Venezuela enfrenta o bloqueio dos Estados Unidos há 15 anos

Desde 2014, a Venezuela vem sendo alvo de uma série de medidas de bloqueio comercial e financeiro, impostas unilateralmente pelos Estados Unidos, Canadá e alguns países da Europa, que têm provocado um impacto especialmente grave sobre os direitos humanos da população venezuelana à alimentação, à saúde e a outros serviços públicos.

Foto: Marco Weissheimer

Por Marco Weissheimer, do Sul21.

A dimensão do impacto desse bloqueio na vida da população foi objeto de estudo da organização Sures – Estúdios y Defensa en Derechos Humanos, uma associação civil venezuelana, dedicada ao estudo, promoção, educação e defesa dos direitos humanos. Esse estudo detalha de forma cronológica as sanções impostas à Venezuela, sua pretensa base jurídica, alcance e sua relação com o Direito Internacional Público e com a legislação internacional de Direitos Humanos.

O estudo define as práticas de bloqueio como “medidas coercitivas unilaterais” e não como “sanções”, por entender que utilizar esse último termo implicaria reconhecer a existência de um fato juridicamente reprovável contra o Estado venezuelana que justificaria, com base no Direito Internacional, a aplicação de um castigo. O bloqueio contra a Venezuela teve como ponto de partida a aprovação da Lei 113/278 (“Lei Pública de Defesa dos Direitos Humanos e da Sociedade Civil), pelo Congresso dos Estados Unidos, durante o governo de Barack Obama. Essa lei passou a ditar a política dos EUA em relação à Venezuela, influenciando também outros países a adotarem medidas coercitivas unilaterais contra o país latino-americano.

A Lei 113/278 pretende justificar as ações de bloqueio com base em juízos de valor sobre a situação econômica venezuelana, particularmente no que diz respeito ao acesso a alimentos, medicamentos e outros produtos básicos. No entanto, paradoxalmente, assinala o estudo da Sures, as medidas que propõem, ao invés de resolver esses problemas, os agravam ainda mais. A lei proíbe expressamente empresas privadas, organizações da sociedade civil, instituições beneficentes e outras entidades em território estadunidense a realizar qualquer tipo de transação ou negócio com alguma pessoa ou entidade do Estado venezuelano, prevendo amplas sanções a quem descumprir essa determinação. Ao fazer isso, aponta o estudo, impõe um bloqueio econômico, financeiro e comercial contra a Venezuela muito parecido ao imposto contra Cuba durante décadas. As medidas de bloqueio contra Cuba já foram, por várias vezes, condenadas pela Organização das Nações Unidas em função das graves violações de direitos humanos que provocam.

Medidas de bloqueio patrocinadas pelos EUA atingem diretamente a indústria petrolífera da Venezuela. Foto: Sures/Divulgação

Além de servir como base para estabelecer um conjunto de medidas visando o bloqueio econômico, comercial e financeiro da Venezuela, a referida lei também prevê expressamente “atuar” junto a estados membros da Organização dos Estados Americanos (OEA) e da União Europeia em questões internas da Venezuela. Ao fazer isso, denuncia o estudo da organização Sures, essa lei reconhece “de forma explícita e expressa” que viola princípios fundamentais do Direito Internacional Público, da Carta da Organização das Nações Unidas e da Carta da própria OEA.

Segundo o estudo, de dezembro 2014 a março de 2019, foram adotadas 38 instrumentos que aplicam medidas coercitivas contra a Venezuela. Os países e comunidades de países que adotaram essas medidas são: Estados Unidos, Canadá, União Europeia, Reino Unido, Suíça, Panamá e o chamado Grupo de Lima, que reúne ministros das relações exteriores de 14 países, entre eles, Brasil, Canadá, Colômbia, Argentina e Peru. Do total dessas medidas, 66% foram adotadas pelo governo dos EUA, totalizando medidas desde 2014. Em segundo lugar vem a União Europeia, com quatro medidas (10%), em terceiro o Canadá com três medidas (8%), seguindo-se Reino Unido e Panamá com duas medidas cada, Grupo de Lima e Suíça com uma medida cada.

A Lei 113/278 estabelece expressamente sanções contra o Banco Central da Venezuela (autoridade máxima em matéria de política monetária do país), a Petróleos de Venezuela S.A. (PDVSA), empresa do Estado que detém o monopólio da exploração de petróleo e gás e que é responsável por mais de 90% dos ingressos em moeda estrangeira do país, bem como contra outros entes do Estado com competência em matéria de políticas monetárias, financeiras e de controle cambial. Essa mesma lei prevê a possibilidade de aplicar medidas unilaterais de bloqueio e congelamento de ativos, fundos, bens e propriedades venezuelanas, suspensão de ingresso de divisas, revogação de visto e de outros documentos de funcionários públicos, oficiais militares e representantes diplomáticos. Poucos meses depois de ter sido aprovada, no dia 8 de março de 2015, o então presidente dos EUA, Barack Obama, declarou a Venezuela como “uma extraordinária ameaça para a segurança nacional e para a política externa dos Estados Unidos”.

