Valores da periferia estão mais próximos do anarquismo do que do liberalismo

Foto: CC / Fernando Stankuns
Foto: CC / Fernando Stankuns

Por Patrícia Fachin.

A recente pesquisa publicada pela Fundação Perseu Abramo, intitulada “Percepções e valores políticos nas periferias de São Paulo”, tem gerado uma série de debates sobre qual é a visão de mundo das pessoas que vivem nas periferias brasileiras, já que muitas, segundo o estudo, se declararam favoráveis ao mérito e ao individualismo. Contudo, para o presidente da Fundação Perseu Abramo, Marcio Pochmann, ainda “não está muito claro que os valores identificados se associam, necessariamente, ao liberalismo”. Ao contrário, diz, “eles podem, inclusive, ser uma nova forma de manifestação do anarquismo, que foi importante, por exemplo, no Brasil, no final do século XIX e início do século XX, dada a especificidade da formação da classe trabalhadora naquele momento”. E reitera: “Quero chamar a atenção de que não é muito clara essa perspectiva de que agora o liberalismo reina na pobreza. Pelo contrário, há sinais que apontam para uma perspectiva mais radical, mais à esquerda do que os partidos existentes hoje no Brasil se propõem a fazer”.

Na avaliação do economista, um dos pontos centrais que não permite uma vinculação direta entre os valores dos moradores da periferia com o liberalismo, é justamente a crítica feita ao Estado. Na pesquisa, explica, aparece uma “crítica contundente ao Estado, que não é necessariamente feita pelos liberais, mas, sobretudo, pelos anarquistas”.

Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por telefone, Pochmann analisa os principais aspectos da pesquisa e comenta brevemente a atual conjuntura política. Na avaliação dele, a democracia “foi atacada” e, como consequência, corre-se o risco de não haver eleições presidenciais em 2018. “Quero chamar a atenção de que nesse movimento de reformas que só oferecem à sociedade resultados negativos, seria difícil entender que esse governo só faria o mal e deixaria para a eleição democrática uma vitória de um governo centro-esquerda. Tenho dúvidas, portanto, de que a democracia irá permitir que tenhamos eleições gerais em 2018”, adverte.

A saída para a crise brasileira, defende, depende de uma “radicalização da democracia”. Nesse sentido, pontua, “a grandiosidade da esquerda seria saber convergir forças em torno de um projeto de médio e longo prazo para o Brasil, o que tornaria impossível a interrupção da democracia”.

Marcio Pochmann possui graduação em Economia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e doutorado em Ciência Econômica pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Foi presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea e atualmente leciona na Unicamp. Entre seus livros, destacamos O mito da grande classe média: capitalismo e estrutura social (São Paulo: Boitempo, 2014), E-trabalho (São Paulo: Publisher Brasil, 2002) e Desenvolvimento, trabalho e solidariedade (São Paulo: Cortez, 2002).

Confira a entrevista. 

IHU On-Line – Como foi feita a pesquisa “Percepções e valores políticos nas periferias de São Paulo”, em quais regiões foi desenvolvida, qual foi o público-alvo e quais as motivações de realizá-la neste momento?

Marcio Pochmann – Essa pesquisa se encaixa em uma série de outras que já estamos realizando há algum tempo, com o objetivo de conhecer melhor a nova estrutura social do Brasil, justamente porque entendemos que houve uma transformação não apenas na estrutura produtiva, mas uma mudança na estrutura da sociedade. Então, essa pesquisa, assim como outras, visa olhar os diferentes segmentos que compõem a sociedade brasileira. Em especial, essa tratou de um segmento que ascendeu concomitantemente ao crescimento econômico e a políticas públicas que foram formalizadas, sobretudo a partir dos governos liderados pelo Partido dos Trabalhadores. Portanto, nos interessa conhecer o tipo de ascensão e seus impactos do ponto de vista da percepção e dos valores que esse segmento possui.

IHU On-Line – Muitos têm interpretado que os resultados da pesquisa demonstram que as pessoas da periferia têm valores liberais, porque valorizam a singularidade, o mérito, a organização da vida pelo trabalho, a família e a religião. Como interpreta esses resultados? Eles foram uma surpresa ao menos para segmentos da esquerda?

Marcio Pochmann – Não está muito claro que os valores identificados se associam, necessariamente, ao liberalismo. Eles podem, inclusive, ser uma nova forma de manifestação do anarquismo, que foi importante, por exemplo, no Brasil, no final do século XIX e no início do século XX, dada a especificidade da formação da classe trabalhadora naquele momento. À época, a mão de obra nacional vivia uma fase em que desconhecia a cultura do trabalho e a condição de proletarizado, uma vez que essa circunstância era ocupada, fundamentalmente, por trabalhadores migrantes, que, de certa maneira, foram aqueles que vieram a substituir o antigo trabalho dos escravos.

