Por Diego Mendonça, Elisa Di Garcia e Ricardo Roquete*.
Ao iniciar seu quarto mandato como governador de Goiás, Marconi Perillo (PSDB) anunciou em 2015 que pretendia estabelecer um projeto de gestão das escolas públicas do estado em parceria com entidades privadas sem fins lucrativos, as Organizações Sociais (OS). O projeto inicial planejava o estabelecimento deste tipo de gestão em 23 unidades de ensino no estado. Visando este objetivo, o governo então desenrolou suas operações em parceria com a Assembleia Legislativa do estado, casa onde mantém hegemonia política. Sem a devida discussão pública sobre o tema, o governo não esperava reações contundentes aos seus planos. Com esta leitura, que mais tarde mostrou-se precipitada, a Secretaria de Educação, Cultura e Esporte (Seduce) foi pega de surpresa com a forte contestação que a implantação do projeto suscitou em setores da sociedade goiana. No final do ano, um número significativo de escolas foi ocupada por um movimento até então inédito no estado, com o protagonismo de jovens estudantes secundaristas e professores. Estes acusavam o governo de implantar o novo modelo de administração das escolas de maneira autoritária e condenavam seu caráter privatizante.
O momento de levante nas escolas goianas surge em meio a uma complexa e virtuosa conjuntura de mobilização envolvendo jovens atores e militantes mais experientes, orientados por princípios libertários e tendo como referência as ocupações das escolas em São Paulo e a luta pelo transporte no estado, movimento que tem se destacado em Goiás nos últimos anos e que usa a ação direta como tática de intervenção política.
Também pode ser destacado como fator mobilizante o outro projeto de intervenção do governo goiano na administração das escolas. Trata-se da parceria do Palácio das Esmeraldas com a Polícia Militar de Goiás na gestão das unidades de ensino. Dados da Seduce informam que hoje 27 escolas estão militarizadas no estado, realidade que incomoda os defensores de modelos de educação mais progressistas e participativos, posicionamento com forte adesão dentro do movimento que ocupou os colégios.
Ausência de debate e resistência
Durante o ano de 2015, a prioridade da gestão Perillo foi a implementação da parceria com as OS, ação encaminhada sem o devido diálogo com a sociedade e as comunidades escolares. Com a publicação do Despacho Nº 596/2015 no dia 07 de dezembro, ficou claro que o governo pretendia instaurar a nova gestão independente de quem pudesse questioná-la. A resposta veio ainda em dezembro, com a proximidade do final do ano letivo, o colégio Professor José Carlos de Almeida, que havia sido fechado no ano anterior, foi o primeiro a ser ocupado. O que se viu em seguida foi uma reação em cadeia, com escolas sendo ocupadas na região metropolitana de Goiânia, Anápolis, Cidade de Goiás e São Luís dos Montes Belos, alcançando um total de 28 unidades.
O estudante Brenno Henrique A. Soares, 17 anos, participou da ocupação do Colégio Estadual Cecília Meireles, em Aparecida de Goiânia. Ele comenta que não houve debate ou qualquer discussão prévia, informação também divulgada pela página do facebook Secundaristas em Luta, um canal dos estudantes organizados no movimento contra as OS. “Não houve nenhum diálogo. Nem por parte da Secretaria de Educação Cultura e Esporte (Seduce) nem pela própria gestão da escola”, afirma Brenno.
Outras vozes críticas ao projeto já vinham se manifestando mesmo antes das ocupações, como o professor de História da Universidade Federal de Goiás, Rafael Saddi, 36, com os textos intitulados “Dando nome aos bois” e “Dando nome aos bois: Parte II”, que circularam nas redes sociais. Rafael acabou se tornando uma referência, inclusive para a repressão ao movimento. “Quando eu escrevi esse texto apresentando quem era quem nas OS e as relações que essas organizações tinham, inclusive relações criminosas com membros do governo, dando nome a essas pessoas, eu já comecei a ficar muito visado”, comenta Rafael.
Para ele são vários os motivos para se opor ao projeto. “Talvez o primeiro seja o fato de que as OS significam uma flexibilização. Primeiro na contratação de serviços, de prestação de serviços. E segundo uma flexibilização das relações de trabalho. Essa contratação de serviço significa o quê: o estado ao transferir para as OS as escolas, ela pode contratar sem os procedimentos que o estado precisa usar. Contratar serviços. Então o estado precisa fazer licitação, garantir igualdade entre os concorrentes e tudo o mais, se ele quiser fazer uma reforma na escola, por exemplo. A OS não precisa disso. Como uma empresa privada ela contrata quem ela quer”, diz.
O que se viu em poucas semanas foi o crescimento do apoio ao movimento por parte de artistas, professores de todas as redes e setores da sociedade que demonstraram preocupação com a falta de clareza sobre o projeto de gestão das OS. Instituições e entidades, como a Faculdade de Educação da UFG, a Associação dos Docentes da UFG e o Sindicato dos Trabalhadores em Educação de Goiás (Sintego), se manifestaram contrários ao projeto. Foi um período de diversas atividades nas ocupações, com diversos eventos artísticos, oficinas, debates, e mesmo um Natal solidário, assim como uma celebração da virada do ano.
Repressão, perseguição e ameaças
Ao mesmo tempo houve diversas tentativas do governo, e mesmo dos diretores de algumas unidades, de reprimir os estudantes. Policiais cercaram escolas, impedindo que mais estudantes aderissem ao movimento ou que apoiadores doassem mantimentos e outros itens aos colégios ocupados. “O cotidiano da ocupação era bem cansativo. Por parte, estávamos com sentimento de esperança e dever cumprido, mas por outra, devido aos comentários negativos e a falta de compreensão da população de que a escola é de todos e de que a ocupação era legitima, nos sentíamos incapazes. O governo usou todas as formas de repressões possíveis. Desde violência policial, bombas jogadas semanalmente dentro da escola. Até os diretores das escolas foram pressionados”, relata Brenno.
