Por Guigo Ribeiro, para Desacato.info.
18 horas. Pessoas se aglomeram na plataforma à espera do coletivo e suas respectivas casas. Alguns gozam a sexta-feira no instante em que esta se anuncia, logo, ao fim do expediente. Bebem suas cervejas libertárias em pé mesmo. Outros ao telefone repassam os impasses profissionais e se comprometem à resolução, mesmo que essa ocorra em dia de descanso. Profissionais arrumam suas sacolas enquanto gente mais cansada se posiciona no lugar estratégico em que a porta abre para assim facilitar sua corrida rumo ao primeiro banco disponível e, assim, realizar a viagem sentado.
Neste ambiente pré-final de semana, a plataforma tirou os olhos do celular, pausou o papo com alguém do lado e freiou o próximo gole na lata ao perceberam gritos agressivos. Corpos não se mexem. As cabeças sim. Sorriso, estranheza, alguma raiva e a perturbação do local devidamente iniciada: um homem da fé:
– SE ARREPENDAM! SE ARREPENDAM! HOJE É O DIA! AMANHÃ A MORTE OS VISITA
E NADA PODERÁ SER FEITO!
Alguns ensaiam filmar. Outros têm dúvidas sobre o hit no fone ou serem testemunhas do próximo vídeo viralizado. Escolhas! Os gritos, insatisfeitos pela inércia dos telespectadores em questão, alcançaram o andar superior e… um homem da lei. Desceu!
No caminho realizou a preparação para o novo embate para com quem exercesse o oficio de não estar conforme as normas. Borracha em mãos. Tensão. Atenção. Surpresa. O aproximar da voz acessou um lugar cerebral que dizia com pequena convicção: essa voz não me é estranha!
Chegou:
– O NOVO TEMPO SE ANUNCIA E VOCÊS PECADORES VÃO PAGAR! ESTÁ AQUI! ESTÁ AQUI! – prestes ao perfurar a bíblia com o indicador.
O homem da lei parou alguns metros. As ideias de quem perturbava a ordem pública eram as mesmas que a suas quando sem a roupa de homem da lei. E, sendo homem da lei, aprendeu a usar de força bruta, mas como usar de força bruta e amassar aquele terno tão bonitinho? Como calar a voz de quem é interprete do celestial? E mais:
– Eita porra! Acho que vi esse homem no último culto! – disse baixo o homem da lei.
Aí vem a parte que arrebenta! Se parte pra cima daquele propagador da palavra como foi treinado, fere uma instância muito superior. Se não parte, fere a sua instituição e posição de quem resolve problemas. Se inventa de se atrasar, aguardando o trem que levará as testemunhas, é enquadrado na demora para proceder quanto ao problema. Se vai logo, aí que surgirão milhões de celulares engatilhados em sua direção. Oh céus!
– … ESTE É UM MUNDO EM VISTA DE ACABAR! UM MUNDO QUE OS VALORES ACABARAM E A FAMÍLIA CAIU POR TERRA! CADÊ A DIGNIDADE? OS PRINCIPIOS? ATÉ QUANDO VÃO SE CURVAR AO PECADO? ESSA NAÇÃO É DO SENHOR!
O homem da lei optou por mostrar presença. Foi próximo à situação e diminuiu os passos. Queira ou não, estava presente.
– HOMEM COM HOMEM! MULHER COM MULHER! CADÊ A PALAVRA EM SUAS VIDAS? –
mais um vez quase furando a bíblia.
O homem da lei agiu. Mas sem sua força. Foi avistado pelo homem da fé e este adentrou o silêncio. As pessoas pararam para prestigiar o épico momento em que a bíblia e a bala ocupam a mesma plataforma. Os demais ansiosos, conheceram rápido a frustração. O trem chegou.
Entra correndo. Oferece as balas e salgadinhos, atropela senhor de idade pelo lugar, senta no preferencial e “dorme”. Alguns ainda dedicam um resto de atenção aos dois e mantêm essa atenção enquanto a plataforma vai ficando pra trás com o trem em partida. O homem da lei olhou nos olhos do homem da fé. Este retribuiu. Ambos, no tempo mesmo, andaram na mesma direção, param próximos e se acolheram em longo abraço de tristeza e alegria. O homem da fé não teve sucesso em seu trabalho. O homem da lei também não. Choraram.
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Guigo Ribeiro é ator, músico e escritor, autor do livro “O Dia e o Dia Que o Mundo Acabou”, disponível em Clube de Autores.
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