Em 2017, já sob o governo de Donald Trump, ocorreu uma intensificação das medidas unilaterais contra a Venezuela. Ainda segundo o estudo da Sures, somente em 2017, a Oficina de Ativos Estrangeiros do Departamento de Estado dos EUA emitiu seis medidas desta natureza. Essas medidas tinham o objetivo explícito de “rechaçar, desconhecer e impedir a eleição, instalação e funcionamento da Assembleia Nacional Constituinte”, constituindo-se em mais uma ingerência nos assuntos internos venezuelanos. No dia 19 de março de 2018, Trump assinou uma medida proibindo qualquer transação mediante o uso da criptomoeda digotal “Petro”, criado pela Venezuela para tentar superar a crise econômica resultante da queda no preço dos combustíveis e das medidas de bloqueio impostas pelos Estados Unidos. Em novembro de 2018, o governo de Washington aplicou uma nova medida coercitiva, proibindo expressamente transações com ouro proveniente da Venezuela.

No 3 de dezembro, Departamento do Tesouro dos EUA anunciou novas medidas coercitivas contra navios da indústria petrolífera venezuelana. (Foto: Sures/Facebook)

A partir de novembro de 2017, a União Europeia também adotou uma série de medidas coercitivas contra a Venezuela, seguindo a orientação dos Estados Unidos. No dia 13 de novembro de 2017, o Conselho de Assuntos Exteriores da União Europeia estabeleceu restrições de exportação, fornecimento ou transferência para a Venezuela de qualquer tipo de armamento e material relacionado, incluindo aí armas, munições, veículos, equipamentos militares e peças de reposição. No dia 15 de novembro do mesmo ano e no dia 1° de fevereiro de 2018, o Reino Unido toma as mesmas medidas aplicadas pela União Europeia contra a Venezuela. Em março de 2018, a Suíça toma as mesmas medidas, incluindo também o congelamento de bens e recursos econômicos, além de proibir o ingresso, trânsito e permanência em território suíço de sete funcionários do governo venezuelano.

Até março de 2019, o Panamá era o único país latino-americano que havia imposto medidas unilaterais contra a Venezuela, por meio de uma resolução que congelou ativos e proibiu transações com empresas venezuelanas. Em janeiro de 2019, os governos da Argentina, Brasil, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, Guatemala, Guiana, Honduras, Panamá, Paraguai, Peru e Santa Lucia, agrupados no chamado Grupo de Lima, divulgaram um comunicado impondo restrições de ingresso aos seus territórios contra altos funcionários venezuelanos, bem como restrições de comercialização com pessoas físicas e jurídicas, congelamento de fundos e suspensão de cooperação militar.

Impacto das medidas de bloqueio sobre a população

Dois dos principais impactos dessas medidas de bloqueio envolvem a alimentação e a saúde do povo venezuelano. A Venezuela importa a maior parte dos medicamentos utilizados por sua população. Cerca de 34% desses medicamentos vêm dos Estados Unidos, 7% da Espanha e 5% da Itália. Considerando apenas esses três países, que adotaram medidas de bloqueio contra a Venezuela, eles somam 46% de todos os medicamentos consumidos no país. De modo similar, no caso dos alimentos, 33% das importações venezuelanas vêm dos EUA e 12% do Canadá. Ou seja, as medidas de bloqueio, considerando somente esses dois países, atingiram 45% das importações de alimentos consumidos pela população.

Segundo o estudo da Sures, o bloqueio econômico, financeiro e comercial imposto pelos EUA contra a Venezuela gera um impacto de grandes dimensões na economia do país, afetando em especial a possibilidade de importar bens de primeira necessidade, como alimentos, medicamentos e insumos para os serviços de saúde. Além disso, o país é afetado pela proibição de importar bens e serviços necessários para as atividades econômicas do país, entre eles insumos industriais e serviços financeiros. Após uma visita a Venezuela, o relator independente da ONU para a Promoção de uma Ordem Internacional Democrática e Equitativa, Alfred de Zayas, disse que as sanções impostas pelos Estados Unidos e outros países agravaram a crise da Venezuela. “A mão visível do mercado e a guerra econômica estão impactando a qualidade de vida da população”, afirmou Zayas. O relator acrescentou:

“Existe uma preocupante campanha para forçar os observadores a ver um ponto de vista pré-concebido, como, por exemplo, o de que há uma ‘crise humanitária’ na Venezuela. Devemos ser precavidos ante a hipérbole e o exagero, levando em conta que uma ‘crise humanitária’ é um termo técnico e pode ser mal utilizado como pretexto para uma intervenção militar e mudança de regime. É evidente que deveria haver livre circulação de alimentos e medicamentos na Venezuela a fim de aliviar a escassez dos referidos itens. No entanto, a ajuda deve ser realmente humanitária e não ter fins políticos ocultos”.