A repressão também recaiu sobre os professores apoiadores, principalmente os da rede estadual. O jornal Diário da Manhã chegou a apontar, em uma matéria apócrifa, professores das três redes, federal, estadual e municipal, como líderes do movimento, organizados numa espécie de quadrilha. Entre os apontados pelo jornal, estava Rafael Saddi. “Estamparam a minha foto com mais 8 pessoas, como líderes de uma organização criminosa, uma organização guerrilheira e tudo o mais. Quer dizer, um texto claramente criminalizador. Dois dias antes do jornal, o governo já tinha falado que tinha iniciado uma operação de investigação dos líderes e que ia imputar os crimes aos líderes.”, explica Saddi.
A professora da rede estadual Letícia Reis, 29, também relata o clima de perseguição. “Diretamente não fui perseguida, ao contrário de vários colegas que perderam carga horária ou foram desligados das unidades que trabalhava. Contudo, o projeto das Escolas Estaduais de Tempo Integral foi modificado uma semana antes no início do ano letivo e logo após as ocupações, retirando dessas unidades a função que eu exercia. O que é no mínimo curioso, já que até o início do recesso de final de ano não havia nenhuma perspectiva ou menção de mudança nas diretrizes destas escolas. Além disto, em uma conversa fui informada que a Seduce tinha me identificado como uma das líderes das ocupações. O que não poderia ser verdade, já que em todo momento os professores garantiram o protagonismo dos estudantes neste processo. Porém, isso demonstra que a Secretaria tem identificado e monitorado os professores que apoiam o movimento.”
Pedidos de reintegração de posse foram negados pela justiça e a secretária de educação Raquel Teixeira chegou a enviar uma ordem de corte de água das unidades ocupadas a Saneago, empresa que controla o serviço de saneamento no estado. A repercussão foi tão negativa que levou ao recuo do governo e um pedido de desculpas da secretária aos manifestantes durante uma manifestação na Seduce em dezembro, quando a mesma alegou que “todos tem o direito de errar”.
Em meados do mês de janeiro, a Justiça de Goiás decidiu pela reintegração de posse de 14 escolas. No dia 25 de janeiro foi desocupada a escola Ismael Silva de Jesus, no Bairro da Vitória em Goiânia. Estudantes acusaram a Polícia Militar de ter invadido a unidade nas primeiras horas da manhã, quando os mesmos ainda dormiam, e expulsado-os sob agressões. Um grupo de pais apoiou a desocupação e professores que apoiavam os alunos chegaram a ser presos após a desocupação, como relata Rafael Saddi. “Eu e outros apoiadores estávamos lá. Nós dividimos os alunos nos carros para ir ao Ministério Público e Instituto Médico Legal. Quando eu saí com os meninos no carro, 3 carros me trancam, não eram carros policiais. Não estavam identificados. 3 carros me trancam junto com outro professor que estava atrás de mim, me seguindo. Todos nós com alunos no carro, alunos secundaristas. Mão na cabeça, arma na cara, mão na cabeça, sai do carro, não sei o que. E nisso, depois eu descobri, era polícia civil. E o delegado, ele estava diretamente na operação, e ele ainda afirma assim pra mim: É professor, agora nós vamos jogar tudo nas suas costas. Aí eu: jogar o que nas minhas costas? E ele: organização criminosa, dano qualificado, furto e corrupção de menores”. Outras escolas sofreram com intimidações, inclusive por grupos de mascarados. Assim, mediante a pressão e o clima de ameaças, os ocupantes acabaram decidindo por uma desocupação voluntária.
Prisões políticas
No dia 26 de janeiro, um grupo de estudantes ocupou a sede da Seduce, permanecendo na instituição por vários dias, enfrentando uma forte campanha criminalizante por parte da mídia local. O movimento de ocupação da secretaria visava a denúncia das irregularidades do processo de parceria do estado com as OS e exercer pressão para o cancelamento do recebimento da documentação das organizações concorrentes à gestão de 23 escolas na sub-região de Anápolis, planejado para o dia 15 de fevereiro. Com a intensificação da resistência e reforço da ocupação pelo Sindicato dos Trabalhadores da Educação de Goiás (Sintego), Central Única dos Trabalhadores (CUT) e Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), a secretária fez uma manobra mudando o local da atividade para o Centro Cultural Oscar Niemeyer, baixo um grande operativo de segurança, mantendo o evento fechado ao público.
Mais tarde, no mesmo dia, a Seduce voltou a ser ocupada por um grupo de estudantes que sofreu forte repressão da PM. Na operação de desocupação, foram presas 31 pessoas, entre estudantes e apoiadores, incluindo o professor Rafael Saddi. Os presos, entre eles 13 menores de idade, foram encaminhados para a Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas (DRACO), onde foi montado um grande cerco policial impedindo que os apoiadores se aproximassem. Os detidos foram levados em um ônibus do transporte público ao IML, onde realizaram exames de corpo delito, e retornaram à DRACO, onde passaram toda a noite dentro do ônibus aguardando para depor. Após os depoimentos, os menores foram liberados e os maiores de idade foram divididos: homens foram levados à Delegacia de Investigações Criminais, no bairro Cidade Jardim, e as mulheres do grupo ao 14º Departamento de Polícia Civil, na Vila Pedroso.
Na manhã do dia 16 de fevereiro, data marcante da capital goiana, quando 11 anos antes a Polícia Militar desempenhou a maior operação de sua história na violenta desocupação do Parque Oeste Industrial (Ocupação Sonho Real), Goiânia despertava com 31 detidos, considerados presos políticos pelo movimento. De acordo com os relatos, os presos adultos vivenciaram um forte experiência de intimidação e privações na cadeia, sem água, comida ou direito a banho, contando apenas com a solidariedade dos demais presos da carceragem. No dia 17 de fevereiro os manifestantes detidos participaram de uma audiência de custódia e foram em seguida liberados, restando aguardar o desenrolar do inquérito policial.
Após a intensa mobilização contra a implantação da gestão das OS na educação pública e contra o aumento da militarização das escolas, o governo de Goiás se viu diante da impossibilidade de levar a cabo o projeto sem um amplo debate na sociedade goiana e recuou em sua intransigência neste ponto, não sem antes empreender uma grande campanha publicitária defendendo sua posição. Com a pauta “quente” na esfera pública e o desenrolar dos acontecimentos que movimentavam o estado, importantes atores se viram impelidos a entrar na discussão do processo, como é o caso do Ministério Público e a Universidade Federal de Goiás, sendo que algumas pessoas se destacaram nesta posição, como o promotor Fernando Krebs, que junto a alguns de seus pares apontou inúmeras irregularidades na parceria do governo com as OS. Com a visibilidade que o caso tomou, Krebs passou então a ser bastante visado, sendo outro ator que relata perseguição e ameaças por se opor ao projeto da gestão Perillo.
