Por Ruy Sposati e Piero Locatelli. Eusébio Ka’apor e seu primo viajavam de moto quando foram abordados por dois homens encapuzados e armados em uma encruzilhada. Os indígenas seguiam o caminho de casa, cruzando os povoados que cercam a Terra Indígena Alto Turiaçu, no Maranhão. “Tava chovendo muito, quase escuro”, relembra P (os nomes dos indígenas foram ocultados). Ao ouvir os gritos dos pistoleiros, ele resolveu acelerar. “Achei que não ia atirar, mas o cara atirou: tá!”, diz, simulando o som do disparo que atravessou o corpo de Eusébio, na garupa, e pegou de raspão nas costas de P.
A moto percorreu cerca de 80 metros, até que ele caiu. “Tá doendo”, foram algumas das últimas palavras de Eusébio. Ainda vivo, foi carregado até um povoado próximo. P foi então pedir socorro na aldeia Ximborendá. Com M, filho de Eusébio, usaram um caminhão para carregar o corpo, “espirrando sangue”, e correram para o hospital no município de Zé Doca. Alguns quilômetros antes de chegar na cidade, o Ka’apor faleceu.
P é a única testemunha da morte de Eusébio. O crime ocorreu no dia 26 de abril, na zona rural do município de Maranhãozinho, a três quilômetros da entrada da aldeia Ximborendá. Na manhã seguinte, na sede da cidade de Zé Doca, seu filho conta que foi abordado por um proprietário de serraria. “Ele disse que já sabia da morte e veio dizer que tinha outras pessoas pra morrer”, relata M. “E ainda reclamou que não consegue mais madeira lá”.
O madeireiro se referia à terra indígena dos Ka’apor, que sofre constantes invasões para o roubo de árvores. Cansados de esperar pela ajuda do Estado, desde 2013 os índios resolveram colocar a própria vida em risco para expulsar os madeireiros. Eusébio era uma das lideranças deste movimento.
Essas ações foram batizadas pelos indígenas como ‘missões’. Sempre dentro de sua terra, eles seguem a trilha dos invasores, tomam seus equipamentos, queimam seus veículos e expulsam os madeireiros (que têm que sair a pé). As trilhas por onde as árvores eram retiradas são fechadas. Os pátios, antes usados como base pelas serrarias, passam a ser ocupados por novas aldeias Ka’apor que levam o nome de Kaar Husak Ha – “áreas protegidas”.
Embora a investigação sobre o assassinato ainda esteja em andamento, são muitos os elementos que levam os indígenas a suspeitar dos madeireiros. Além de terem sido abordados por um proprietário de serraria na manhã seguinte ao crime, outros dois Ka’apor sofreram um atentado parecido: uma semana antes do assassinato, no dia 19, dois indígenas foram abordados por homens encapuzados e armados enquanto andavam de moto. Os pistoleiros, tomaram o veículo, espancaram um dos indígenas e ordenaram que corressem para a mata. A poucos quilômetros do local, os agressores dispararam três tiros – um deles, no tanque da moto, que foi deixada na estrada.
Ex-cacique de Ximborendá, a maior das dezoito aldeias na terra Alto Turiaçu, Eusébio perdera o posto quando os Ka’apor substituíram o cacicado por conselhos gestores. Mas ainda era uma liderança importante. Sua morte assustou os dois mil indígenas que vivem nos 530 mil hectares do território indígena – uma das áreas mais conservadas do Maranhão.
A sobrevivência dos Ka’apor está diretamente relacionada à floresta. “Nós não dependemos da cidade, nós dependemos da mata. Por isso o nome é Ka’apor: ‘nós somos da mata’. E a mata também depende da gente”, diz J, outro indígena que falou sob anonimato. Ainda triste pela morte de Eusébio, ele aponta uma castanheira e explica por que as missões não podem parar: “esta árvore já estava aqui antes de eu nascer e antes do meu pai nascer. Por isso que lutamos. Nós podemos morrer, mas nossos filhos sempre vão ter a floresta”.
Quem matou Eusébio?
A investigação foi prejudicada pelo fato da Polícia só ter chegado ao local do crime dias depois, quando a Secretaria de Segurança Pública do estado encarregou uma equipe para investigar o caso. O delegado José Henrique Mesquita trabalha com duas hipóteses: “A primeira é de que alguém está cometendo assaltos na região, e não tem nenhum envolvimento do conflito com os madeireiros. A segunda é de que a morte aconteceu à mando dos madeireiros para amedrontar os indígenas”.
A primeira linha da investigação, de latrocínio, é a mais difundida pela imprensa local. O histórico de conflitos na região, contudo, corrobora a segunda hipótese. “Esse tipo de ameaça já vinha sendo feita, e o Eusébio era uma das lideranças ameaçadas. É estranho que alguém tenha abordado justamente a motocicleta de uma liderança como ele”, diz o advogado Luiz Antônio Pedrosa, presidente da comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-MA).
“A gente entende que, a princípio, é um delito relacionado com a situação de conflito local com os madeireiros”, diz o procurador Galtiênio Paulino, do Ministério Público Federal do Maranhão. Ele solicitou que a Polícia Federal investigue o caso, mas a PF respondeu que não deve entrar no caso enquanto as suspeitas de latrocínio não forem descartadas pela Polícia Civil.
