Você Não Estava Aqui: Crítica cinematográfica às relações sociais de produção no capitalismo

Podemos considerar que o tema do "precariado" e da uberização do mundo do trabalho é o ponto nodal que liga o drama explorado na tela do cinema e a realidade mais nua e crua. Sem idealismos e muito menos suposições acerca das condições materiais existentes no modo de produção capitalista, Ken Loach consegue através da arte, trazer a atualidade do tema de modo profundo.

Foto: Reprodução Esquerda Diário

Escrever sobre produções dirigidas por Ken Loach é ter em mãos o compromisso com a qualidade de seu trabalho conforme nos lembra Violet Bruck em seu ensaio: “Ken Loach: Desafiar el relato de los poderosos” à rede internacional Esquerda Diário.

Segundo Bruck, o diretor do mais recente filme “Você não estava aqui”, possui uma longa estrada de produção cinematográfica acerca de temas como injustiças sociais, problemas com moradia; desemprego; greves, etc., estando envolvido em mais de trinta filmes, dentre eles: Riff-Raff, Agenda Secreta; Terra e liberdade; Pão e Rosas e Eu, Daniel Blake.

Podemos considerar que Ken Loach através da expressão cinematográfica não economiza críticas fecundas à burguesia, a seus valores, costumes e formas de opressão sobre a classe trabalhadora. Por esse motivo, é comum em sua produção nos depararmos com personagens de classes populares o que fornece aos seus filmes um realismo impactante. Ainda conforme Bruck, diferentemente da indústria cinematográfica comum dos circuitos do capitalismo, as obras de Ken Loach procuram ser subversivas, incomodar e questionar a realidade vigente e o poder da burguesia. Ao utilizar do método cena a cena o diretor consegue imprimir nos atores a perspectiva cronológica e sem pré-julgamentos dos atores em relação aos personagens.

Ao contrário de todas as receitas da indústria, Loach desenvolve seu método de trabalho “cena a cena”, em ordem cronológica “para que os atores vivam o personagem”. Os atores não conhecem o roteiro completo antes das filmagens, para que não tenham julgamentos prematuros ou percam a espontaneidade. A semelhança social real também é procurada “é muito difícil atuar em uma classe social diferente” (BRUCK, 2014).

Dessa forma, podemos observar como traço comum o resgate ao ambiente de pequenas histórias com grandes implicações, o que promove no espectador uma identificação instantânea. Acompanhada dessa lógica cotidiana o diretor possui o estilo de fazer a conexão com as relações sociais de produção no seio de uma sociedade de classes, repleta de conflitos, exploração e opressão da classe burguesa sobre a trabalhadora.

Nesse sentido, é impossível não se comover ou se identificar com o mais recente filme: “Você não estava aqui” roteirizado por Paul Laverty e dirigido por Ken Loach. Sempre atento a temas atuais Loach consegue fazer uma reflexão profunda sobre as relações de trabalho e sua relação com a flexibilização laboral promovida pela sanha capitalista.

O filme lançado no dia 27 de Fevereiro de 2020 no Brasil traz como enredo a dura realidade vivenciada por Ricky (Kris Hitchen) e sua família composta pela sua esposa Abbie (debbie Honeywood); pela filha Liza Jane (Katie Proctor) e pelo filho Sebastian (Rhys Stone), que após o colapso financeiro de 2008, se veem rodeados de dívidas, vivendo de aluguel, tendo em vista que perderam a hipoteca da casa diante do estouro da bolha imobiliária.

É importante destacar desde já a cidade onde o enredo do filme se passa no norte da Inglaterra, na cidade de Newcastle. Para muitos com uma suposta síndrome de vira-lata, tais cidades seriam o sonho de moradia, na busca por uma diferenciação social e em tempos de redes sociais, vale tudo para postar algumas fotos no exterior, e render bons likes e curtidas. Contudo, o filme de Loach nos mostra justamente o contrário, com a devida diferenciação da formação social-econômica daquele país, o processo de precarização do trabalho e de uberização também estão presentes na terra da rainha.

Ao seguirmos o enredo do filme vamos nos deparar com o fato de que para tentar melhorar de vida e sair do aluguel e oferecer uma melhor condição de vida a família, Ricky vai em busca de um emprego como entregador de encomendas. Contudo, o que Loach nos mostra de forma magistral no filme são as novas relações laborais empreendidas em tempos de aplicativos e de avanço da tecnologia, que deveriam estar a serviço da classe trabalhadora. Nesse emprego, Ricky não possui patrão e nem chefe a não ser ele mesmo, essa parte do filme é expressa basicamente pela fala do gerente do armazém que recebe as mercadorias das grandes empresas capitalistas: “você não trabalha para nós, você trabalha conosco”. Afinal, será seu “próprio patrão”.