Momento extraordinário
Dos fatos que se sucederam desde então, o mais importante é a suspensão do edital de contratação das OS anunciado no dia 23 de março. O governo de Goiás declarou que nenhuma das propostas apresentadas demonstrava capacidade técnica exigida pela Seduce para o estabelecimento da parceria. Esta pode ser considerada uma vitória política, mesmo que temporária, do movimento contrário às OS, tendo em vista que as denúncias desta incapacidade são feitas desde o início das ocupações das escolas, agravadas pelas ações públicas desempenhadas pelo Ministério Público.
Uma vitória de um movimento que tem crescido e vem se organizando em outros moldes, distante da militância partidária e como já dito, com outras referências, sendo que muitas delas ainda estão em pleno processo de construção. Rafael Saddi acredita que este é um momento extraordinário em que as coisas acabam acontecendo de uma maneira encantadora.
Na opinião de Saddi, este momento teve início em 2013 e tem como protagonista um público bem jovem. “2013 já foi um momento, aqui em Goiás, aqui em Goiânia principalmente, um momento bem extraordinário. Começou na luta pelo transporte, inclusive antecipando grande parte das lutas nacionais contra o aumento da tarifa”. Rafael prossegue em sua análise afirmando que a juventude tem um papel mais importante agora até mesmo que em 2013, ano em que, segundo ele, “já há uma juventude, um pessoal secundarista, um pessoal da universidade. Alunos, jovens, bem novos, sem uma tradição de partidos políticos tradicionais, sem uma tradição de organizações dentro de uma organização política, com um caráter muito combativo, com uma disposição de enfrentamento, que sem ela na minha opinião nenhum dos dois movimentos teria explodido, ou teria conseguido êxito. E criando do nada, criando as coisas sem muitas referências, sem uma tradição de luta que indicasse o que deveria ser feito. Só uma disposição muito de combater, uma ausência de vínculos com o estado ou com as organizações burocráticas. Tanto que, embora existiam estudantes vinculados a algumas organizações políticas, nenhuma dessas organizações políticas conseguiu dirigir o processo. Efetivamente predominou a ideia de que nós somos apartidários, somos autônomos, e nós não queremos conchavos e vínculos, e não tem arrego. Não tem arrego. Nós não negociamos”.
Sobre a disposição de luta e permanência da mobilização desta juventude, só o tempo poderá responder. Independente desta continuidade ou do desfecho coletivo destes processos, o certo é que é inegável a influência de uma transformação simbólica e política no estado, a impressão na esfera cultural de uma resistência ao autoritarismo político e militar, seja proveniente do meio tecnocrata instalado no governo ou do histórico militarismo brasileiro.
Na segunda década do século XXI, a escola volta ao centro da disputa de projetos de sociedade, e ao contrário do que se podia acreditar até pouco tempo atrás, a juventude não abriu mão desta disputa, seja do espaço escolar e suas diretrizes, seja na reforma e transformação profunda das demais instituições na construção do processo democrático. Tempos interessantes e complexos. Um verdadeiro momento extraordinário.
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ENTREVISTA
Um professor perseguido por apoiar os estudantes
Leia a entrevista completa com o professor de História da Universidade Federal de Goiás, Rafael Saddi, preso e criminalizado por apoiar o movimento de estudantes secundaristas recebeu a equipe do Le Monde Diplomatique Brasil em sua casa em Goiânia.
por Diego Mendonça, Elisa Di Garcia e Ricardo Roquete
Goiânia, 07 de março de 2016
DIPLOMATIQUE – Quem é o Rafael? Que agora está na mídia como professor rebelde, cooptador de jovens, aquele cara que foi preso, perseguido. Quem é o Rafael?
Rafael Saddi – Pergunta difícil demais. Acho que é alguém que tem dificuldade de conseguir se definir assim. Em toda essa luta contra as OS, eu tenho me entendido como professor e pesquisador. Porque o meu envolvimento nessa luta veio das minhas relações que eu desenvolvi com a escola. Desde que eu entrei na universidade eu tenho pesquisado didática da História. Então me dediquei a investigação sobre o ensino da história, sobre as funções da História na orientação das vidas das pessoas, e criei vários projetos que eu desenvolvo dentro das escolas tentando dialogar tanto em formação de professores, quanto pensar o ensino de história junto com alunos da escola pública. Então eu coordeno PIBID, trabalho com estágio na universidade. Então eu criei relações muito fortes com a escola. Então quando veio o projeto de OS a minha reação foi natural ao projeto. Foi porque eu estou pesquisando escola, porque eu estou pensando os problemas da escola pública. Porque eu percebi via pesquisas o que que esse projeto efetivamente significa. Então apesar de ter criado ou retornado à ideia do Rafael militante, eu ainda não consigo me enxergar como um militante, mas como um professor que tá cumprindo o seu papel de se posicionar frente as mudanças na educação.
DIPLOMATIQUE – Sobre essa situação, que é a atual situação que é esse processo de resistência e luta, diz respeito à implantação das OS no ensino público em Goiás. Por que o Rafael e por que o movimento dos secundaristas são contra as OS?
