Vítimas do coronavírus: A classe trabalhadora imigrante. Por Célia Vendramini e Soraya Franzoni Conde

Por Célia Regina Vendramini e Soraya Franzoni Conde, para Desacato.info

#FiqueEmCasa

Professoras da Universidade Federal de Santa Catarina

A pandemia mundial do novo coronavírus tem revelado aquilo que é próprio da lógica do capitalismo – uma vida vale mais do que outra, dependendo da classe, local de origem, etnia ou raça.

Os (poucos) dados disponíveis sobre os contaminados e vítimas da COVID-19, bem como os afetados (na sua fonte de renda e moradia) escancaram, em diferentes partes do mundo, a extrema desigualdade social decorrente da divisão de classes. Pretendemos apresentar alguns dados que evidenciam a situação da classe trabalhadora, bem como as diferenças presentes no seu interior, que tornam alguns grupos ainda mais vulneráveis, como os imigrantes.

Iniciemos pelo império estadunidense, mais especificamente pela cidade de Nova Iorque, reconhecida como “o epicentro do epicentro” da crise da COVID-19, reveladora da distinção entre os bairros e seus moradores. Segundo dados da prefeitura de Nova Iorque, o maior índice dos contaminados está no bairro Queens (37%), onde residem milhares de imigrantes latino-americanos, muitos dos quais em situação ilegal, que constituem a força de trabalho mais barata e disponível ao subemprego. Em seguida, aparece o Brooklyn (32%), bairro com imigrantes de diferentes partes do mundo e alto índice de negros americanos e latinos. Em terceiro lugar, aparece a região do Bronx (27%), tradicionalmente conhecida pela maior concentração de negros/as americanos/as da cidade, seguida de imigrantes latinos. E, por último, aparece a rica Mahattan (16%), conhecida por ter um dos custos de vida mais caros do mundo, e StateIsland (9%), bairro com baixa densidade populacional, se comparado ao restante da cidade.

O coronavírus, como se observa, não atinge a população estadunidense igualmente. Mais casos e mais mortes são registradas entre as comunidades de imigrantes da América Latina.  Segundo levantamento sobre a epidemia feito pela BBC News Brasil, nos três estados americanos que concentram em torno de 80% da população brasileira nos EUA, além do grande contingente de imigrantes latino-americanos em geral (Nova Iorque, Massachussets e Flórida), seus habitantes têm entre 20 e 30% mais chances de adoecer e morrer.

Estes dados revelam que cada pessoa vale pelo lugar onde está. Segundo Milton Santos (1993, p.81), “o seu valor como produtor, consumidor, cidadão, depende de sua localização no território… a possibilidade de ser mais ou menos cidadão, depende, em larga proporção do ponto do território onde se está.”

Não precisamos de muitas análises para compreender o fenômeno, o qual está associado às condições de vida e de trabalho dos imigrantes que propiciam o contágio e dificultam o acesso ao tratamento. Estes estão ocupados em trabalhos de reprodução social, particularmente as mulheres imigrantes, no cuidado de idosos, de pessoas doentes, no ramo da alimentação e limpeza. Em geral, ocupam os trabalhos mais extenuantes e precários, com longas jornadas de trabalho e baixos salários, sem direitos trabalhistas. Para poderem arcar com os custos dos aluguéis moram aglomerados. Além disso, alimentam-se mal e de forma irregular. Muitos imigrantes já chegam nesta crise sanitária debilitados, visto que têm acesso restrito à saúde. A ausência de saúde pública, associado ao medo de serem deportados e à xenofobia, faz com que muitos não procurem assistência médica.

O problema ganha proporções ainda maiores quando percebemos os gigantescos fluxos migratórios atuais. No caso dos EUA, quase a totalidade do trabalho na produção agrícola tem como base a exploração de milhares de imigrantes latino-americanos sem documentação mas considerados trabalhadores essenciais durante a pandemia da COVID-19. É possível um trabalho essencial ser realizado por um imigrante ilegal? Essa contradição, insolúvel pela base de exploração capitalista do trabalho, foi revelada em reportagem do New York Times (NYT, 2020b) e Intercept (2020), acerca de fazendeiros estadunidenses reclamando que as deportações de imigrantes de 2017 elevaram os salários dos trabalhadores rurais e, com isso, diminuíram as taxas de lucro. Eles temem que o recém fechamento dos serviços de imigração durante 60 dias pelo governo de Donald Trump possa elevar salários no campo novamente.