À medida que esses trabalhadores nacionais foram se inserindo marginalmente, ou seja, quando a mão de obra saiu do campo e veio para a cidade, ela identificou oportunidades de trabalho, a partir da década de 1930, dada uma série de medidas do governo Vargas, como por exemplo, a chamada Lei dos Dois Terços, que obrigou as empresas a contratar no mínimo 2/3 de mão de obra nacional e, dessa forma, reduzir a presença de imigrantes. Essa classe trabalhadora que veio do campo, nascida e naturalizada no Brasil, não conhecia a cultura do trabalho, e seus valores, trazidos do campo, entraram em choque com a perspectiva que o liberalismo apresentava naquele momento, que consistia em um tipo de Estado praticamente eleito por representantes do poder econômico, uma vez que só votavam ou eram votados homens ricos ou donos de propriedades. Então, a percepção de um Estado contra a sociedade, nesse sentido, não foi um elemento identificado pelo liberalismo, mas sim por um anarquismo que não reconhecia o Estado, mas somente a própria auto-organização dos trabalhadores. Nesse aspecto, inclusive, a forma de manifestação social era de característica mais espontânea do que organizada, ainda que existissem os sindicatos de ofício.

Estou recuperando isso para mostrar que também é possível perceber, nesse segmento pauperizado, subproletarizado, que teve a oportunidade de ascender, uma identificação com esse movimento. Quando esse segmento ascendeu, ele percebeu que, na verdade, o Estado encontrava-se muito distante dos seus objetivos imediatos, como a prestação de serviços de forma adequada a seus filhos e a si mesmo, em termos de transporte, educação, habitação, entre outros.

Nesse aspecto, e coincidindo com o que se percebe hoje, de o Estado buscar aumentar impostos sem, na verdade, fazer com que esse ganho tributário seja elevado na forma de serviços para os segmentos mais pauperizados, gerou-se essa visão contrária ao Estado, e não contrária à relação capital-trabalho imediata. Então, para alguns, isso pode ser uma identidade do liberalismo, mas, ao meu modo de ver, talvez isso esteja anunciando as possibilidades de o anarquismo novamente reascender no Brasil. Porque se considerarmos, inclusive, movimentos sociais que ganharam expressão a partir das manifestações de 2013, veremos que há, de certa maneira, um movimento espontaneísta, isto é, que não é hierarquizado. Não é um movimento que se organiza nas formas tradicionais de partidos, sindicatos e associações de bairros; é um movimento com grande espontaneidade que se manifesta, mas, ao mesmo tempo, não apresenta uma agenda de reivindicações, não tem uma liderança, uma hierarquia ou uma organicidade. É parecido, nesse sentido, com o que identificávamos no final do século XIX e começo do século XX.

Assim, não acredito que possamos identificar, nesses valores, apenas e tão somente uma vertente liberal, porque há uma crítica contundente ao Estado, que não é necessariamente feita pelos liberais, mas, sobretudo, pelos anarquistas.

IHU On-Line – O anarquismo se opõe às instituições, mas os entrevistados são favoráveis à instituição da religião, por exemplo. Nesse aspecto, há alguma proximidade com o liberalismo ou não?

Marcio Pochmann – Poucos liberais foram afeitos à religião: o liberalismo, na verdade, é responsável pela laicidade do Estado, pois foi a Revolução Burguesa que possibilitou o fim do antigo Estado absolutista ocupado pelos reis, nobres e clérigos. Então, o liberalismo é, de certa maneira, um movimento político-ideológico que separou a Igreja do Estado, e ele não se nutre da Igreja. Nesse ponto tem um particular, pois estamos diante de um “novo igrejismo”, um novo sentido religioso que, ainda durante a antiga classe trabalhadora urbana-industrial, teve um espaço receptivo à religião católica, por exemplo, nas chamadas Comunidades Eclesiais de Base – CEBs, que foram muito importantes na luta pela redemocratização e organização social nos anos 1970 e 1980. No entanto, por vários motivos, essa forma de atuação da Igreja foi se contendo até quase desaparecer. Agora há a ascensão de um novo tipo de religião, o neopentecostalismo. Identificamos, inclusive, por essa pesquisa, que sua ascensão está vinculada a dois eixos importantes que não são, necessariamente, de característica religiosa, mas se devem ao fato de essas instituições atuarem atendendo a desejos que esse segmento possui.