São muitos motivos. Talvez o primeiro seja o fato de que as OS significam uma flexibilização. Primeiro na contratação de serviços, de prestação de serviços. E segundo uma flexibilização das relações de trabalho. Essa contratação de serviço significa o quê: o estado ao transferir para as OS as escolas, ela pode contratar sem os procedimentos que o estado precisa usar. Contratar serviços. Então o estado precisa fazer licitação, garantir igualdade entre os concorrentes e tudo o mais, se ele quiser fazer uma reforma na escola, por exemplo. A OS não precisa disso. Como uma empresa privada ela contrata quem ela quer. Ela não responde aos mesmos procedimentos que o estado precisa responder. Então esse processo de flexibilização que, pra quem defende a OS é justamente o ponto positivo porque dá agilidade pros procedimentos, pras compras, pras coisas que precisam, pra gente é simplesmente uma forma de facilitar um desvio de dinheiro público que já acontece via licitação, porém com muito mais dificuldade, com fraudes, com um conjunto de procedimentos ilegais. Então a OS dá uma certa legalidade pra possibilidade de você contratar quem você quiser. E analisando o que tem acontecido na saúde, tanto em Goiás quanto em São Paulo, no Rio de Janeiro, no Brasil inteiro, o que as OS fazem? Elas contratam empresas laranjas ou as mesmas empresas, ou empresas da sua própria família pra esse serviço. Então você cria uma máfia em volta da escola, que transfere dinheiro direto. Quer dizer, eu vou fazer uma reforma e preciso de 8 milhões pra fazer a reforma na escola, eu vou lá e contrato uma empresa que é, na verdade, da minha família, e faço uma obrinha lá e pego o restante. Então na questão da flexibilização de serviços existe uma facilitação desse desvio de dinheiro público pras empresas privadas. Quando a gente foi estudar quem são essas OS que foram qualificadas pelo governo, aí a gente percebeu que isso é uma comprovação. O problema pra nós não é simplesmente: “Ah, porque essas OS não são idôneas. Então se forem outras com um histórico de idoneidade então aí tudo bem”. Não. O fato de não serem idôneas só comprova aquilo que a gente imaginava. Esse processo de facilitar o desvio de dinheiro público pra empresa privada.
O segundo motivo é a flexibilização das relações de trabalho. Quer dizer, OS não precisa, inclusive por decisão já, por interpretação do STF, ela não precisa fazer concurso público. Então quem é contratado pela OS, ele passa a ser um funcionário da OS, ele é privado, ele não é público, embora ele esteja trabalhando em uma escola que supostamente e juridicamente permaneça pública, ele é funcionário privado. Então o que ela faz é um processo simples, seletivo e tudo o mais. Com isso acarreta um conjunto de perdas, como por exemplo, é a OS que define junto com os trabalhadores – e nesses acordos coletivos a gente sabe que quem tem poder é o patrão – o salário. Sem concurso público o professor perde a estabilidade, e os demais trabalhadores da educação. E aí é uma tendência no estado de Goiás que já não faz concurso público desde 2010, a não ter mais concursos públicos mesmo, porque existe uma cláusula no edital de OS que é, nesse edital específico pras 23 escolas de Anápolis, que a OS tem a obrigação de manter somente 30% dos professores efetivos do estado. Ou seja, em torno de 70% dos professores hoje são efetivos. Ou seja, ela pode pegar a escola com 70% de professores efetivos – tem uma escola de Anápolis dizendo que tem 89% de professores efetivos – e simplesmente tirar esses caras e fazer um conjunto de outros processos pra ter empregados privados.
DIPLOMATIQUE – O regime de contratação seria CLT?
CLT. E aí ela tem vantagens com isso, por exemplo essa coisa de criar um cabide de empregos. Por que o funcionário privado ela coloca…
DIPLOMATIQUE – Na fila do desemprego…
Exatamente.
DIPLOMATIQUE – Se não quer, tem um tanto aí na rua.
Exatamente. E aí tem esses interesses econômicos, que é abocanhar mesmo uma grana que é o dinheiro que vai pra educação. A criação de cabides de emprego, que também se relaciona diretamente com a criação de curral eleitoral. Por exemplo, uma das OS, ela está vinculada à Faculdade Cambury que é do (Giuseppe) Vecci.
DIPLOMATIQUE – Que é o candidato do Marconi.
Que é o candidato do Marconi pra prefeitura (de Goiânia). Então existe uma possibilidade grande de com o domínio das escolas você ter um conjunto de funcionários que estão a mercê de você, dependendo daquele emprego e tal, e por isso vão fazer o que você mandar fazer. Inclusive fazer a campanha eleitoral, como já acontece no estado. No interior é muito comum funcionários contratados, que não são efetivos, terem que ir pra rua com bandeiras de candidatos na época das eleições.
Esses são dois motivos mais gerais que eu acrescentaria o que significa a lógica do processo mesmo, que é um processo que não começou hoje, mas que se intensifica com a ideia das OS, que é a inserção de uma visão empresarial, ou, pelo menos, o crescimento dessa visão empresarial, no âmbito da educação pública. E aí isso gere toda a lógica. Essa coisa, se a empresa que vai lucrar com o processo, embora juridicamente a OS não tem fins lucrativos, é obvio que o Cachoeira, por exemplo, que a OS do Cachoeira não vai trabalhar de graça, não vai administrar de graça, sem ganhar nada…
DIPLOMATIQUE – Pois é, mas a própria secretária reconheceu em entrevista que sabe, que a Seduce sabe que as OS almejam lucro.
Exatamente. Inclusive ela disse que preferia a PPP, a Parceria Público Privada, porque era mais transparente. Ela tem que mostrar qual lucro que ela teve. A OS não. Tem um lucro embutido. E mais, o lucro precisa ser ilegal. Quer dizer, pra obter o lucro ela precisa cometer corrupção. Ela precisa desviar esse dinheiro público de alguma forma. E é fácil fazer isso no procedimento de OS. E também a gente não pode reduzir à forma jurídica e falar então é sem fins lucrativos, logo é sem fins lucrativos, não. Se você analisar sociologicamente, toda estrutura te leva a produzir lucro de outra forma. Não o lucro legal, mas o lucro via ilegal, via corrupção e tudo o mais. Superfaturamento do serviço e tudo o mais. E existe um monte de coisa que a muito tempo tá ligada à educação pública, que são produção de apostilas, empresas de produção de apostilas, cursos de formação de professores. É um conjunto de empresas, de empresários da educação, que lucram com a educação pública. Com esse sistema de OS isso se intensifica, e se torna um excelente mercado na verdade, porque só com essas 23 escolas, segundo o cálculo do professor Tadeu Alencar Arrais, claro que é um cálculo de estimativa, é uma estimativa de 67 milhões só pra 23 escolas, que uma OS receberia. A OS que ganhar esse edital agora. No ano. Em uma mesa redonda com o Marcos das Neves, o Marcos Tucano, que trabalha na Secretaria de Educação, que é inclusive dono do colégio Integrado Jaó, e é o técnico responsável pela produção do edital, ele disse que o cálculo ainda é maior, é 72 milhões mais ou menos, que essa OS vai receber por ano. Isso sem os termos aditivos. Porque o que aconteceu na Saúde é que tem um contrato, esse contrato impressionantemente aumentou em muito o dinheiro que é destinado às OS em relação ao dinheiro que era destinado anteriormente pra esses hospitais geridos pelas OS. E também, além dos contratos serem maiores, envolvendo um dinheiro maior, tem os termos aditivos. Que é o que? No projeto que a OS fez, que o governo aprovou, na minuta de contrato, não tinha a reforma da escola, mas aí ela fala: olha vamos precisar reformar porque a gente percebeu que aqui não dá pra ter aula e tudo mais, aí pelo 8 milhões, 9 milhões, e o estado vai lá e aprova. Isso está acontecendo na saúde. Ele vai lá e aprova o termo aditivo, sem passar por ninguém.
