Balzac: 95 obras literárias e 50 mil xícaras de café

Estar concentrado de 10 a 15 horas por dia numa mesma atividade, desgasta e exaure as forças humanas. Ainda mais, escrevendo utilizando uma pena e iluminado à luz de velas. Essa foi a rotina de Honoré de Balzac, um dos maiores escritores de língua francesa. Para lutar contra o sono o café torna-se seu aliado

Por Leonardo de Lucas da Silva Domingues.*

Ficar concentrado numa mesma atividade de 10 a 15 horas, ou até mais, desgasta e exaure as forças físicas humanas. Agora, imagine passar boa parte desse tempo escrevendo incessantemente páginas e páginas à mão, utilizando uma pena e iluminado por castiçais à luz de velas. Pense num ciclo de trabalho que se inicia à meia noite e se estende, com o sol já raiando, até o momento do esgotamento físico e mental. Essa é a rotina de Honoré de Balzac (1799-1850), um dos maiores escritores de língua francesa de todos os tempos. Para lutar contra o sono e continuar centrado em seu gigantesco projeto literário, o café, em quantidade excessiva, torna-se seu fiel escudeiro e aliado.

Em cima de sua mesa de estimação, além do papel e da pena, há uma máquina de café, um bule com aquecedor com suas iniciais gravadas. É ele mesmo quem prepara a bebida excitante de cor preta na máxima concentração. Faz uma mistura especial com grãos de três qualidades: bourbon, martinica e moca, comprados cada um em um lugar específico de Paris.

Durante todo o tempo em que escreve está sozinho. Não recorre à ajuda de livros de apoio, de subsídios, somente há um livreto para apontamentos, no qual o escritor vai anotando as ideias súbitas para os capítulos posteriores. Quando ele se põe a passar para o papel a sua narrativa, é porque ela há muito já foi pensada e repensada, amplamente revisada em sua mente. Nesse instante, as folhas vão se preenchendo de preto com a velocidade que a água invade uma paisagem depois de um dique rompido.

Balzac corre contra o tempo e contra os credores. Sua vida é marcada por excessos de todos os tipos. Sua relação com as finanças é extremamente complicada. Ele escreve para saldar dívidas vencidas. Depois de terminado, tudo tem de ir diretamente para a impressão. A mesma pessoa que leva esses escritos traz os do dia anterior para o autor revisar. Ali ele faz e refaz todas as linhas, redesenha seus personagens.

Esse processo se estende do fim da manhã até à tarde. Balzac está fixado no trabalho: não vê uma visita, não lança olhar ao exterior e não tem tempo para ler o jornal. Às cinco horas é servida a ceia. As nove, após horas de plena excitação, seu cérebro finalmente descansa. O escritor repousa. “Dorme para esquecer que todo o trabalho realizado não o livrará do trabalho que tem que ser feito no dia seguinte, no dia depois desse e até a última hora de sua vida” (ZWEIG, 1953, p.155).

Uma série de desventuras comerciais e de projetos malsucedidos, principalmente a aquisição de uma tipografia logo no início de sua maturidade, levam Balzac a contrair dívidas que serão o rochedo de Sísifo que ele, durante o resto da vida, constantemente rolará até o cume da montanha para logo depois ser arrastado para baixo, até o ponto de partida. Isso, de alguma forma, pode explicar a sua necessidade absurda de escrever tanto em tão pouco tempo.

“É talvez o único de quem sem exagero possa dizer-se que se matou à força de trabalhar” (ZWEIG, 1953, p.143). O projeto inicial de A Comédia Humana concebia 137 obras divididas em blocos temáticos: Estudos de costumes, Estudos filosóficos e Estudos analíticos (RÓNAI, 2012). Dessas, 95 obras foram escritas em pouco mais de 18 anos, muitas outras ficaram inacabadas. Cerca de três mil personagens foram criados, muitos aparecendo em mais de uma obra, em momentos e circunstâncias diferentes, invenção original do autor (RÓNAI, 1989, 2012).

