“Você não dirige? Tem medo ou é burro?”

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Por Matheus Pichonelli.

É a pergunta que eu mais ouvi na vida. “Sério que você não dirige?”. A segunda é: “você não dirige por medo?”. A terceira, engatada na sequencia, é se eu sou burro.

Geralmente respondo sim para as três. Aos 31 anos, posso contar nos dedos as vezes em que me sentei ao volante. Em todas as ocasiões, eu era um jovem aspirante a motorista que precisava treinar para chegar às aulas práticas tinindo. Por algum desvio de percurso, a ideia não vingou: era uma dificuldade imensa fazer um carro parar e voltar a andar numa ladeira, e a terceira pergunta, vinda dos meus instrutores informais, se tornou tão comum que ficou insuportável. Na época a ordem das perguntas era inversa: primeiro me perguntavam se eu era burro, depois se eu tinha medo e, conforme eu me distanciava dos 18 anos como um barco se distancia do porto, o primeiro questionamento chegou ao topo. “Sério que você não dirige?”.

Sério. Seríssimo. Aos 18 anos, a mobilização rumo à maioridade me parecia ridícula. Se havia um rito de passagem da adolescência para a vida adulta na sociedade moderna, esse rito era a chegada da carta de alforria chamada carteira de habilitação. Uma carta de alforria viciada: aos 18 anos, o postulante a homem mal pode arcar com a gasolina ou com a calça que veste, e é obrigado a abrir um campo de negociação com os pais, os donos dos meios de locomoção, que o transforma em mendigo da porta de casa para dentro.

Tudo para, fora de casa, posar de rei. A ponto de todos os meus amigos que faziam tanto ou mais sucesso com as meninas do que o Topo Gigio prometerem o revide: “quando eu fizer 18 anos e passar com a camionete na frente da casa dela ela vai ver”. Triste adolescência. O pior é quando me lembro de uma amiga que listava seu tipo de homem favorito: “alto, loiro, de olhos azuis e Golf Preto”.

Por essas e outras, o carro, nas sociedades primitivas classemedianas, é uma extensão do próprio corpo, e contra essa ideia eu lutei piamente nos últimos 13 anos, 12 dos quais cumpridos em regime semiaberto em linhas de metrô superfaturadas, ônibus vacilantes e rodoviárias superlotadas. Mas lutei, mais ou menos como o personagem de Rémy Girard quando se vê em um hospital desequipado no filme As Invasões Bárbaras: “Defendi a vida toda a estatização dos hospitais do Canadá. Agora que estou doente, aceito as consequências”.

Depois dos 18 anos, engatei uma faculdade, depois outra, e o trabalho, e as horas extras, e quando vi estava sozinho no ponto à espera do ônibus por anos. Tinha que saber inglês, e me matriculei num curso de inglês, e precisava saber da piscina, da margarina e da Carolina, mas da gasolina não sabia porque não usava carro. Na vida adulta, quem tem três meses sobrando para fazer aula e aprender a ler placa, olhar o parabrisa e manusear a embreagem?

“O tempo em que estaria na aula de CFC eu passei no cinema”, costumava dizer, no alto de uma soberba artificial. No fundo eu só racionalizava em torno de uma questão inglória: é verdade que não sobrava tempo, mas era ainda mais verdade que, com o tempo, eu criei pânico de direção. Quando finalmente comprei meu carro, com parcelas divididas com a minha mulher, o único acordo foi: “tudo bem, mas é você quem dirige”.

Assim foi. E assim vivi boa parte da vida. Em São Paulo, nunca conduzi, sempre fui conduzido. Até que um dia resolvi voltar ao interior e me estabelecer em um ponto equidistante entre a cidade onde eu nasci e a cidade onde me formei. Cheguei à região de Campinas como quem chega à Terra Prometida: aqui voltei a nadar, a jogar futebol durante a semana, a enxergar a lua, a tomar cerveja por menos de nove reais e a ter como vizinhos os pássaros e uma lagoa. Faltou um detalhe: como chegar ao trabalho?