DIPLOMATIQUE – E vai aditivando.
Vai aditivando.
DIPLOMATIQUE – Isso tem que passar pela assembleia também ou é só do executivo?
Não. A secretaria de educação mesmo, no caso a secretaria de saúde mesmo, que libera. Entendeu? Então quer dizer, e o contrato prevê isso, a possibilidade mesmo de o que não está previsto ser aprovado depois via Secretaria de Educação, isso pra educação. Então é muito dinheiro envolvido. Gera outros problemas, que é essa lógica empresarial, na educação tem uma especificidade, porque tudo isso que eu coloquei até agora é o mesmo problema com a saúde, pra educação isso tem algumas especificidades, que é, que também pode ser pensado na saúde mas aqui é voltado pra questão pedagógica – que tipo de ensino, que tipo de formação essas empresas estão preocupadas? Como elas pensam a educação? Que tipo de proposta pra educação elas são capazes de fazer? Quando você lê as falas dos diretores de OS que estão concorrendo, ou fica evidente nas entrevistas que eles não tem conhecimento nenhum, que estão caindo de laranja nessa coisa, ou quando apresentam algumas concepções é sempre essa lógica empresarial mesmo, de fazer o professor trabalhar, intensificar o tempo de trabalho do professor, fazê-lo dedicar todo o tempo, as 40 horas, aos alunos, à orientação dos alunos. Quer dizer, parece ser – nossa que bom, os professores terem mais tempo e tal, de trabalhar com os alunos. Mas não é. Na verdade é um modelo mesmo idêntico aos modelos por exemplo do McDonald’s. Assim, nós vamos fornecer bônus e dar visibilidade pro profissional que se dedicar. É uma lógica empresarial que pra educação é muito preocupante. Por exemplo, hoje o professor trabalha 42 horas, grande parte dos professores, a maior parte dos professores, eu imagino, isso é uma pesquisa que eu ainda estou fazendo, mas uma boa parte dos professores trabalha 42 horas dentro de sala de aula. Que absurdo…
DIPLOMATIQUE – Os efetivos do estado?
Os efetivos do estado. O que é assim, absurdo, porque não tem como a educação funcionar dessa forma. Não é a quantidade de tempo que ele tem que estar com os alunos que vai definir uma qualidade da educação. Porque todas as discussões de educação que falam por exemplo do professor-pesquisador, é impossível nessas condições porque o cara está 42 horas dentro de sala de aula. Qual o tempo dele preparar aula? Qual o tempo dele pesquisar?
DIPLOMATIQUE – Mas há uma diferença entre a universidade e a escola pública.
Então, no ensino federal o professor trabalha geralmente 8 horas dentro de sala de aula e dedica o resto à pesquisa e extensão, e orientação de alunos. Sem isso, sem um tempo pra pesquisa, pra preparação de aula, pra se dedicar ao ensino não tem como a educação funcionar, só que a lógica empresarial é justamente você trabalhar mais, super-exploração do trabalho, que é inclusive uma forma deles conseguirem economizar essa grana pra poder desviar. Outra coisa são metas. Uma educação por metas, por resultados. Qual é a nota do IDEB dessa escola? É preciso chegar a nota tal. Só que o IDEB que supostamente mede o índice de qualificação, ele tem vários problemas. Veja, o estado de Goiás é o primeiro lugar no IDEB. No último IDEB do ensino médio ele ficou no primeiro lugar do Brasil. O maior IDEB do Brasil. Porém em relação ao último IDEB, ele aumentou diminuindo as notas de português e matemática, que são as únicas notas, vamos dizer assim, qualitativas, de provas mesmo, que o aluno faz. Ele faz uma prova de português e matemática. Essas notas pioraram, dos alunos goianos, dos alunos de Goiás. Piorou. A nota piorou, mas o IDEB aumentou. Aumentou por que? Por que eles começaram a passar os alunos, que é uma outra, a taxa de rendimento que conta no IDEB. Então, quer dizer, todo mundo fala – aluno hoje não reprova. Todo aluno sabe, todo professor sabe que não pode reprovar. Por que? Por que se implementou uma lógica de notas do IDEB. A escola precisa tirar nota boa no IDEB, pra tirar nota boa no IDEB a gente passa todo mundo. Então, que se dane a qualidade. Não importa se o ensino é bom. Mais ainda, o desprezo às outras disciplinas, especialmente as disciplinas críticas – história, filosofia, sociologia. Cada vez mais essas disciplinas vão perdendo espaço dentro da escola. Porque não importa o pensamento crítico, o que importa é atingir as metas.
DIPLOMATIQUE – Então, pra além dessa identificação das práticas, dos procedimentos, são assumidamente e obviamente baseados numa lógica de mercado, empresariais, isso tudo recai numa consequência simbólica e de resultado efetivo em que vai predominar uma lógica de vida liberal ou neoliberal, assim, em última análise.
Exatamente.
DIPLOMATIQUE – Até na formação dos estudantes, da juventude, vamos dizer assim. Que é o que seria o papel da escola, o papel estratégico de formação, dentro do ambiente da democracia representativa, do estado, de cidadania, vamos dizer assim. E a cidadania que vai prevalecer num ambiente de ensino assim seria essa lógica do mercado.
