Queridos leitores,
Fui convidada a escrever um texto semanal para A Outra Reflexão e não posso dizer com palavras a alegria que senti, já que, desde a faculdade tenho o Desacato como referência de jornalismo sério e comprometido com os reais interesses das trabalhadoras e trabalhadores.
Por Mayara Bergamo , para Desacato.info.
Essa ocasião tão alegre e esperada, no entanto, apareceu em um momento de crise. Crise política, crise social, crise pessoal, crise existencial. O resultado disso foi uma trava psicológica. Faz duas semanas que olho para a tela do computador e não consigo escrever, apesar de várias ideias surgirem e se misturarem nessa cabeça um tanto quanto desequilibrada.
Para essa primeira contribuição pensei em trazer algo leve, ainda que a realidade brasileira pós-golpe e o desgoverno de Michel Temer não ajudem nessa empreitada. Antes disso, quero me apresentar brevemente, para que vocês saibam o que esperar.
Desde 2010 me dedico a analisar os discursos e narrativas jornalísticas – principalmente os veiculados pela grande mídia – e posso assegurar que, infelizmente, nenhuma reflexão otimista vem daí. Não sei porque me ocupo em analisar e estudar esse tema específico, o fato é que, por mais desagradável e desgastante que seja, me interessa.
Naturalmente, após esses anos debruçada sobre os discursos de Bonners, Waacks, Sheherazades e Datenas, sucumbi. E quem pagou o pato – além dos meus nervos – foi o antigo aparelho de televisão, que um dia depois da bizarra votação que culminou no golpe de 2016, foi arremessado no lixo, no centro de Caxias do Sul.
É com esse estado de humor que, tal qual uma Pollyanna, tentarei olhar para os dez últimos dias.
A política catastrófica e entreguista de Pedro Parente, Michel Temer e de outros neoliberais brasileiros provocou paralisações, desabastecimento e insegurança de norte a sul. Em Caxias do Sul o caos nas filas dos postos de combustível chegou ao ponto de ter uma pessoa ferida à bala. Mas apesar de toda essa confusão, ainda há quem pense no lado positivo de tudo isso: reconfiguração do trânsito, mudança de hábitos e solidariedade aflorada são exemplos.
Acredito que uma cidade com trânsito moderado ou leve é uma unanimidade quando pensamos no bem-estar geral. Não creio que alguém ame – ou mesmo goste – do trânsito habitual de Florianópolis, por exemplo. Nos relatos que acompanhei nesses últimos dias, seja pelas conversas, seja pelas redes sociais dos amigos, o contentamento com o trânsito era constante. Também não faltaram fotos e vídeos de passeios de bicicleta e caminhadas.
Outros conhecidos ainda falavam sobre a importância de consumir alimentos e fortalecer o trabalho de produtores locais, de fazer uma horta, um pomar, de viver com menos e diminuir o desperdício. Também há aqueles que notaram uma convivência maior com os vizinhos, a melhora na qualidade das relações, seja pelas trocas, pelos desabafos ou pelo compartilhamento de táxis e caronas.
Isso tudo me fez pensar: por que agora? Por que a situação precisou, necessariamente, ficar drástica para as pessoas reconhecerem que existe um outro modo de vida possível e melhor ao que estamos acostumados?
Por que existe a resistência, por exemplo, aos projetos de ciclovias nas grandes cidades? Por que vamos ao mercado e fazemos nossas escolhas automaticamente? Por que desperdiçamos tanto? O que nos afasta da convivência real com outras pessoas e por que demoramos tanto tempo para resgatar esse sentido de comunidade, imprescindível para as relações humanas?
Por que desrespeitamos sistematicamente os grevistas que lutam pelos seus (e pelos nossos) direitos? Por que grande parte da população ainda não percebe a importância, questiona e vê como “vagabundos” os trabalhadores do MST, por exemplo, maior produtor de arroz orgânico da América Latina e grande produtor de outros alimentos pela via agroecológica?
Será necessário que um governo golpista, composto por homens brancos, ricos e conservadores arrase com todos os nossos direitos e com todas as nossas riquezas para que despertemos desse torpor? Será que precisaremos regredir tanto para recuperarmos nossa dignidade?
Por dez dias de caos surtamos, mas alguns de nós também fomos capazes de abandonar o egoísmo e a pressa, até arrumamos tempo para pensar, mudar, conhecer, conviver e compartilhar. De quanto tempo precisamos para nos mantermos firmes nesses propósitos e atitudes?
Imagem de capa: “A extração da pedra da loucura” de Hieronymus Bosch
Mayara Bergamo é fotógrafa e jornalista apaixonada pela cultura popular brasileira e pelo tripé literário formado por Gabriel García Márquez, Eduardo Galeano e Pablo Neruda.