Nesta mesma linha, o estudo da Sures aponta casos concretos de como essas medidas de bloqueio provocaram graves violações de direitos da população venezuelana. Em julho de 2017, o Citibank decidiu, sem qualquer notificação prévia, fechar as contas bancárias do Banco Central da Venezuela e do Banco da Venezuela. Em novembro de 2017, o Citibank negou-se a receber uma transferência de fundos do Estado venezuelano destinada a pagar uma empresa privada internacional, que tinha conta no Citi, para a importação de um carregamento com mais de 300 mil doses de insulina, medicamento vital para a qualidade de vidas de pessoas com diabetes. Esse carregamento acabou congelado em um porto internacional e não pode chegar a Venezuela.

Ainda em novembro de 2017, a Euroclear reteve US$ 1,65 bilhões que o governo venezuelano havia destinado para a compra de alimentos e medicamentos. Neste mesmo mês, ampliou-se o bloqueio financeiro, não só para as importações venezuelanas, como também para receber o pagamento de serviços e produtos gerados pelo Estado venezuelano. O Banco Wells Fargo, por exemplo, reteve e anulou o pagamento de US$ 7,5 milhões realizado pelo Brasil para a Venezuela, resultante da venda de energia elétrica. Outro exemplo: a Bitfinex, maior plataforma privada de intercâmbio digital de Bitcoin, com sede em Hong Kong, anunciou que não comercializará com o “Petro”, criptoativo do Estado venezuelano, para não se expor a sanções do governo dos EUA.

O estudo da Sures conclui que o bloqueio econômico, financeiro e comercial contra a Venezuela “viola abertamente os princípios fundamentais do Direito Internacional Público, pois tem como finalidade explícita coagir o Estado e o povo venezuelano para impor seus interesses e posições sobre o exercício de seus direitos soberanos e provocar uma mudança concreta em sua política nacional”.

Carlos Ron Martinez (Foto: Governo Venezuela/Divulgação)

“Bloqueio é injusto, imoral e ilegal”

Para o diplomata venezuelano Carlos Ron Martinez, vice-ministro de Relações Exteriores para a América do Norte, o bloqueio imposto pelos Estados Unidos é imoral, injusto e ilegal. É imoral, defende, porque tem como real objetivo acessar riquezas da Venezuela como petróleo e ouro. “É injusto porque viola de forma grave e massiva os direitos humanos da população, e é ilegal porque viola os princípios da Carta de Direitos Humanos da ONU”, afirma. Um dos problemas centrais envolvendo esse bloqueio, acrescenta Martinez, é que se trata de um bloqueio invisibilizado, que sequer aparece no discurso dos funcionários da ONU, apesar das graves consequências que traz à economia venezuelana. De 2015 a 2018, exemplifica, a produção petroleira venezuelana diminuiu quase pela metade. Hoje, cerca de 7 bilhões de dólares da Venezuela estão detidos em 40 bancos internacionais. Os principais valores retidos são os seguintes:

– Novo Banco (Portugal): $1.547.322.175,89

– Banco de Inglaterra: $1.323.228.162,57

– Clearstream: $517.088.580,00

– Citibank: $458.415.178,49

– Sumitomo: $507.506.853,37

– Union Bank: $230.024.462,00

No último dia 3 de dezembro, o Departamento do Tesouro dos EUA anunciou novas medidas coercitivas contra a indústria petroleira venezuelana. Um total de seis navios petroleiros de bandeira venezuelana, da PDVSA, e um de bandeira panamenha, que transportavam óleo cru da Venezuelana para Cuba foram penalizados por, supostamente, tentar burlar sanções anteriores mudando o nome das embarcações. Segundo Carlos Ron, é muito difícil quantificar o prejuízo total que essas medidas de bloqueio vêm causando a Venezuela, pois os mecanismos são diversos e os impactos muito difusos. O diplomata aponta a crueldade e a hipocrisia que animam essa política: “Nós temos alguns bilhões de dólares bloqueados por eles em bancos internacionais e os Estados Unidos vêm falar de ajuda humanitária para a Venezuela”.

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