Uma ocupação com mais de 9 mil pessoas acirra os ânimos em Sumaré, interior de São Paulo, e vive sob ameaça de reintegração de posse
Assim que soube onde morava a faxineira Maria de Fátima da Conceição Santos, de 48 anos, a “patroa” quis conversar. Perguntou se era verdadeiro o endereço da residência da funcionária. Diante da confirmação, avisou: o perfil de Maria de Fátima não se enquadrava com o de seu círculo social e a demitiu. “Eu já trabalhava para ela fazia uns cinco meses e ela falou: ‘Eu não posso deixar que a prefeita e o marido dela, meus amigos, te encontrem aqui’. Aí fui dispensada”. A experiência vivida pela doméstica escancara o incômodo gerado pela ocupação Vila Soma na cidade de Sumaré, município a 115 quilômetros de São Paulo com pouco mais de 230 mil habitantes.
A possível explicação para o repúdio é o fato de a ocupação estar encravada numa área de 500 mil metros quadrados, região próxima ao centro da cidade, entre bairros ditos nobres do município. O local foi ocupado em julho de 2012, quando 50 famílias entraram no terreno. Em dois meses, o número subiu para 300. Hoje, a estimativa do Ministério Público e da própria ocupação é de 2,5 mil famílias ou, aproximadamente, 9 mil moradores. O local estava ocioso há ao menos 20 anos, desde a falência da empresa Soma Equipamentos Industriais. Parte do terreno pertence à Melhoramentos Agrícolas Vifer.
Quase três anos depois do início da ocupação, a Vila Soma tem centenas de casas de alvenaria, em meio aos destroços da antiga empresa, mas ainda é alvo de ações de desocupação e reintegração de posse. Os pedidos de saída dos moradores não vêm apenas dos antigos proprietários do terreno. Uma das ações foi protocolada justamente pelo Ministério Público Estadual. O motivo alegado pelo órgão: “Grave lesão a direito urbanístico, com o fracionamento irregular do solo”.
Além do Ministério Público, a prefeitura parece não ter vontade de declarar a área de interesse social, no intuito de conseguir a desapropriação do terreno ou qualquer tipo de regularização fundiária. Apesar da dívida de, aproximadamente, 10 milhões de reais deixada pela antiga empresa apenas em IPTU. Segundo os advogados dos moradores, o débito poderia ser usado para abater parte do valor do terreno. Mas um documento, produzido pela Polícia Militar e inserido no processo, mostra que o poder público está longe de considerar essa opção.
Segundo a ata de uma das reuniões realizadas sobre o assunto no ano passado, a prefeita de Sumaré, a tucana Cristina Carrara, declarou em encontro fechado não desejar “uma área de invasão tão próxima ao centro da cidade”. Coincidentemente, a prefeita mora a apenas 3 quilômetros da Vila Soma. “O poder público municipal sempre criou obstáculos. A prefeitura claramente não tem interesse, não tem diálogo, foge de qualquer responsabilidade. E que atitude o MP teve durante os 25 anos que a área também teve uso irregular? Qual interesse o MP está defendendo? Está realmente preocupado com as famílias?”, pergunta Alexandre Mandl, advogado dos moradores da Vila Soma.
“Família Soma”
A rejeição parece espalhar-se por outras instâncias e atinge em cheio os moradores da ocupação. Depois de perder o emprego na casa de uma “amiga da prefeita”, Maria de Fátima ficou sem carro, um Fiesta azul ano 2000, usado para recolher lixo reciclável. “Um policial militar mandou eu encostar. ‘A senhora é da (Vila) Soma?’. Eu falei: ‘Sou, o senhor viu a carteirinha aí? ‘Não, é porque a senhora é bem manjada, te conheço das passeatas’.”
Em seguida, conta, o policial mandou-a retirar o material do carro. Ela se recusou, mas permitiu que ele retirasse o papelão ou procurasse algo de ilícito. Foi o suficiente, segundo ela, para o policial apreender o carro. “Nem tudo você pode abaixar a cabeça, né, filho? Não sou bandida”, explicou.
Hoje, a ex-doméstica acorda por volta das 5 da manhã todos os dias e usa uma carroça para recolher e vender papelão, garrafas PET ou, com sorte, cobre. A renda antes beirava os mil reais por causa do carro, caiu para entre 200 e 300 reais, afirma. Por isso, ela depende do auxílio de vizinhos e de 236 reais do Bolsa Família para alimentar seis crianças que moram com ela, incluídos netos. “Meu filho foi assassinado e minha filha está presa.”