Em um de seus romances, Balzac narra a história de um compositor, Gambara, que inventou uma engenhoca maluca: o panharmonicon. Do tamanho de um piano de cauda, com um teclado extra e pedaços de instrumentos de sopro e de cordas, o aparelho foi concebido para substituir toda uma orquestra. “Como Gamara com seu proto-sintetizador, Balzac estava se destruindo com projetos impossíveis (…). Ele passou a comer menos, ‘para não transmitir ao cérebro a fadiga da digestão’” (ROOB, 1994, p. 269).

A máquina às vezes ameaça parar. Até a vontade mais desmedida nada pode contra os limites naturais das forças (…). A mão enfraquece, os olhos começam a lacrimejar, as costas doem, nas têmporas, que estão superaquecidas, as artérias latejam ameaçadoramente, e a energia dos nervos começa a escassear. Outra pessoa qualquer pararia, iria descansar, contentar-se-ia, grata, com uma atividade tão notável. Mas Balzac, esse indivíduo de vontade demoníaca, teima em continuar. A meta tem de ser atingida, ainda que o corredor inutilize o cavalo! Venha o chicote, se o animal preguiçoso não quiser prosseguir! Ele levanta-se – essas são as suas únicas e breves pausas no trabalho – aproxima-se da mesa e acende fogo sob a cafeteira, pois o café é o óleo preto que sempre põe em movimento essa fantástica máquina de trabalho. Por isso para Balzac, a quem só importa o trabalho, o café é mais importante do que a comida, o sono ou qualquer outra fonte de gozo (Zweig, 1953, p.147-148).

Paulo Rónai (1989) destaca um impressionante apanhado de dados da correspondência de Balzac sobre o custo humano desse projeto literário:

“Minha vida está agora bem regrada” – conta em outubro de 1833. “Levanto-me à meia noite, deito-me às seis da tarde. Um banho cada três dias, catorze horas de trabalho, duas de passeio”. Quando o trabalho urge, podem suprimir as do passeio. “Trabalho dezoito horas por dia” (em novembro do mesmo ano); e às vezes nem isto chega: “Passei esta semana até quarenta e oito horas sem dormir” (…) descobre um sistema novo: “Estou trabalhando vinte e quatro horas a fio. Durmo cinco horas, o que me dá vinte e uma horas e meia por dia” (…) define assim a própria existência: “Trabalho, sempre trabalho! A noites abrasantes sucedem noites abrasantes, dias de meditação a dias de meditação” (RÓNAI, 1989, p. 54-55).

A Comédia Humana é o monumento que vai se erguendo sobre os escombros da fadiga quase total do seu corpo. São dores e mais dores em várias partes do corpo: nas costas, no peito, inflamação intestinal. Sofre de febres e tremores nervosos. Seu cabelo embranquece e começa a cair. Tem ataques cardíacos, ataques de aracnoidite (inflamação de vasos sanguíneos no cérebro) e zumbidos na cabeça que o faziam perder o equilíbrio. No inverno, a bronquite torna-se sua companhia (Robb, 1994). E Balzac tem teorias insólitas sobre os alimentos, sobre questões sexuais/atividades físicas e como isso afeta a sua capacidade intelectual (Balzac, 2009). Por conta dessas reflexões, também faz dietas próprias, muitas vezes se alimenta só de leite (e de café, é claro).

Balzac sabia que tinha pouco tempo. Estimava que fosse realizar toda essa catedral literária antes dos 60 anos, idade que correspondia à expectativa de vida que ele imaginava para si mesmo (Rónai, 1989). Infelizmente, seu plano, a despeito de seu comprometimento extremo em realizá-lo, e talvez por causa disso, não pôde ser completado. Ao mesmo tempo, durante o processo de produção das milhares de páginas, o tônico preto sempre esteve presente, preparado em seu bule, pronto para fornecer ânimo extra a esse incrível obreiro, criador de um universo literário único e colossal.

