Por Elaine Tavares.
Quem já esteve no Canal do Panamá, sabe. É uma obra de engenharia das mais grandiosas. Tem 77 quilômetros de extensão e liga o Oceano Atlântico ao Pacífico. As eclusas, que são uma espécie de elevador, levantam os navios até o lago Gatún e dali eles seguem para um ou outro lado do continente. Hoje, pode-se sentar em alguma parte do canal e observar esse movimento das eclusas, mas nem sempre foi assim.
A construção dessa passagem que encurtaria as viagens, evitando as rotas mortíferas que passavam pelo Cabo Horn ou o Estreito de Magalhães, começou em 1881, coordenada pelo famoso engenheiro francês – que fez o canal de Suez – Ferdinand de Lesseps, mas os trabalhadores morriam como moscas por conta das febres tropicais, houve problemas de engenharia e o projeto foi abandonado. Os Estados Unidos resolveram retomar o trabalho em 1904 e em dez anos terminaram as obras. O canal foi inaugurado em 15 de agosto de 1914 integrando os Estados Unidos e os demais países do pacífico ao comércio mundial.
Quando o projeto foi pensado, aquela era uma região pertencente à Colômbia, mas muito bem orientado pelos Estados Unidos, foi iniciado um movimento de independência do que hoje conhecemos como Panamá. Uma dessas jogadas sujas, típicas do país do norte, para dominar o que seria a ligação mais lucrativa entre os oceanos. Quando as obras terminaram o Panamá já era um país, mas como tinha feito um acordo com os EUA, entregou a esse país o controle da zona do canal. O controle era perpétuo. Ali era território estadunidense e nenhum panamenho podia ultrapassar. Toda a região era cercada e foi erguida uma espécie de cidade em torno do canal, apenas para os funcionários. Era como viver numa típica cidade estadunidense, com as casinhas de madeira e os jardins. Passavam pelo canal mais de mil navios por dia, uma riqueza que se esvaia do país.
Toda essa negociação com a cessão perpétua do canal não aconteceu na paz. Os protestos sempre existiram e tomaram força nos anos 50, com o protagonismo dos estudantes secundaristas que realizavam passeatas e exigiam a retomada do canal. No final daquela década teve início a operação “semeadura de bandeiras” quando os estudantes chamavam o povo a colocar a bandeira do Panamá em diversos espaços na região do canal. Isso gerou polêmica e confusão com os estadunidenses.
E foi ali que se deu um dos mais tristes episódios da vida política do Panamá: o Dia dos Mártires, nove de janeiro de 1964. Naquele dia, cerca de uns 200 estudantes saíram em passeata de uma escola secundária, dispostos a fazer tremular a bandeira no canal. Veio a polícia e aconteceu uma negociação: eles entrariam e ergueriam a bandeira. Mas, as famílias estadunidenses que moravam na zona do canal interceptaram os estudantes e impediram que eles colocassem a bandeira, rasgando o símbolo maior do Panamá, sem que a polícia impedisse. Foi o que bastou para que centenas de panamenhos viessem de várias partes da cidade para a zona do canal em solidariedade aos estudantes. Aquela bandeira tinha história, havia acompanhado todas as manifestações do povo panamenho pela retomada do canal desde os anos 40.
Há quem diga que naquele dia, eram mais de 30 mil pessoas empurrando as cercas do canal. A política reprimiu violentamente o movimento. Vinte e duas pessoas, na maioria estudantes, acabaram mortas naquele triste e heroico dia. Aquilo desencadeou um clima de ódio contra os Estados Unidos que muitas famílias que viviam fora da zona militar do canal tiveram de sair do país, por conta da revolta do povo local.