Embora tenha tamanho e musculatura para isso, Campinas não tem uma linha de trem nem de metrô que ligue suas várias regiões às cidades-satélites, de onde partem muitos de seus trabalhadores. A ausência dessa espinha dorsal de superfície empurra os cidadãos a entupir as poucas vias arteriais das cidades da região. Os carros são muitos. E, muitas vezes, mais de um por família. O que leva alguns pontos-chaves do município a apresentar um padrão 23 de Maio de tráfego em pleno interior – a diferença é que, a depender do horário, ainda é possível ver a lua e se resignar.

Na minha primeira semana, fiz todo tipo de conta para fugir das aulas de CFC. São 16 quilômetros até o trabalho. O que são 16 quilômetros?, pensei. Pensei também em ressuscitar a velha bicicleta. “Cara, cê vai morrer”, me avisou um amigo da cidade. De fato, as ciclovias por aqui são tão raras quanto as aeronaves espaciais. Reparei que a sede da empresa tem um heliponto, o que resolvia parte do problema. Faltava o helicóptero. Acionei a rede de amigos para ver quem ia e voltava para a região. Um amigo de um amigo se dispôs. Ganhei o amigo, mas perdi a carona: nossos caminhos combinavam, mas nossos horários, não.

Até que descobri uma linha intermunicipal, espécie de oásis em meio à multidão de escapamentos, que me faz andar cerca de dez minutos até o ponto e em uma hora me deixa na porta de trabalho. Deu certo no primeiro dia. No segundo também. No terceiro, o problema foi a volta: por um minuto perdi o ônibus. E o próximo só passaria dali a 50 minutos. Sentei. Esperei. E ele simplesmente não apareceu. Era o último da linha, e só consegui chegar em casa depois de uma epopeia, de ponto em ponto, até um terminal próximo. Sobrevivi, mas com a sensação de que saí de casa em maio e voltei em dezembro, quando o estoque de boa vontade chega ao volume morto da Cantareira.

Se na vida anterior andar a pé não costumava falhar, aqui tarda e falha: no caminho até o ponto, passo acelerado olhando agora para o chão. Se parar para conversar com amigos da vizinhança corro o risco de perder o ônibus. Depois, só dali a uma hora. Mas por que diabos não ampliam a linha? Se você perguntar para os prefeitos da região, vão responder que falta demanda. Eu responderia: falta é incentivo, e estes estão todos concentrados na ampliação da frota de veículos, com juros camaradas e ideias sobre sucesso associado à liberdade de ir e vir. Assim justificamos os camarotes ambulantes que diariamente entopem as vias em direção a Campinas, como uma corrida de espermatozoides em direção ao útero da maior cidade do interior do País.

São metros e metros espalhados por eixos e rodas que caberiam em assentos minimamente confortáveis de transporte coletivo. E horas e horas da semana consumidas para manter o carro parado. Que poderiam ser gastas, por exemplo, com a leitura de livros, jornais ou relatórios a caminho do trabalho.

Mas, para mudar e ampliar as linhas de ônibus, é preciso mudar um sistema de pensamento, como alertou o filósofo político americano Michael Sandel, autor de O Que o Dinheiro não Compra, em entrevista ao repórter Raul Juste Lores, da Folha de S.Paulo: “As elites parecem desesperadas em não se misturar com os demais. Vida comum é saudável, e uma democracia vibrante precisa de lugares públicos que misturem diferentes classes. A camarotização é uma ameaça à democracia, ao espírito do bem comum. O maior erro é pensar que serviços públicos são apenas para quem não pode pagar por coisa melhor. Esse é o início da destruição da ideia do bem comum. Parques, praças e transporte público precisam ser tão bons a ponto de que todos queiram usá-los, até os mais ricos”.

Bingo. Às perguntas do primeiro parágrafo continuo levantando minhas placas em protesto. Sim, é sério que não sei dirigir. Sim, tenho medo. E sim, sou burro. Mas se um dia o mundo parar na estrada, não me mandem a fatura. Os camarotes são muitos, mas o congestionamento é de todos.

Fonte: Carta Capital.

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