Apesar de não ter ajuda federal, a investigação tem apoio dos próprios indígenas. Primeiros ao chegar ao local do crime, eles acharam um projétil calibre 38 revestido com uma capa de cobre. Pouco comum na região, é similar a outra bala disparada contra os indígenas na semana anterior ao assassinato, dia 19 de abril. Segundo o delegado da Polícia Civil, a coincidência entre os projéteis fortalece a hipótese do assassinato pelos madeireiros.
Um crime anunciado
O histórico de ameaças e os atentados contra os Ka´apor apontam para outro possível elemento do assassinato de Eusébio: a omissão do Estado. Desde 2008, o Ministério Público Federal pede ajuda de instâncias federais para conter este conflito. Seis anos depois, a Justiça Federal determinou que a Funai apresentasse um plano de fiscalização para a terra indígena e a instalação de postos de segurança fixos, o que ainda não aconteceu.
A Funai afirma que intensificou as operações contra a extração ilegal de madeira na região nos últimos cinco anos e que “orienta os indígenas a não abordarem os invasores diretamente”. Segundo os Ka’apor, porém, as ações de fiscalização pontuais não funcionam porque os madeireiros voltam depois.
O diretor de proteção ambiental do Ibama, Luciano de Meneses Evaristo, reconhece os limites das operações e avalia positivamente ações como as dos Ka’apor. “Eles protegem estas áreas. Por que eu tenho hoje um milhão de metros quadrados [preservados em Terras Indígenas]? Por que o índio está lá. Se ele não estivesse lá, já tinha ido” afirma. Mas essa proteção pode custar a vida dos indígenas. As ameaças contra eles aumentaram a partir de dezembro de 2014, depois que os Ka’apor fecharam o último ramal por onde a madeira era retirada da terra indígena. Foi quando um grupo de madeireiros invadiu e queimou plantações de uma aldeia. “Roubaram as roupas, as galinhas, queimaram os barracos, pisaram nos velhos”, conta J.
Ele relembra a dificuldade para registrar o boletim de ocorrência do episódio. “Os policiais viam os parentes todos enfaixados, cabeça com esparadrapo, ombro machucado, mas ninguém queria fazer B.O. Andamos 200 quilômetros, fomos na delegacia do Encruzo [Governador Nunes Freire], de Centro do Guilherme, de Santa Luzia do Paruá, e só diziam que o delegado não estava, que não tinha escrivão”.
Em fevereiro, indígenas Ka’apor de diferentes aldeias envolvidas nas operações relataram ter sofrido dois ataques semelhantes ao de Eusébio, mas dizem ter “medo de registrar ocorrência por não confiar nos policiais e medo de serem insultados ou agredidos por parentes dos agressores na cidade”, segundo documento entregue pela associação indígena Janderuhã ha Ka’a rehe à Secretaria Estadual de Segurança Pública do Maranhão no início de maio.
Em dezembro do último ano, os Ka’apor solicitaram à Secretaria Especial de Direitos Humanos, órgão vinculado à Presidência da República, a inclusão de quatro indígenas no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos. Esse programa dá escolta a lideranças ameaçadas. A secretaria afirma que recebeu o pedido para três indígenas e que aguarda informações do MPF, Funai, PF e do governo do estado para dar prosseguimento à avaliação do caso.
As árvores dos Ka’apor são tão cobiçadas por que representam o pouco que resta da Amazônia no Maranhão. Segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), pouco mais da metade do que sobrou da floresta no estado está dentro de Terras Indígenas. Até nos mapas do Google é possível ver como a fronteira Ka’apor coincide com a fronteira de desmatamento: o verde da floresta é mais forte dentro do território indígena, enquanto as áreas do entorno estão desmatadas.
A simples repressão aos madeireiros, porém, não seria suficiente para sanar o conflito, acredita o procurador federal Alexandre Soares. Para ele, a pressão sobre a floresta é agravada pela falta de outro modelo econômico na região, que dê alternativas de renda aos moradores locais. Até mesmo alguns Ka’apor, antes do início das missões, recorriam ao trabalho em serrarias para sobreviver.
“Foi antes do nosso despertar”, diz J, que carrega uma certa tristeza no rosto ao lembrar dessa parte de seu passado. “Nós, Ka’apor, estávamos perdendo o tradicional, agora está voltando. Estamos recuperando a floresta e recuperando como nós vivíamos antes”.
Após o assassinato, a pressão sobre eles só aumenta. “Ontem [dia 9 de maio], os madeireiros abriram outro ramal próximo ao que tínhamos fechado na missão”, relata o indígena A, que avistou diversos caminhões e tratores dentro da terra indígena. Mas lembra que só será possível avaliar a real intensidade da invasão com o fim das chuvas amazônicas e chegada do período seco, em junho. A tensão pode ganhar contornos trágicos se, até lá, os governos federal, estadual e municipal continuarem deixando os Ka’apor sozinhos na defesa da floresta.
Foto: Reprodução/Carta Capital
Fonte: Carta Capital