Vamos derrubar as barreiras e evitar os estigmas?

Por Mara Narciso.

Logo após meu primeiro aniversário, foi dado o diagnóstico de Diabetes Mellitus tipo 1. Apenas um ano após meu nascimento e o meu pâncreas não mais produzia insulina. Não sei de onde veio a ideia de o meu organismo rejeitar uma parte dele como se fosse algo estranho, e destruí-la, mas tinha acontecido isso.

A minha mãe foi uma heroína de um ato heróico só: cuidar do meu diabetes. Apenas depois de adulto é que fui entender como tinha sido complexo para ela. Abraçou essa difícil tarefa há 25 anos. Gastou muito dinheiro comigo, e principalmente lágrimas escondidas. Manobrava o glicosímetro contra todos, que achavam que picar meu dedo para medir a glicemia era uma covardia inútil, pois achavam que eu viveria pouco. Eu tenho um irmão, meu pai não ganhava bem, e ainda assim, metade da sua renda era gasta comigo. Minha alimentação era diferenciada, com saladas, frutas, e cereais integrais. Usava insulina em pré-mistura 80/20, onde para cada quatro unidades de insulina NPH (lenta) havia uma de insulina regular (rápida), e mais a correção necessária, com insulina regular de acordo com a glicemia do momento. Como a minha mãe conseguia evitar glicemias perigosas prolongadas? Não sei. Ela geralmente conseguia controlar minhas loucuras de menino. E ainda me convenceu de que eu era normal, certo de que apenas o meu pâncreas endócrino era doente. Nunca me senti inferior aos demais, e fui capaz de fazer tudo que os outros faziam.

A minha mãe nunca fez drama. Hoje sei do choro, mas nunca vi. Eu me sentia amado e feliz, e a vida na casa passava pela minha rotina em primeiro lugar. O dia da família começava após a minha glicemia capilar, insulina, café da manhã e saída para a escola. Nada tinha mais importância do que isso. Tal coisa poderia me deixar insuportável, mas não era assim. Não usava a doença para ter regalias. Meus pais deixavam claro para mim, que eu tinha o tratamento necessário, mas não seria mimado por causa disso. As reprimendas eram as mesmas do meu irmão. Eram-me exigidas as atividades escolares, a educação física, as provas, boas notas, boa alimentação, a higiene pessoal, do quarto e da casa.

Mas essa aparente paz e conformismo desabaram quando eu tive uma ceto-acidose diabética. Com catorze anos, não tinha sido internado nenhuma vez devido ao diabetes. Quando a glicemia subia, a minha mãe fazia a hidratação oral forçada e complementava com insulina regular. Desta vez a coisa foi mais longe. Eu tinha vestido a camisa de rebelde sem causa, pois não tinha contra o que me rebelar. Comi dois sanduíches enormes, e não apliquei a dose extra de insulina regular. Em poucas horas, entrando para a noite, urinei muito, comecei a enjoar e em pouco tempo estava vomitando. Fui parar no pronto-socorro.

Não queria de jeito nenhum, xinguei, mas fui internado e permaneci no hospital por quatro dias, o que foi instrutivo para mim. Fazia cara de mau, ficava de cabeça baixa e mal respondia às perguntas nas consultas médicas. Como eu ficava mudo, era minha mãe quem respondia. Mas logo mudei de tática. Fui um menino alegre e fazer tipo não combinava comigo. Voltei a sorrir, e a gostar da vida tanto quanto antes. Vejo hoje que deveria ter sido repreendido com mais firmeza. Estava solto demais, rompendo os limites que a minha mãe me impunha. Mudei em parte, pois algumas vezes ainda teimava em comer de forma indevida.

Não comer doce, e tomar insulina todos os dias (hoje uso glargina, a lenta, e lispro, a ultrarrápida) é a única vida que conheço, e não acho ruim. Seria bem melhor não ter de contar os carboidratos que como, mas meu pâncreas não sabe fazer isso, então eu tenho de fazer por ele. Enquanto a cura não vem, vivo intensamente os estudos e o trabalho, além das paixões que coleciono. Sou tão passional, que não admito namorar sem estar apaixonado. Só vejo o mundo sob a ótica da paixão.

Já tinha tido uma hipoglicemia grave anos antes e precisei ser socorrido pela família. Então veio outra crise forte. Devo ter me exercitado mais nesse dia, ou comido menos, não sei. O fato é que acordei com o pessoal do SAMU dentro de casa. Não conseguiram me acordar com açúcar, e apenas quando injetaram soro glicosado na veia é que dei por mim.

Um dia acordei enxergando diferente, espremia os olhos e não melhorava. Achei que seria oscilação da glicose, mas mesmo com ela estabilizada, não estava vendo direito. Nesse dia fiquei muito impressionado. O oftalmologista disse que a minha retina tinha uma pequena alteração causada pelo descontrole da glicose. Sem querer acreditar na complicação, abracei a melhor causa do mundo: a minha causa. Era agora ou nunca. Não admitiria um controle menor do que ótimo. Fui tomar conta da minha glicose com a paixão que sempre me norteou. Media a glicemia quatro vezes ao dia, antes das refeições, e corrigia com a lispro. A certeza de melhorar meu controle me deixou eufórico.

Também fui fazer a faculdade de enfermagem. Gostava muito de lá. As colegas se revezavam em me paparicar. A minha alegria as contagiava, e isso acontecia devido ao meu carisma. Apaixonado pelo curso, eu estudava bastante, sem me descuidar do diabetes e dos exercícios que sempre fiz.

Dois anos após o problema na retina, fiz meu controle ocular habitual. O médico me disse que a lesão havia desaparecido com o tratamento intensivo. Então, ainda cursando enfermagem, assisti a uma palestra de uma professora de Saúde da Família. O tema era diabetes. Ela disse que a doença era terrível e mutiladora, e que ninguém conseguia sobreviver muito tempo com ela, sem apresentar múltiplas complicações. Eu levantei a mão, e disse:

-Professora, eu tenho 21 anos e sou portador do diabetes tipo 1 desde um ano de idade, e não tenho nenhuma complicação. O que me diz?

Os olhares dirigiram-se para mim, a professora caiu em si, envergonhada pelo disparate que tinha acabado de dizer, enquanto a sala atônita veio abaixo, num riso nervoso. É preciso derrubar o preconceito para não gerar uma população estigmatizada. Estou aqui para comprovar que isso é possível.

10 de novembro de 2012

Imagem: Como fazer

 

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