O café torna-se algo indispensável, uma verdadeira dependência química. É como um haxixe, diz Stefan Zweig em sua biografia. “Um inquestionável viciado em drogas”, é o que diz uma publicação especializada em cafeína sobre os hábitos do escritor (Bealer Weinberg, 2001). A elevada concentração da substância era a sua fada verde, numa alusão ao absinto, bebida altamente alcoólica e que, por conta disso, teria um suposto efeito alucinógeno (Halliday, 2013).

Cabe registrar que o escritor começou a se familiarizar com o café na escola, quando adolescente.  O porteiro o levava às escondidas, junto com livros proibidos. Nessa época, o produto colonial era caro e constituía símbolo de status. Como sua condição financeira não era favorável, Balzac adquiria seus grãos moídos a crédito. Sua primeira dívida, aliás, que se tornaria situação frequente ao longo de toda a sua vida, foi contraída por conta desse costume exótico (Robb, 1994).

Em seu Tratado dos excitantes modernos, Balzac faz um pequeno guia sobre o universo café, com dicas de preparo e modos de maximizar a excitação e diminuir os efeitos colaterais da bebida. Em uma passagem ele diz ter descoberto um “terrível e cruel método” de estimulante cerebral, que ele não aconselha, senão aos “homens de um vigor excessivo, de cabelos negros e duros”. Trata-se do consumo de café moído, frio, com pouca ou nenhuma água, em jejum, ou seja, é praticamente comer café com o estômago vazio.

Tudo se agita a partir daí: as ideias levantam-se como os batalhões do grande exército no campo de uma guerra, e faz-se a batalha. As lembranças chegam a passo de carga, estandartes abertos; a cavalaria ligeira das comparações move-se em um magnífico galope; a artilharia da lógica acorre com seu trem de campanha e seus cartuchos; chistes são pronunciados em profusão; as figuras aprumam-se; o papel cobre-se de tinta, pois a vigília começa e termina por torrentes de água escura, como a batalha por sua pólvora negra (Balzac, 2009, p. 181).

Ao longo da vida, as doses, as concentrações e os métodos de ingestão foram mudando. Como todo estimulante, exige, para produzir o efeito desejado, quantidades cada vez maiores. “Quanto mais os seus nervos ameaçam sucumbir ao esforço exagerado, tanto mais tem que tomar esse elixir mortífero” (Zweig, 1953, p. 149). Depois de quase vinte anos de consumo acima de todos os limites, Balzac sente que seu organismo está envenenado pelo contínuo doping. O efeito vai diminuindo e a duração da excitação está cada vez menor.

O livro Coffee: The Revolutionary Drink for Pleasureand Health caracterizou-o como o maior bebedor de café do seu tempo (Santos Lima , 2007). Calculam que ele bebia de 20 a 50 doses por dia para dar conta do intenso e exorbitante trabalho literário (Halliday, 2013). Também há quem especule sobre o tamanho das vasilhas (Moore, 2013).  Cinquenta mil xícaras: esse foi o número destacado por um estatístico, depois de estimar o consumo ao longo dos anos de escrita da gigantesca obra A Comédia Humana (ZWEIG, 1953).

Como retrato disso, há atualmente ao menos quatro modernas redes de cafeterias que utilizam o nome de Honoré de Balzac como estratégia de marketing e de chamariz para clientes em países como Alemanha, Canadá, França e Finlândia. Em um dos cartazes de uma das redes há uma famosa frase do escritor: “Envolva-se no exercício de seu intelecto” (Martins, 2014). Talvez esse seja o maior legado inspirador dessa relação tão profícua e grandiosa.

