Por Carla Freitas.
A maternidade muitas vezes é cruel, perversa e um potente instrumento de perpetuação do sexismo e violência contra a mulher. Isso é um fato. Não vou discutir aqui se é ou não. É. É só traçar o itinerário e os desdobramentos dele.
Na verdade, os implicamentos desse discurso já se dão desde o debate sobre o direito ao aborto. Em uma cultura que sequer consegue admitir a descriminalização do aborto já dá pra imaginar o lugar que a mulher tem em matéria de direito ao próprio corpo.
Mulheres cis (que não são trans*) desde crianças são disciplinadas com a pedagogia da maternidade. Lembro-me da preocupação de uma amiga:
– Carla, deixe sua filha participar desse momento do irmão caçula! Deixe ela dar a mamadeira, estimule que ela lhe ajude no banho, trocar fraldas….Você e ela só ganham com isso, é assim que ela vai aprender a ser mãe.
– QUEM DISSE QUE ELA VAI QUERER SER MÃE?
Bom, pelo menos numa coisa concordamos, maternidade não é algo instintivo, é algo que se aprende a desejar a ser, ou não. Debaixo de muita violência, insistência e moralidade.
Assim, de forma geral, fica muito difícil escapar da rota predeterminada. Ainda criança, minha filha ganhou um jogo de tabuleiro, que se chama “jogo da vida”, muito simbólico. O jogo se dá no girar da roleta. A depender do número, o carrinho vai seguindo cartesianamente sua vida…. Nesse jogo você pode até ser um ‘sem profissão’, viverá com um baixo salário, mas o jogo continua, afinal, nessa estrutura que vivemos pra ‘ter rico tem que ter pobre’, já me disse um conhecido.
Porém, nessa trilha existem duas paradas obrigatórias: o casamento e os nascimentos dos filhos. Não adianta fugir. É regra. Não é possível não casar. Não é possível não ter filho. Casar e ter filho são a base para o restante do jogo. Se você é homem usa bonequinho azul, se você é mulher usa bonequinho rosa. Lógico! O jogo também determina se seu filho será menino ou menina e aí, de acordo com isso, você encaixa o bonequinho rosa e azul. A partir daí, se conquista e se gasta muito dinheiro. E adivinha? Vence o jogo quem é ‘melhor sucedido’ e chega ao ponto de chegada rico.
Em uma intervenção numa partida entre minha filha e amigos na minha casa, subverti e casei com outra menina. Isso foi suficiente para o alvoroço ficar armado. Foi tenso perceber o quão parecia sem sentido, para aquelas crianças, aquilo seguir adiante. As crianças que disputavam a partida tinham por volta de oito anos de idade, e todas concordaram que se eu casasse com uma menina o jogo não poderia continuar porque eu não poderia ter um filho. Permaneci desobediente e casada com minha bonequinha rosa e o desconforto foi notório.
O jogo não é uma inocente brincadeira. Pelo contrário, é mais um aparelho pedagógico de domesticação da sexualidade, das categorias de gênero enquanto fixas e de perpetuação de valores e normas heterossexuais compulsórias que geram violência e exclusão. Mas me parece que a educação enquanto instituição está bem pouco preocupada com isso, para não dizer que ela silencia e corrobora com essas estratégias. O não posicionamento é posicionar-se.
Seguindo esse roteiro, na vida para além do tabuleiro…
Estudamos e trabalhamos para ter uma família, foi por isso que muita gente me olhava na adolescência e dizia que se eu não ‘desse um jeito na minha vida’ acabaria sem marido e sem filhos. Claro que sim! Faz sentido, esse é jogo da vida! Essa é a família que será mantida a QUALQUER CUSTO, sabemos bem quem sai violentada nisso. Sabe-se quem precisa entender que ser mulher é ceder, porque os homens são imaturos e nós mulheres sagradas precisamos nos manter santificadas e sucumbir pelo bem da família, já que essa é a estrutura familiar tida como fundante para a formação de um sujeito emocionalmente saudável. Quem carrega isso é a mulher.
Os desdobramentos disso eu vejo todos os dias. Enquanto mãe eu sinto na pele, nos olhares inquisidores, na deslegitimação de minhas escolhas contra-hegemônicas, no tomar as rédeas da minha vida. Muitas vezes sou acusada de ser uma mãe relapsa. Outras tantas de doutrinar meus filhos contra a pedagogia opressora. O que eu sei é que dando ‘tudo certo’ ou não, o ‘erro’ dx filhxs dos filhos será mérito meu.