Esses mesmos fazendeiros aparecem matando galinhas e porcos, queimando vegetais maduros e jogando milhares de litros de leite em valas no interior do país, sob a justificativa de que as mercadorias não poderão ser consumidas em tempo hábil, em virtude da crise no consumo (NYT, 2020b).  Embora o desemprego, a fome, o número de moradores de rua e as campanhas voluntárias de doação de cestas básicas tenham aumentado, é preferível o desperdício do que a socialização aos pobres e famintos. Esse dado evidencia a necessidade de alteração radical da forma de produção, consumo e distribuição da riqueza socialmente produzida.

De acordo com David Harvey (2020), a classe trabalhadora contemporânea dos Estados Unidos, composta predominantemente por afro-americanos, latino-americanos e mulheres assalariadas, enfrenta a dura escolha de correr o risco da contaminação ou ficar desempregada e sem benefícios.

Um outro caso dramático a ser aqui relatado refere-se aos imigrantes venezuelanos que estão voltando ao seu país em função dos efeitos da pandemia sobre o seu trabalho, renda, moradia e saúde. Imigrantes que buscavam a reprodução da vida em países neoliberais como Colômbia, Peru e Brasil estão retornando à Venezuela para evitarem a morte. As fotografias são chocantes, famílias inteiras, com crianças e bebês nos braços, carregando seus pertences, caminham por dias para chegar à Venezuela. Foram expulsos da Colômbia por razões econômicas. Não recebem apoio, não têm trabalho, estão inseguros, não podem pagar os aluguéis e estão sendo despejados, não contam com nenhuma solidariedade e sofrem com a discriminação.

Segundo notícias da TeleSur, o governo venezuelano realizou um plano chamado Vuelta a la pátria para ajudar os retornados. Eles são recebidos e submetidos a protocolos de saúde, com uma atenção integral (alimentos e saúde gratuitos), ficam em isolamento por 14 dias e, posteriormente, são enviados aos seus locais de origem. Vale lembrar que estas medidas são tomadas por um governo acusado de violar os direitos humanos. Não faz muito tempo que se estampavam na grande mídia as caravanas de venezuelanos saindo do seu país. E agora, por que a mesma mídia não está noticiando a expulsão dos imigrantes por parte de governos que de fato violam os direitos humanos? Além da invisibilidade dos que retornam, não há qualquer denúncia sobre a xenofobia que sofreram na Colômbia, no Peru e também no Brasil. Ou sobre os tanques de guerra colocados nas fronteiras pelo governo do Equador para evitar a passagem dos imigrantes.

Ao contrário da Venezuela, os imigrantes bolivianos expulsos economicamente do Chile que buscam cruzar as fronteiras por terra são proibidos de ingressarem no seu próprio país por decreto da presidente. Já os que chegam mediante voos internacionais são recebidos, o que revela a seleção dos que ingressam.

Mudando de continente, mas não de modo de produção, em Singapura, a disseminação do vírus foi contida, inicialmente, em função de uma estratégia rígida de controle e rastreamento dos contatos das pessoas infectadas. Entretanto, o número de casos aumentou (ou se tornou conhecido) quando os testes começaram a ser feitos em alojamentos lotados de trabalhadores imigrantes da construção civil.

Em diversos outros países e continentes, repete-se a violência contra os imigrantes ao passo que o capital aproveita-se da pandemia para impor medidas ainda mais restritivas de controle. Cria-se um terreno fértil para o fechamento das fronteiras em nome da proteção e segurança de seus cidadãos e também com o intuito de fortalecer o racismo institucional, nos termos do sociólogo italiano Pietro Basso (2013), condenando os “bárbaros” como uma ameaça interna e externa, estigmatizando, colocando como suspeita, controle severo e seleção dos povos imigrantes.