Exato.
DIPLOMATIQUE – E isso só potencializa isso? O que você acha? Num ambiente assim, numa leitura mais macroeconômica e política, ideológica até.
O projeto é justamente esse, ele está bem inserido nas concepções neoliberais de educação. Que, como a gente sabe, começou a ganhar espaço, a ganhar força, na década de 90, aqui no Brasil. Assim, com mais intensidade na década de 90. Veja que não é um processo que retorna simplesmente, ele só ganha intensidade agora, e muita intensidade. Porque veja, a política neoliberal é justamente essa – o que importa é atingir as metas, os índices. Isso tem tudo há ver com a reestruturação produtiva mesmo, do trabalho. Quer dizer, não importa mais o modelo do trabalhador cumprir as horas dentro da fábrica. Ficar lá 8 horas por dia batendo ponto. O que importa é colocá-lo pra trabalhar de forma flexível, mas de forma muito mais intensa. Então, que ele faça em casa, ou que ele vá lá no final de semana, mas o que importa é que ele tenha metas pra atingir e as metas sejam cumpridas. Esse tipo de relação de trabalho, ela colocou o trabalhador numa situação que parece de liberdade, mas na verdade, é de super-exploração. Quer dizer, ele não consegue mais ter tempo nenhum, porque todo tempo dele ele precisa estar tentando atingir as metas e tudo o mais. Essa é a concepção que está colocada pra educação. Quer dizer, intensificar as metas, que os alunos e os professores atinjam metas, se eles não atingir metas eles são punidos por não atingir essas metas, então ele cria uma lógica de estar sempre dependente e com uma aparência de liberdade. Falar assim – olha, o fracasso é meu, se eu não conseguir alcançar, o fracasso é meu. Então eu vou acabar pagando por esse fracasso que eu não consegui atingir. A educação foi voltada nisso, então se cria um conjunto de índices educacionais, de grandes avaliações, e essas grandes avaliações é que vão medir a qualidade da educação. Se o país atinge metas, se as escolas atingem metas, aí você cria um conjunto de hierarquias de pressão, que tira a autonomia completa do ensino do professor. Que é, o estado define as metas, a Secretaria de Educação repassa e cobra dos diretores, os diretores cobram dos professores, e a escola vai criando um conjunto de mecanismos pra punir, pra pressionar e tudo o mais. Por isso hoje no estado de Goiás você tem um controle completo sobre o currículo. Quer dizer, o professor tem que estar falando o tempo inteiro o que ele está dando em cada sala, em cada aula. Coisa que antes a gente fechava a porta e ali, se por acaso, você percebeu, por exemplo, que aquela sala lida com as meninas da sala de uma forma machista, e você, por exemplo, eu no caso, como professor de história, reformulava o meu currículo. Começava a falar – eu preciso discutir a história das mulheres, discutir relações de gênero na história, pra ver se eu consigo transformar essas relações aqui que precisam ser pensadas por esses alunos. Bom, isso não é mais possível. Ou, pelo menos, a tendência neoliberal é eliminar essa possibilidade. O professor passa cada vez mais a aplicar…
DIPLOMATIQUE – Só aplicar um receituário.
Um receituário inclusive com a política de apostilas. Você tem um apostilão lá e aí você não precisa mais de um professor bem formado. Pode ser qualquer um, porque ele é só um aplicador de apostila. A apostila tá lá prontinha, o feito que ele precisa é que o aluno consiga aprender aquela apostila pra sair bem nos testes. E óbvio, todo projeto é pensado pro trabalho, formar. Pra que serve a massa? Pra que serve a escola pública? Pra formar esse povo pro trabalho, botar essa galera no mercado de trabalho. Aí tem todo um projeto da Confederação Nacional da Indústria, a importância da educação pro trabalho, de como é necessário, a gente tá precisando de quadros qualificados pro trabalho. E veja, a escola, estruturalmente a escola, ela nunca conseguiu se afastar disso, desse papel estrutural dela, de formação de mão de obra pro trabalho. Tanto que, a gente sempre gastou muito tempo com o que que o aluno sai aprendendo da escola: a obedecer, cumprir ordens, a ficar sentado, a ter disciplina. Coisa fundamental para o mundo do trabalho. Então ela já cumpre esse papel de disciplinar o aluno, dele aprender a ficar quieto num lugar, sentado numa cadeira e obedecer, calar a boca, ficar quieto, sentar. Que é o que o professor faz o tempo inteiro, nesse papel, de um disciplinador, de um gestor da ordem, da administração da sala de aula. Isso sempre existiu, a grande questão é que existe uma contradição dentro da escola. O espaço, além de ser um espaço que cumpre esse papel estrutural, ele cumpre um papel de aglutinação, de sociabilidade, de criação de relações, de reflexão sobre conhecimentos que não são dados em outras ordens, de discussão sobre a ciência, de reflexão sobre problemas que estão colocados na atualidade da sociedade e tal. E sempre foi uma luta entre esses espaços, disciplinadores para o trabalho e esses espaços críticos, esses momentos de sociabilidade e de crítica que a escola produz. O que está acontecendo, o que acontece com a lógica neoliberal é que ela vai limitando cada vez mais esses espaços críticos. Ela consegue impor uma agenda de metas, uma agenda hierárquica de pressão que vai tirando a nossa autonomia de construir esse espaço de reflexão. As OS e as escolas militares cumprem isso de forma excelente. Quer dizer, é justamente eliminar o que resta desse espaço, de crítica, de sociabilidade e tudo o mais, porque aí todo é controlado via de cima.
DIPLOMATIQUE – A gente ia chegar nisso, que são números que a própria secretaria, a Seduce passou pra gente, que hoje no estado tem 27 escolas militarizadas. 27 num universo de escolas parece tudo bem, parece um número reduzido. Mas se a gente pensar no que são 27 escolas militarizadas, é muito. E 23 estão destinadas a esse processo das OS. Ou seja, então isso tudo deixa um pouco claro que é um projeto político, ideológico, total por trás disso e que a tendência é só expandir.
É.
DIPLOMATIQUE – Como que você vê isso? É um projeto do governo do estado? É um projeto que parte do meio empresarial, dos detentores dos meios de produção? Como está o estado nisso aí, e se é um projeto político grande? Como é isso?
