Cheguei ao fim de 12 anos escravo com a certeza de que este não é um filme sobre escravatura ou sequer sobre preconceitos raciais. Que haverá mais a dizer sobre essa vergonha da Humanidade que já não tenha sido dito anteriormente e de múltiplas formas, da arte à filosofia?
12 anos de escravo é a história de uma violação. Tão simples como isto: violação. Múltiplas violações, na verdade. E, tal como nas violações, um final feliz não impede o trauma.
É uma história pungente e emocional, mas filmada com uma sobriedade rara em Hollywood. Não há violinos piegas ou violência gratuita. O realizador Steve McQueen é inglês, tal como o fabuloso Chiwetel Ejiofor que protagoniza o filme – talvez esta visão exterior sobre um período da história dos EUA tenha permitido uma obra tão simples e honesta.
Não vi no filme nenhuma intenção de criar um manifesto contra a escravatura e o racismo, ou contar o típico percurso sofrimento-triunfo de um herói americano, mas mostrar o traumático percurso de um homem livre cuja honra e dignidade é sistematicamente violada por donos de plantações sulistas vestidos como sofisticados senhores europeus mas que não passam de cretinos e parolos com um chicote numa mão e uma bíblia na outra.
12 anos escravo é uma história de injustiça e indignidade que se torna completamente independente de questões de raça. Não é um mastodonte com pretensões de recontar a História: não vejo nenhuma tentativa de expiar a má consciência do branco em relação à sua própria História como fez Kevin Costner naquele pastelão com os índios ou de transformar o negro numa espécie de justiceiro vingador cheio de pintarola, à maneira do Tarantino. Não é artificialmente espalhafatoso ou politicamente correto. É realista, cru, autêntico.
Uma cena crucial
Não me senti manipulado durante a explosão traumaticamente emocional no final do filme porque a achei tão humana como compreensível; nos momentos de maior violência a câmara está sempre mais focada nas consequências psicológicas dessa violência do que no sangue, rejeitando os métodos sensacionalistas de carniceiros como o Mel Gibson.
O ator principal é soberbo e não me surpreende que possa vir a ganhar esta noite: a cena do funeral, quando os escravos cantam em homenagem a um companheiro, mostra-nos como o homem livre que ele foi se funde com o escravo: a expressão do seu rosto, entre o sofrimento e o desafio, a aceitação e a revolta, o silêncio e a música, é o melhor de Chiwetel Ejiofor, uma representação digna de um óscar – e essa foi também a cena que me conquistou definitivamente para o filme.
Se 12 anos escravo ganhar o Óscar, será um ano em que o prêmio não ficará mal entregue.
Fonte: Bitaites.