pequeno engraxate balançou a cabeça negativamente e levantou a sacola que carregava para explicar a recusa.
O menino que desceu o morro logo se perdeu na multidão da avenida, mas o que subia seguiu firme morro acima, até chegar a uma casa de madeira à esquerda da via. A estrutura, toda de madeira amarela desbotada, parecia frágil. Bateu à porta e esperou até uma senhora com ar cabisbaixo atendê-lo.
Ela não sorriu ao ver o menino. Ele tampouco sorriu ao ver a velha. Com um passo à frente, pousou a caixa de engraxate ao lado da entrada e, com a mão livre, abriu a sacola para mostrar o conteúdo. Não foi preciso sequer um segundo para que ela se surpreendesse com a quantidade de comida que lá havia e abrisse um largo sorriso.
A expressão da criança mais uma vez, não mudou. A senhora tomou a caixa das mãozinhas cansadas e afagou rapidamente a cabeça do pequeno, dando-lhe as costas em seguida e entrando na casa. Sem hesitar, com expressão ainda séria, o menino disparou rua abaixo. Ao chegar à esquina da rua com a movimentada avenida, olhou para os dois lados, ofegante. Procurava o amigo que vira há pouco.
A seriedade estampada em seu rosto mostrava que não via a figura em meio à agitação. Ficava na pontinha dos pés para enxergar melhor, mas não era suficiente. Diante do fracasso, começou a subida novamente, sem mudar a seriedade habitual. Eis que se ouve um assobio forte. O amigo abanava de longe, do outro lado da via, agora acompanhado de mais três garotos.
O semáforo fechou. O ônibus parou. Em instantes estaria junto ao grupo. O menino sorriu.
Imagem: pintura de Patrice Piard do Haiti.