Entre as medidas de emergência do governo dos Estados Unidos, para conter a propagação da COVID-19, está a deportação de imigrantes para seus países de origem e a ameaça de sanções de visto àqueles países que não os aceitem de volta. Há indícios de que muitos estão contaminados. Diversos meios de comunicação indicam que foram expulsos dos Estados Unidos em torno de 10 mil imigrantes desde o início da crise. Para completar a tragédia, o governo nega a entrada a todos os solicitantes de asilo.

Na Europa, programas de acolhimento aos refugiados são interrompidos, assim como suspensão de procedimentos de asilo. Há cada vez menos voluntários nos campos de refugiados e, consequentemente, distribuição de comida; não há instalação básica de saúde e higiene.

Uma situação que destoa das citadas acima é a de Portugal. O governo do país regularizou todos os imigrantes que fizeram pedidos para residência legal no país até 18 de março, quando foi decretado o estado de emergência. Com isso, os imigrantes passam a estar em situação regular (por um tempo determinado) e têm acesso ao sistema de saúde, bem como apoio social e financeiro do governo. A decisão também beneficia os que pediram asilo. Além disso, foi proibido despejo e corte de água, luz e gás por falta de pagamento.

Um caso exemplar de cooperação e solidariedade nesta crise sanitária é Cuba. O país já enviou até o momento 1.238 profissionais da saúde para 21 países da América Latina e Caribe, África, Europa e Oriente Médio para ajudar a deter o avanço do coronavírus. Além de promover intercâmbio de experiências.

E como está a situação dos imigrantes no Brasil? É muito difícil saber exatamente, visto que os governos em geral não tem disponibilizado dados que indiquem quais são os grupos raciais e étnicos mais atingidos pela epidemia, associado à subnotificação de casos e mortos. A situação dos refugiados e imigrantes em áreas de fronteira e campos de refugiados se já era preocupante, agora é dramática, visto que os locais estão sendo isolados. Porém, em grande parte, não contam com assistência à saúde, higiene e, inclusive, alimentação.

            No estado de Santa Catarina, está sendo produzido material informativo para orientar os imigrantes sobre a prevenção e cuidado com o novo coronavírus nas principais línguas faladas por estes. É uma boa iniciativa, entretanto incapaz de conter a disseminação do vírus em localidades em que os imigrantes (nacionais e internacionais) literalmente se amontoam, em que vivem muitas pessoas em poucos cômodos, com carência de políticas públicas de abastecimento de água limpa, saneamento e assistência à saúde; em ocupações em que os trabalhadores se arriscam a contrair o vírus, como construção civil, serviços de alimentação e limpeza, supermercados, serviços de entrega por aplicativo, entre outras.

Se pandemias e vírus não escolhem classe social, os recursos para proteção do contágio e recuperação econômica são apropriados de forma desigual, como pode ser observado nos pacotes trilionários de ajuda destinados aos bancos e aos grandes empresários no Brasil e nos EUA. Aos pobres, negros/as, migrantes, trabalhadores, restam inúmeros obstáculos ao acesso ao parco auxílio emergencial de 600 reais concedido no Brasil, como a burocracia e as filas, onde perdura o risco de maior contaminação. Ainda que não haja restrição para os imigrantes acessarem o auxílio, estes enfrentam barreiras difíceis de transpor. Os principais problemas relatados são a ausência de documentação migratória, regularização do CPF, comprovante de endereço e falta de informação.

O modelo de cortes na saúde pública pelas políticas de austeridade revela-se uma catástrofe simbolizada pelas cenas dantescas noticiadas nos meios de comunicação que mostram hospitais superlotados, caminhões de frigoríficos repletos de corpos e covas gigantescas sendo preparadas. Com isso, reaparece a importância do Sistema Único de Saúde – SUS, ainda que venha passando por um processo crescente de desmonte e precarização, especialmente a partir da EC95 que limitou o investimento em saúde, educação e assistência social. Ainda assim, o SUS destaca-se durante a pandemia por atender pessoas nacionais e estrangeiras, tendo como preceito a saúde como direito universal.