Dessa forma, Ricky precisa entrar com um investimento próprio de modo a adquirir uma van, o que induz sua esposa a vender o único carro que possuía para se transportar na cidade de Newcastle para a realização da atividade laboral de cuidadora de idosos. Em meio a esse processo, o filme retrata a carga de trabalho árdua tanto da esposa, quanto de Ricky, que ao ser pressionado a cumprir horários e metas de entrega, se vê vigiado por um aparelho eletrônico que informa sua real localização para a empresa que terceiriza seu trabalho e pelos clientes que esperam a encomenda em suas casas.

No desenrolar do filme também vamos presenciar o drama familiar de Ricky, que sem tempo para a família devido à carga-horária de trabalho exaustiva passa a enfrentar conflitos com o seu filho Sebastian, que ao apresentar problemas na escola, passa a chamar a atenção de todos, inclusive do pai que deseja um futuro diferente ao do precariado vivenciado por ele mesmo. Não é à toa que Ken Loach insere esses elementos no filme, sua intenção é justamente nos mostrar a correlação existente entre mundo do trabalho e psique humana, aos poucos vamos observando transformações em Ricky e em sua esposa, que passam a afetar toda à família, a busca por melhores condições de vida em meio ao modo de produção capitalista que através da flexibilização do trabalho, mais prende do que liberta as capacidades humanas é demonstrativo dessa realidade.

O trabalho de 14 horas por dia que Ricky realiza não é suficiente, ser o próprio chefe também não, uma vez que essa relação laboral chega a tal ponto que ele precisará urinar em uma garrafa pet para não perder tempo e conseguir cumprir suas metas de entrega diária. Uma realidade que não difere daquele que presenciamos em nosso cotidiano através dos entregadores de comida do Ubber, Ifood ou Rappi, conforme denunciamos aqui no Esquerda Diário desde uma posição marxista ofensiva e revolucionária. Nesse sentido, sem nenhuma garantia de vínculo empregatício e sendo o próprio patrão, Ricky precisa arcar com as despesas associadas a um assalto que viera a sofrer, além disso, ao ser espancado e ficar impossibilitado de trabalho, o armazém no qual trabalha tem como regra clara a política de substituição de entregadores, contudo, com o pagamento de multa daquele que não pode trabalhar, já que o ritmo de entregar é milimetricamente controlado por estatísticas que precisam estar em acordo com o poder dos acionistas da empresa.

Podemos considerar que o tema do “precariado” e da uberização do mundo do trabalho é o ponto nodal que liga o drama explorado na tela do cinema e a realidade mais nua e crua. Sem idealismos e muito menos suposições acerca das condições materiais existentes no modo de produção capitalista, Ken Loach consegue através da arte, trazer a atualidade do tema de modo profundo.

O filme em si da ampla margem para realizarmos interpretações concretas com base numa teoria marxista do trabalho. A alienação do trabalhador, a venda de sua força de trabalho e a irracionalidade capitalista são esferas por onde orbita o enredo, que de forma clara e objetiva consegue fornecer ao espectador uma visão crítica e não romântica das atuais relações de trabalho. Faz-se necessário através do filme, lançarmos um olhar mais profundo sobre a realidade brasileira, em especial no que diz respeito às condições de trabalho precárias de milhares de trabalhadoras e trabalhadores que sem alternativas concretas precisam vender sua força de trabalho a taxas de reprodução patéticas.

Apenas para termos uma breve ideia dessa realizada, basta observarmos a taxa de 11,2% de desocupados conforme divulgado Agência de Notícias do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) que ficara inferior em 0,4% quando comparado aos meses de Agosto e Outubro de 2019. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) realizada pelo IBGE e divulgada no dia 28 de Fevereiro de 2020 o Brasil conta com um total de 11,9 milhões de pessoas desocupadas. Com um recuo pífio de nada mais que 0,5% do número de pessoas na informalidade, não temos nada a comemorar nesse início de 2020. Além disso, 4,2% da população brasileira é considerada como desalentada, ou seja, aqueles indivíduos que não possuem mais ânimo para procurar emprego. Somado a essas duras estatísticas temos um presidente declaradamente contra o trabalhador, que manifesta de forma aberta que o trabalhador deve escolher entre ter direitos ou empregos precários.

De um modo geral, o novo filme de dirigido por Ken Loach é mais do que indicado, deve ser assistido de modo atento às nuances do enredo e os pontos de contato com a realidade do mundo do trabalho. Certamente o filme nos faz refletir que para além de um trabalho, devemos pensar no tipo e para qual finalidade esse trabalho é realizado. Conforme nos ensina o saudoso revolucionário bolchevique Leon Trotsky em seu programa de transição, temos plenas capacidades objetivas de realizarmos a libertação do trabalho humano da sanha irracional do capitalismo, necessitamos ainda de elementos subjetivos e de um direcionamento da força política da classe trabalhadora para realizarmos as tarefas que apenas essa classe pode tomar para si em sua dinâmica revolucionária: emancipação do trabalho e qualidade de vida de modo geral.

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