O que eu consegui averiguar até agora, porque é muito difícil você chegar aos bastidores. Como que o projeto foi formulado, quem está pensando ele…
DIPLOMATIQUE – É um mesmo projeto, dos militares e das OS?
Não. Não é um mesmo projeto.
DIPLOMATIQUE – Em última análise, assim.
Em última análise sim. Na minha opinião sim. Veja, há alguns indícios que você consegue tentar entender qual que é o projeto do governo do estado. Por exemplo, teve uma fala do Marconi Perillo que ele diz, em um evento, que tinha alguns professores do estado que gritaram palavras de ordem contra ele e tudo o mais, e que ele foi e no outro dia decidiu que tinha uma solução pra esses vagabundos e indisciplinados que não queriam trabalhar – escola militar. E efetivamente, os professores do Mobilização dos Professores de Goiás, que é o MPG, um movimento de professores independente do Sintego, eles falavam isso, só que o Marconi vai dar essa entrevista na Bahia bem depois. Ele fala – “eu decidi lá e eu fiz, coloquei as escolas militares. Identifiquei a escola de cada um desses professores e coloquei a escola militar lá”. Esses professores já falavam isso, que foi uma punição à greve dos professores e que ele escolheu as escolas que aderiram à greve e onde havia militantes do MPG. Quando os professores falavam isso era muita…
DIPLOMATIQUE – Muita conspiração.
Muita teoria da conspiração. Depois o Marconi afirma isso em entrevista pública. Tem até um vídeo gravado dele falando de boca cheia isso. Quer dizer, um elemento que está por trás das escolas militares e das OS é o controle sobre a força de trabalho. O controle político da força de trabalho. Quer dizer, os professores sempre deram muito problema de resistência, de greve, de criação de enfrentamento contra o governo do estado. As escolas militares simplesmente elas conseguem efetivamente eliminar a greve. As OS então, acabou a greve. Porque, veja, você coloca professores contratados lá dentro, o cara fala – se fizer greve está demitido.
Então existe um projeto, as OS e a escola militar é um projeto do Marconi de controlar politicamente os professores. Uma das ideias é essa – eliminar resistência, greve, os enfrentamentos que os professores têm feito. E é um projeto muito bom pra isso, que efetivamente ele consegue minar a força de uma categoria. Até porque nas OS, por exemplo, você passa a ter dois tipos de professores. Três, na verdade – o efetivo, o contrato CLT e o contrato temporário. Quer dizer, qual a força dessa categoria? Sem contar o que que isso vai gerar na previdência, porque aí você tem menos contribuições, menos pessoas contribuindo, isso vai depois minar a previdência dos professores e tudo o mais. Mas tem esse objetivo político, de controle político da força de trabalho, da resistência e da luta. Só que isso tem sido pensado com as empresas. Porque, veja, quando você percebe que todas as OS organizadas, praticamente todas as 11 OS que foram qualificadas, possuem vínculos diretos, são homens de confiança, ou que apresentam vínculos diretos com o governador, ou com o grupo no poder, e são empresas que sempre estiveram aí se beneficiando do estado…
DIPLOMATIQUE – Comprovadamente de forma ilegal.
Comprovadamente de forma ilegal. Então você vê que esse interesse econômico também é forte, quer dizer, o interesse político e o interesse econômico pensados juntos. São duas questões que contribuem para pensar a importância de um projeto como esse. Por isso não é fácil a luta contra as OS também. Por isso que essa luta gera uma repressão muito forte, porque é muita grana envolvida. Muito interesse envolvido.
DIPLOMATIQUE – Isso é outra coisa que queria te perguntar, que é justamente isso, se num ambiente em que já existe uma segurança de trabalho, a contratação de professores efetivados, já existe esse ambiente de repressão, de perseguição, imagina na implementação das OS.
Exatamente.
DIPLOMATIQUE – E, se a repressão ela se expande, até pra quem não é desse universo, mas é da sociedade, queria até chegar na prisão, dentro desse processo de perseguição sistematizada que acontece aqui em Goiás aos opositores. Como isso vai se ampliar nos ambientes das escolas?Militarizadas e OS.
Exatamente. Porque, veja, hoje o professor, por conta desse processo neoliberal de avanço nas políticas educacionais, o professor no estado de Goiás hoje, ele já não tem mais a autonomia da luta. Veja, porque funciona assim, o contrato dele, pra ele poder ter um salário mínio, assim, minimamente razoável, ele tem que cumprir essas 42 horas. Só que ele não consegue cumprir essas 42 horas na escola, em uma escola. Então alguns colocam ele cumprindo naquela escola, outros coloca ele pra trabalhar em duas escolas, por exemplo. Se por acaso em uma escola que ele cumpre 28 horas, se ele por acaso participou de uma greve, ou participa de uma manifestação contra a OS, a secretária de educação pressiona o diretor, pro diretor tirar as horas que ele tem lá. Então aí ele tem que se virar pra arranjar a complementação. Senão ele perde o salário, diminui o salário dele bruscamente, ou senão ele vai trabalhar em várias escolas, uma do outro lado e tal, e perde a qualidade, complexa o indivíduo e tal. Então quer dizer, isso faz com que o professor fique na mão do estado. E ele usa isso muito. Outra questão é a gratificação do diretor, eu não sei exatamente quanto está a gratificação agora, mas houve um aumento significativo nos últimos anos, na gratificação do diretor, que coloca o diretor completamente dependente do estado. E como, apesar de eleito ele é tirado facilmente, a toda hora – eu vou tirar esse diretor e colocar um interventor. Isso acontece o tempo inteiro aqui no estado. Então quer dizer, já existe um controle sobre a força de trabalho muito grande na secretaria de educação. Não há autonomia nenhuma de resistência, de luta e tal, de posicionamento crítico frente ao governo. O professor morre de medo. Ele é pressionado o tempo inteiro. Foi o que aconteceu nas ocupações. Os professores que apoiaram as ocupações foram ameaçados de cortes, de tudo quanto é jeito.