            Por fim, observamos, a partir dos casos exemplares apresentados, que a pandemia ocasionada por conta da COVID-19 tem marca de classe, etnia e raça. As condições de produção e reprodução da vida da classe trabalhadora imigrante torna-a vulnerável ao contágio do vírus. A pergunta inicial sobre o valor de uma pessoa é respondida de forma ainda mais evidente neste contexto, o valor é determinado pela propriedade. Na ausência da propriedade – dos meios de produção e de subsistência – aqueles que vagueiam pelo mundo em busca de trabalho, nos termos de Hobsbawm (1991), enquanto uma massa de expropriados completamente disponível ao capital, carregam, além de lembranças e sonhos, o novo coronavírus. O que nos leva a gritar: A VIDA ACIMA DOS LUCROS!

Referências:

BASSO, Pietro. Imigração, racismo e antirracismo na Europa de hoje. In:  TAVARES, M. A.; GOMES, C. (Orgs) Intermitências da crise e questão social: uma interpretação marxista. João Pessoa: Editora da UFPB, 2013, p. 83-131.

FOLHA DE SÃO PAULO. Portugal regulariza imigrantes para dar acesso a sistema de saúde durante pandemia. 28 de março de 2020. Disponível em:https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/03/portugal-regulariza-imigrantes-para-dar-acesso-a-sistema-de-saude-durante-pandemia.shtml

HARVEY, David. Políticas anticapitalistas em tempos de COVID-19. Front – Instituto de Estudos Contemporâneos, 24 de março de 2020.

HOBSBAWM, E.  A era das revoluções. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1991.

INTERCEPT. The food supply chain is not yet in danger – but the workers who keep us fed are. Disponível em: https://theintercept.com/2020/04/24/coronavirus-food-supply-chain/. Acesso em 28 de abril de 2020.

LAVANGUARDIA Internacional. Trump ha deportado a 10.000 inmigrantesen médio de la pandemia. Disponível em:https://www.lavanguardia.com/internacional/20200410/48403339046/trump-deportado-inmigrantes-pandemia-coronavirus.html

NYC Health. CONVID-19: Data. Disponível em: https://www1.nyc.gov/site/doh/covid/covid-19-data.page

NEW YORK TIMES. Dumped Milk, Smashed Eggs, Plowed Vegetables: Food Waste of the Pandemic. Disponível em:

https://www.nytimes.com/2020/04/11/business/coronavirus-destroying-food.html. Acesso em 28 de abril de 2020.

NEW YORK TIMES. Farmworkers, mostlyundocumentedbecame ‘essential’ duringpandemid Disponível em: https://nyti.ms/39HIMzv. Acesso em 28/04/2020.b

S//MUNDO. Covid-19. Segunda onda da doença em Singapura com 1.400 novos casos. Disponível em:https://www.sabado.pt/mundo/detalhe/covid-19-segunda-onda-da-doenca-em-singapura-com-1400-novos-casos

SANCHES, Mariana. Coronavírus: nos EUA, cidades com migrantes brasileiros e hispânicos têm 30% mais mortes por covid-19. BBC News Brasil, 19 de abril de 2020.

SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. 2.ed. São Paulo: Nobel, 1993.

TELESUR vídeos – Cientos de venezolanosretornan al país enmedio de crisis sanitária. 6 de abril de 2020. Disponível em:https://videos.telesurtv.net/video/81…

TELESUR vídeos – Cuba despliega brigadas médicas contra la Covid-19 en 21 países. 23 de abril de 2020. Disponível em:

https://www.telesurtv.net/news/cuba-brigadas-medicas-coronavirus-20200423-0016.html

TELESUR vídeos – Gob. de facto impide retorno de bolivianos varados en Chile. 10 de abril de 2020. Disponível em:https://videos.telesurtv.net/video/818805/gob-de-facto-impide-retorno-de-bolivianos-varados-en-chile/

TELESUR vídeos – Venezolanosretornan a su país trasactos de xenofobia. 6 de abril de 2020. Disponível em:https://videos.telesurtv.net/video/818805/gob-de-facto-impide-retorno-de-bolivianos-varados-en-chile/

WIMANN, Guilherme. Sem recursos, migrantes enfrentam barreiras para acessar auxílio emergencial. Brasil de Fato, 14 de abril de 2020. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2020/04/14/sem-recursos-migrantes-enfrentam-barreiras-para-acessar-auxilio-emergencial

Imagem de capa tomada de milenio.com

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