O nove de janeiro de 64 não foi em vão. A partir daquele dia começou uma grande campanha mundial exigindo que os Estados Unidos entregassem o canal ao Panamá, pois não havia sentido aquela política colonial e aquela ocupação do território. O então presidente do Panamá, Roberto Chiari, rompeu relações com os Estados Unidos exigindo abertura de negociações. A conversa foi longa e só no ano de 1977 o presidente Omar Torrijos conseguiu o sonhado acordo de retomada do canal, quando o presidente dos EUA era Jimmy Carter. Não era uma vitória retumbante, já que o canal só seria devolvido no último dia do ano de 1999, mas dois anos depois já foi fechada a base militar estadunidense que havia na zona do canal e o território foi devolvido aos panamenhos. Já muito amado pelo povo panamenho, Torrijos, que havia enfrentado e vencido um golpe organizado pelos Estados Unidos em 1968, acabou perpetuado no coração das gentes como um dos mais carismáticos heróis nacionais. “Vamos converter essa caricatura de país em uma nação”, dizia ele. E cumprira! Não só recuperou o canal como iniciou uma série de nacionalizações e incluiu os pobres, os índios e os negros na vida nacional.
Cumpridos 100 anos do canal
A luta do povo panamenho resultou na retomada do canal e no pacto de neutralidade. Aquela seria uma zona de uso de todas as gentes. Hoje, passados 100 anos da sua construção, o canal recebe quase 15 mil embarcações por ano e movimenta mais de 300 mil toneladas de produtos. O incrível movimento de suas eclusas e toda a sua complexa engenharia fazem dessa obra uma das maravilhas do mundo moderno.
Essa semana a vida política do Panamá se agitou outra vez. E, de novo, por conta do canal. Dessa vez não foram as obras de expansão, que estão a todo vapor desde 2009, com a construção de mais uma eclusa, mas uma luxuosa festa de gala promovida pelas autoridades do canal, que, convidando apenas a pequena elite local, deixou de fora o povo, principal protagonista da retomada do canal. Nenhuma homenagem a Omar Torrijos, nenhuma menção aos mártires. Uma festa dos parceiros estrangeiros com a oligarquia local que é quem domina hoje o espaço e os negócios.
Por conta disso aconteceram marchas e protestos, com a população trazendo para a rua o nome de Omar Torrijos, aquele que, obedecendo a vontade popular, iniciou um processo de retomada de soberania do Panamá, não apenas no que diz respeito ao canal, se espraiando para vários outros setores da política e da economia. Mas, segundo Gozalo Tejera, do Movimento de Base Torrijista, mais do que protestos por conta da festa luxuosa e privada, o povo panamenho deveria desenvolver ações no sentido de caminhar outra vez no rumo da libertação, já que o país segue acossado pelo neocolonialismo.
Ele lembra que desde há 30 anos, os governos que se seguiram à invasão do Panamá pelos Estados Unidos – que matou milhares de pessoas a partir de um argumento mentiroso, que era o de prender um narcotraficante, o então presidente Manoel Noriega – seguem entregando o país à Wall Street. “Por isso que esse desplante das autoridades do canal não nos surpreende”.
Para Moisés Pinzón, panamenho e torrijista, mesmo que queiram, os oligarcas não podem obscurecer a figura de Omar Torrijos. “O torrijismo é hoje a essência do povo e das organizações sociais. Vemos os índios, cholos e negros dividindo a vida com aqueles que, secretamente os detestam, e isso só é possível porque o processo revolucionário conseguiu que fossemos uma nação e não uma caricatura”.
Agora, os panamenhos são chamados a novas jornadas de luta, como as que protagonizaram os estudantes naquele triste e heroico 1964. Há ainda um longo caminho para percorrer até que o Panamá seja um país soberano como sonharam aqueles meninos que subiram nas cercas do invasor e tiveram seus corpos crivados de bala.
E, enquanto os ricos bailam na gala da festa oligarca, os panamenhos da gema, tomam uma balboa gelada no histórico bairro El Chorrillo, onde as casas viram bares à noite, com as famílias sentadas entre santos, enquanto a nova geração conspira para fazer nascer um novo Panamá.
Imagem tomada de: doctorsito.wordpress.com