120 anos de Graciliano Ramos

Por Luiz Ricardo Leitão. 

Nascido em Quebrangulo, no interior das Alagoas, em 27 de outubro de 1892, o dileto e genial mestre Graciliano Ramos teria completado na última semana seu 120º aniversário. Infelizmente, em meio às escaramuças do segundo turno eleitoral nesta nossa Bruzundanga e à bulha midiática pelos capítulos finais de mais um folhetim eletrônico global, a data passou quase despercebida entre nós. Houve belas homenagens, sem dúvida, entre elas o relançamento da primorosa biografia escrita por Dênis de Moraes (O Velho Graça) e a edição de Garranchos, compilação de textos a cargo de Thiago Mio Salla. O escritor, contudo, merecia muito mais – e espero que, em breve, tratemos de saldar essa dívida, celebrando com pompa e circunstância as seis décadas de sua dolorosa e precoce partida deste planeta azul em 1953.

Ler Graciliano é uma experiência imprescindível para quem deseja conhecer, pelos atalhos mágicos da ficção, os segredos mais profundos deste país de latifundiários que se chama Brasil. Desde o tempo das sesmarias dos finados Zacarias, ainda no século 16, durante a primeira onda de globalização do Novo Mundo, ser proprietário de vastas extensões de terra é um símbolo de poder na Terra de Santa Cruz (que o diga FHC, ex-sociólogo dos príncipes, cioso de sua brejeira fazenda em Buritis). Muitos pensadores brasileiros esmiuçaram essa verdade tropical, mas poucos romancistas souberam apreender com sufi ciente lucidez e imaginação o singularíssimo arranjo de classes graças ao qual os velhos coronéis da casa grande ludibriaram a senzala e se perpetuaram no imaginário nacional e também na vida prosaica da República.

O seco e agreste alagoano, autor de obras-primas como São Bernardo e Vidas Secas, foi decerto o mais agudo crítico dessa fórmula quase prussiana de modernização sem ruptura que dita o processo de evolução capitalista no país. Isso não quer dizer que, antes da criação de personagens como Paulo Honório ou Fabiano & Sinha Vitória, não tenha havido outros intérpretes clarividentes de nossa truncada e excludente história. A começar por Machado de Assis: quando lemos Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) e nos espantamos com os caprichos de seu narrador, capaz de montar a cavalo em crianças escravas e prometer ao leitor eventos que nunca relatará, a associação com Fernando Collor ou FHC é imediata. O menino é o pai do homem… No plano retórico, a modernidade é uma lei natural, verdadeira panaceia para os males dos “descamisados”; na vida real, “esqueçam tudo o que escrevi” – e também aquilo que casualmente se disse em campanha.

Machado, porém, não quis sair da cidade. Segundo ele próprio escreveu, o mundo “começa aqui no Cais da Glória ou na Rua do Ouvidor e acaba no Cemitério de São João Batista. Ouço que há uns mares tenebrosos para os lados da ponta do Caju, mas eu sou um velho incrédulo” (Esaú e Jacó). Foi, de fato, uma pena. Se tivesse seguido o exemplo de Lima Barreto (outro mulato extraordinário, mas quase um marginal na cidade das letras), o criador de Brás Cubas talvez nos tivesse revelado aspectos ainda mais sutis da nossa modernização, em um país onde o progresso é fruto de uma aliança secular do latifúndio com a burguesia urbana – e cujo capital industrial e financeiro, em última instância, também provém desse pacto turbulento, porém eficaz, entre as classes dominantes do campo e da cidade.

Cronista das vidas secas e agrestes, o mestre Graça parecia querer nos dizer que, nesta cultura da modernização sem ruptura, o velho ainda sabe usar a roupagem do novo, ditando o curso da transformação capitalista sob o ritmo dos alqueires infinitos. Em suas contínuas versões, esta articula golpes e contragolpes, rastreia as turbulências prestes a explodir e antecipa- se à sua propagação. Seduz alguma gente e, se necessário, reprime outras tantas. Até quando, porém, o fôlego lhe sobrará? Só há curvas onde as retas foram impossíveis. Creio que era nisso que o vaqueiro Graciliano cismava à porta de seu cárcere imemorial… Axé, Velho Graça!

Fonte: http://www.brasildefato.com.br

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