A história da catadora assemelha-se à de vários outros moradores da ocupação, já que muitas são mulheres solteiras com filhos para criar. Maria do Carmo, de 59 anos, é outra que mulher sozinha com filhos na ocupação. Viúva há oito anos, ela foi parar na Vila Soma porque não conseguia pagar aluguel com o salário de 700 reais que recebia como faxineira. E, alguns meses antes de seu marido morrer, caiu de uma altura de dois metros de altura enquanto limpava uma janela na casa da filha de sua “patroa”. Sem registro, teve dificuldade para conseguir benefício do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e precisou da ajuda do filho, servente de pedreiro, para pagar o aluguel. Por isso, chegou na ocupação logo no primeiro dia.
“Vim morar num barraquinho [quando começo a ocupação]. Se precisar sair, eu vou morar embaixo da ponte com a família Soma. Como eu vou conseguir pagar aluguel com um salário mínimo? Quando, onde? Se a Caixa [Econômica Federal] quiser comprar aqui e vender para nós, nem que eu tenha que pegar latinha na rua, eu vou pagar. Eu já catei reciclagem. Fiz tudo na minha vida, menos roubar. Acho bonita uma pessoa honesta, limpa e pobre”, conta a paulista de Itapetininga, outra cidade do interior do Estado.
Para Willian de Souza, presidente da Associação de Moradores do Matão e um dos líderes da ocupação, a cidade vive uma “guerra social”. “As pessoas do centro não querem essa ocupação. A prefeita traz a opinião da elite. A cidade não quer uma ocupação no centro. Fora a briga e a especulação imobiliária que existe aqui nessa área porque o corredor metropolitano vai passar logo no início dessa área. Vem um terminal rodoviário também. Então existe uma especulação imobiliária para outras empresas comprarem e construírem um condomínio de luxo. Então isso poderia, mas ter pobre perto do centro não faz tão bem para a prefeitura”, conclui.
Enquanto o imbróglio judicial segue com pedidos e liminares, os moradores seguem fazendo passeatas e manifestações. “Isso aqui é como se fosse uma parte do céu. Eu não teria como manter as crianças (se tivesse de pagar aluguel). O que ia acontecer? Teria de procurar embaixo de uma ponte. Gostaria que o pessoal de fora da ocupação, depois dessa reportagem, olhasse pra nós como seres humanos. É como se só fosse bicho aqui”, apela Maria de Fátima.
Outro lado
A Prefeitura de Sumaré informou, em nota, que “não procede” o pedido feito pela prefeita, e registrado em ata pela Polícia Militar, para que a ocupação não permanecesse numa região tão próxima ao centro da cidade. “Reforçamos que as declarações da prefeita na ocasião não foram estas, e que deve ter havido um severo erro de interpretação do que ela disse na reunião em questão – reproduzido agora, inadvertidamente, no Agravo de Instrumento da Defensoria Pública”, diz o comunicado.
Além disso, a resposta enviada pela assessoria de imprensa sobre sobre a ocupação começa enfatizando “o problema da ocupação irregular do solo” e não a questão da moradia, que aparece no segundo parágrafo do comunicado. “O problema da ocupação irregular do solo em Sumaré é histórico e arrasta-se há décadas, fruto exatamente das invasões de áreas públicas e privadas ocorridas ao longo dos anos, permitindo que milhares de famílias morem atualmente em cerca de 80 invasões precárias, sem qualquer infraestrutura urbana ou de saneamento básico, insalubres e, muitas vezes, longe da mancha urbana e dos equipamentos públicos essenciais, como Saúde, Educação e Transporte Público”, afirma o comunicado.
O poder público municipal nega ainda que tenha deixado de negociar com as lideranças da ocupação. “A Prefeitura de Sumaré jamais se furtou ao diálogo e apoia efetivamente a busca (já em estágio bastante avançado) de uma solução tecnicamente viável para construção de moradias para estas famílias, através de sua atuação no GT [Grupo de Trablho] – solução esta, como já vem sendo trabalhado há meses, que vai necessariamente passar pela viabilização, pelas próprias famílias, com apoio técnico das três esferas de governo, de um ou mais conjuntos habitacionais”, diz o texto.
Fonte: Carta Capital