E mesmo os que não participaram ou que não apoiaram, eles foram pressionados dizendo assim – se a sua escola continuar ocupada nós vamos tirar a gratificação de vocês. Se a sua escola for ocupada nós vamos, aí começaram a orientar os pais para matricularem em outras escolas e não mais naquelas porque estão ocupadas, e vocês não vão ser modulados na escola. Ou seja, vocês vão ter que ser transferidos – vai perder turmas aqui e você vai perder aulas. Então, foi um conjunto de pressões pra colocar os professores contra os alunos. Muitos caíram nessa e foram pra cima dos alunos – “vocês tem que desocupar”!
DIPLOMATIQUE – Os professores e a sociedade. No início a mídia teve um papel muito importante.
Fundamental. Mas aí voltando a essa questão do projeto. Um projeto é esse, veja, quando a secretaria de educação fala que serão 23 escolas, na verdade, o decreto inicial é de 30% da rede estadual. É 25 a 30% da rede estadual. 30% das escolas de Goiânia, esse é um decreto do governador de 15 de outubro do ano passado. 30% das redes de Goiânia, Aparecida e entorno de Brasília, e 25% do resto da rede passaria pra mão das OS. Isso daria em torno de 300, um pouco mais de 300 escolas passariam pra mãos de empresas privadas. Quer dizer, é um projeto amplo. Da mesma forma a escola militar. Nós temos 27, mas a ideia era até o final do ano passado passar pra 50 escolas militares. Quando ele decidiu que ia militarizar as escolas dos professores que estavam participando da greve, ele imediatamente fez um decreto pra militarizar 8 escolas de uma vez, em junho, e em agosto as escolas já estavam nas mãos da polícia. Já começou como escolas do colégio da Polícia Militar. E as escolas estavam em greve, os professores voltaram da greve, em férias, voltaram das férias já numa outra escola, numa escola com 20 policiais lá dentro controlando, administrando toda a escola. Quer dizer, nem precisa falar que constitucionalmente isso é absurdo porque fere a LDB, o princípio de gestão democrática, que a comunidade tem que participar das decisões, da administração da escola. Fere a lei de eleição do diretor, porque o diretor da escola militar é retirado e é colocado um militar pra dirigir. Só que as coisas vão acontecendo assim, de forma ilegal.
Então é um projeto, a ideia é essa. Outra coisa que o governador falou – “nós precisamos acabar com a estabilidade, a estabilidade é o pior mal que se tem no funcionalismo público”.
DIPLOMATIQUE – É que gera vagabundos.
Gera vagabundos e tal. Então o objetivo é esse mesmo. Implantar esse sistema, não só na educação, a lei de OS de 2005, que foi aprovada no estado, lei estadual, ela implica em OS em todas as áreas, cultura, segurança pública, que teve toda uma discussão que foi barrada, de terceirizar os presídios, saúde, pesquisa, universidade, inclusive a UEG está no rol de futuras. Então em todas as áreas a ideia é tentar implementar esse modelo. Eu acho, a minha avaliação, é que esse movimento conseguiu desmoralizar o sistema de OS. E ele era central, porque desmoralizar agora implicaria em ter que recuar em todas as outras áreas que viriam. Eu acredito que o movimento conseguiu desmoralizar e em toda área, se quiser implementar agora, vai ter resistência. Porque as pessoas já não estão cruas em relação à OS, já olha pra OS com uma crítica, já mais receoso do que significa isso.
DIPLOMATIQUE – Pois é, chegou num ponto que queria tocar também. Acho nós estamos vivendo um momento novo em Goiás. Eu, pelo menos, não me lembro ou não tenho notícia dessa eferverscência, de resistência, de mobilizações e tal, acontecendo há tanto tempo e seguidamente. E, ao mesmo tempo, sob um ambiente sufocante de perseguição, de repressão, você mesmo foi vítima de prisão. E a gente vê aí tem o movimento de luta pelo transporte, tem a luta dos professores, professores independentes do Sintego, agora a gente vê o processo de ocupação das escolas. A repressão está aí forte, esse ambiente sufocante, muito sufocante, com apoio da mídia, inclusive com o apoio da sociedade também, todo esse constructo aí. Mas a resistência está aí também, forte e crescendo. Como você analisa esse momento em Goiás? É um momento sui generis que está sendo vivido aqui?
Eu acho que sim. É um momento extraordinário. É um momento em que o que é comum, o que é normal, ele se perde, tudo ganha em extraordinário. É um momento extraordinário, é um momento que as coisas aparecem, acontecem de forma assim, meio encantadoras. Que na minha opinião começou em 2013. 2013 já foi um momento, aqui em Goiás, aqui em Goiânia principalmente, um momento bem extraordinário. Começou na luta pelo transporte, inclusive antecipando grande parte das lutas nacionais contra o aumento da tarifa. Então veja, eu acho que uma das características desse momento extraordinário é o fato de ter inserido, entrado nessa luta, e até sendo protagonista dessa luta, uma população bem jovem. Tanto em 2013, quanto agora. Agora mais ainda. Mas em 2013 já há uma juventude, um pessoal secundarista, um pessoal da universidade. Alunos, jovens, bem novos, sem uma tradição de partidos políticos tradicionais, sem uma tradição de organizações dentro de uma organização política, com um caráter muito combativo, com uma disposição de enfrentamento, que sem ela na minha opinião nenhum dos dois movimentos teria explodido, ou teria conseguido êxito. E criando do nada, criando as coisas sem muitas referências, sem uma tradição de luta que indicasse o que deveria ser feito. Só uma disposição muito de combater, uma ausência de vínculos com o estado ou com as organizações burocráticas. Tanto que, embora existiam estudantes vinculados a algumas organizações políticas, nenhuma dessas organizações políticas conseguiu dirigir o processo. Efetivamente predominou a ideia de que nós somos apartidários, somos autônomos, e nós não queremos conchavos e vínculos, e não tem arrego. Não tem arrego. Nós não negociamos.
*Diego Mendonça é mestre em Direitos Humanos e Cidadania e realizador audiovisual. Elisa Di Garcia é mestre em História e realizadora audiovisual. Ricardo Roquete é produtor cultural e audiovisual, músico e jornalista de ocasião.
Fotos: Silvia Patrícia, Desneuralizador e Diego Mendonça
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Fonte: Le Monde Diplomatique