Enquanto professora, sinto no impacto das relações entre meninos e meninas na sala de aula, entre o esforço para se manter as coisas nos seus devidos lugares, enquanto ainda se é possível. Pois a infância ainda é o lugar de controle e autorização para o exercício de normas perversas.
Vejo muitas mães se preocuparem em manter relações de amizade de menina com menina, porque ‘assim fica mais fácil na adolescência’. Aí a menina experimenta o corpo da coleguinha e é catequisada pela mesma mãe a obedecer a heteronorma. É preciso reproduzir, é preciso ser mãe, é preciso dar netos. Isso é enlouquecedor! Mas… Essa mãe certamente já experimentou carregar o fardo de ter que acertar o destino da filha.
O resultado dessa infância saudável é responsabilidade da mãe. Ainda que muitos (maus) comportamentos infantis sejam justificados pela ausência paterna, a culpa muitas vezes recairá sobre a mãe, que depois de não ter sido mulher suficiente para ‘segurar esse homem’, quase sempre não terá sido macho suficiente para suprir a falta dele na vida dessa criança.
A culpa é uma forte aliada nesse processo. O mito da maternidade enquanto sagrada se encarrega de enlouquecer corações maternos e desestabilizar a autoestima de qualquer mulher. A culpa pela ausência, culpa pelo excesso de presença, culpa pela falta de afetividade, culpa pelo excesso, culpa, culpa, culpa, o equilíbrio parece ser algo inatingível para nós.
Até aqui eu descrevo situações corriqueiras de mulheres cis, mas podemos sim fazer um recorte de classe e etnia, já que sabemos que as demandas de mulheres negras e de classes tidas como menos favorecidas, no que diz respeito à violência do discurso de maternidade, serão outras, muito mais específicas. Muitas crianças dessas mães não terão acesso ao jogo da vida, mas a viverão em seus dias e noites através de violência e até ludicidade e resistência.
Mas as opressões da maternidade não só respigam nessas outras mulheres. Sabemos que, por exemplo, esse é um discurso muito acionado, inclusive por mulheres cis, para deslegitimar o gênero de mulheres trans. Se não tem útero, não pode reproduzir, se não pode reproduzir, não pode ser mulher. Ora, ora… logo mulheres ativistas pelo direito ao uso do corpo, logo mulheres que precisam ir pra rua para dizer que não terão filhos porque simplesmente não querem ter se articulam no intuito de fazer esforços para utilizar justamente de argumentos que lhe desqualificam para se achar no direito de se apropriar da categoria mulher e determinar que as mulheres trans são ou não “de verdade”. No mínimo incoerente.
Os homens trans, então, têm o direito de reprodução deslegitimado completamente pelo discurso hegemônico da maternidade. Homem engravidar, numa sociedade em que a maternidade é mais um instrumento de garantia de poder masculino, é um afronta. É como se esses homens estivessem negando todo poder que “naturalmente” lhes foi dado.
Os desdobramentos não param por aqui, podemos falar de como a paternidade, não por acaso, se torna uma vivência muitas vezes silenciada, seja em suas conquistas e direitos como em seus privilégios ‘naturais’. Sobre isso caberia escrever outro texto.
O que eu quero com esse texto não é me colocar contra a maternidade, isso seria insano. O meu esforço é, mais uma vez, me colocar contra a imposição de um modo de vida. É desconstruir a tese de que só há felicidade na maternidade. Que uma mulher só será completa se for mãe. Isso é mentira. Muitas pessoas, por escolha ou falta de escolha, não são mães e resignificam isso, ocupam suas vidas com outras prioridades, trabalham de outras formas suas afetividades e constroem suas famílias em moldes outros. O que eu trago aqui é a forma como o machismo se apropria da maternidade para promover violência, exclusão em corpos e subjetividades que transitam por desejos outros que não o de procriar.
O importante é salientar mais uma forma de estruturação de gênero, que é cruel, e denunciar que, no jogo da vida, as paradas podem parecer obrigatórias, mas há várias linhas de fuga. Porém, o risco é constante e esse texto também é sobre João Antonio Donati, assassinado cruelmente, e é também sobre a morte diária de travestis e pessoas trans* que são assassinadas por não seguir uma das normativas básicas do jogo da vida.