No cinema, um diálogo curioso relaciona a figura do escritor com um consumo que extrapola todos os índices humanamente possíveis de tolerância à cafeína.  Em Quase deuses (Something the lord made), de 2004, um técnico de laboratório diz ao médico do hospital em que trabalham que ele está bebendo muito café. Como resposta, o cirurgião destaca que Balzac “bebia 300 xícaras de café por dia, o que, obviamente, o levou a morte por úlcera perfurada”.

Claro que esse é o exagero do exagero, mas demonstra até onde o mito de Balzac foi parar. A sua relação com o café e a produção que daí se originou povoam a mente de muitos escritores e intelectuais ou mesmo de simples bebedores de café mundo afora. A curiosidade e a inventividade sobre esses aspectos levam ao exagero dos números e das lendas, mas Balzac sempre foi alguém que sonhou em ser grande. E o exagero e a lenda fizeram também parte dessa narrativa.

Apesar da extenuante rotina de trabalho e da função do café como catalizador produtivo, Balzac apreciava igualmente as duas coisas. No trabalho, em sua realização mental, sentia-se livre. Com relação ao café, seu encanto com o grão excitante vem desde pequeno. Em poucos momentos da história a combinação de café com literatura foi tão ricamente produtiva, criativa e universal.

E essa combinação, por ser tão íntima e profícua, e por ter sido constantemente levada ao limite, encontrou no corpo do escritor um órgão em especial que sucumbiu diante de tamanha descarga de excessos: seu coração. A causa mortis declarada pelo médico que o acompanhou por longos anos reforça essa tese: “uma cardiopatia antiga, agravada por trabalho noturno e pelo uso, ou melhor, abuso do café, ao qual tinha ele de recorrer para lutar contra a natural necessidade humana de dormir” (Nacquart Apud Zweig, 1953, p. 149).

A história de Balzac e a dos métodos que constituiu para a realização de sua obra colossal estão até hoje entre as mais fascinantes da literatura ocidental. Sua vida foi curta, mas intensa e plena, como a de muitos grandes homens. Foi mais rica em obras do que em dias. Queimou fortemente como um inflamado fósforo e irradiou luz e calor para todos os lados, tendo o café como querosene indispensável. E o espírito dessa chama continuará aceso nos corações e nas mentes dos milhões de leitores de todo o mundo que sonham e imaginam esse universo literário de personagens e histórias.

*Leonardo de Lucas da Silva Domingues é mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Bibliografía

Balzac, H. Tratado dos excitantes modernos. In: ______. Tratados da vida moderna. São Paulo: Estação Liberdade, 2009.

Bealer, B. K.; Weinberg, B. A. World of caffeine: the science and culture of the world´s most popular drug. London; New York: Routledge, 2001.

Halliday, A. Honoré de Balzac Writes About “The Pleasures and Pains of Coffee,” and His Epic Coffee Addiction. 2013. Disponível em: http://www.openculture.com/2013/09/honore-de-balzac-on-the-pleasures-and-pains-of-coffee.html Acesso em: 01 ago. 2015.

Martins, A. Quatro cafés pelo mundo inspirados em Balzac. 2014. Disponível em: http://roteirosliterarios.com.br/cafes-pelo-mundo-inspirados-em-balzac/ Acesso em: 01 ago. 2015.

Moore, F. Did Balzac really drink 50 cups of coffee a day? 2013. Disponível em: http://airshipdaily.com/blog/01282014-balzac-coffee Acesso em: 01 ago. 2015.

Robb, G. Balzac: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

Rónai, P. A vida de Balzac. In: Balzac, H. A Comédia Humana. v.1. Rio de Janeiro: Globo, 1989.

Rónai, P. Balzac e a Comédia Humana. São Paulo: Globo, 2012.

Santos, R. M.; Lima, R. L. Coffee: the revolutionary drink for pleasure and health. Philadelphia: Xlibris, 2007.

ZWEIG, S. Balzac. Rio de Janeiro: Delta, 1953.

*No Le Monde Diplomatique Brasil

Fonte: Portal Fórum

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