Dois eixos

O primeiro eixo é o de serviços. Na miséria do povo brasileiro, na ausência do Estado e de seus serviços, o que vimos, basicamente, foi que a organização dos miseráveis tinha um núcleo central, que era o crime, geralmente o crime organizado. Não apenas pela sua forma violenta de atuação, mas também pela prestação de serviços, ele se encaixava muito bem nesses segmentos pauperizados urbanos. O que estamos vendo agora é que parte importante desse segmento vem sendo ocupada pela Igreja Neopentecostal, que oferece serviços múltiplos, serviços do ponto de vista de formação e preparação para o trabalho, atendimentos e acolhimentos de crianças, pessoas idosas e doentes. Ou seja, há uma série de serviços que a comunidade pauperizada, a qual a pesquisa buscou analisar, não consegue vislumbrar na atuação do Estado e muito menos no setor privado. O que significa dizer que a Igreja ganha espaço e atende, de alguma forma, às necessidades e os serviços desse segmento. Então, esse é um eixo que, ao nosso modo de ver, ajuda a entender o êxito do neopentecostalismo.

O segundo eixo é o da crise de sociabilidade que esse segmento vive. Essa não é uma característica própria desse segmento, obviamente, porque a sociabilidade é um problema mais geral. Porém, olhando para esse segmento, o que vemos é a ascensão do individualismo e da competição acirrada. Esses segmentos são submetidos a longas jornadas de trabalho, com duração de 10 a 12 horas por dia, mais duas a quatro horas de deslocamento de casa para o trabalho e, por conta dessa rotina, há a ausência de laços familiares, de vizinhança ou de comunidade, em que se poderia falar a respeito de angústias e problemas, compartilhar a dureza da vida do dia a dia.

Nesse sentido, as igrejas neopentecostais abrem espaços de diálogo para ouvir o outro, compartilhar diferentes experiências e oferecer um horizonte de sucesso, de saída da circunstância difícil que se vive. Se fizermos um contraponto com as igrejas tradicionais, sindicatos e partidos, a atuação, de maneira geral, é muito diferente: é menos ouvir e muito mais falar, é o líder sindical, o líder partidário ou o líder da igreja que se apresenta para dizer o que deve ser feito e qual a realidade que está sendo interpretada, e pouco há de espaço para ouvir e compartilhar as angústias e dificuldades desses segmentos.

Neopentecostalismo associado a serviços

Então, em meu juízo, esse segmento releva a importância do neopentecostalismo associado ao serviço e a esse novo espaço de sociabilidade que é criado por intermédio desse tipo de atuação da Igreja. Oportunidade que, de certa maneira, outras instituições tradicionais poderiam vir a ocupar caso tivessem a mesma percepção das igrejas, ou até o Estado poderia ocupar, se revertesse o seu papel e oferecesse serviços adequados e eficientes a esses segmentos. Mas isso não ocorre no Brasil, pelo menos não nos grandes centros metropolitanos.

IHU On-Line – O senhor mencionou anteriormente as manifestações de junho de 2013. Na sua avaliação, esse foi um movimento anárquico, ou pode ser visto como uma manifestação da sociedade civil que, em parte, também cultiva alguns dos valores evidenciados na pesquisa, inclusive em relação à ineficiência do Estado?

Marcio Pochmann – Não estou dizendo que as pessoas que estiveram em junho de 2013 são anarquistas; estou chamando a atenção para as formas de manifestação e de expressão que têm a ver muito mais com a experiência que foi própria do anarquismo no final do século XIX. Claro que o século XIX é uma coisa, e início do século XXI, outra, mas existe uma ligação entre esses dois momentos, os quais estou querendo destacar, que é, justamente, a espontaneidade. Ou seja, estamos acostumados a ver, seja nos movimentos de esquerda, seja nos sindicatos ou nos partidos, movimentos que têm uma hierarquia e uma pauta. Mesmo à direita, se olharmos 1964, o movimento Tradição, Família e Propriedade, as pessoas na rua tinham clareza do que estavam defendendo.

De 2013 em diante o que vamos ver é uma pluralidade de defesas, até muitas vezes incompatíveis entre si; não há uma hierarquia. Quem chama os movimentos para ir às ruas? Qual a instituição? Quem é o representante? São ações que se repetem, muitas vezes, em diferentes locais, chamadas, ninguém sabe muito bem por quem, pelo Facebook ou pelas novas tecnologias de informação, e que arrebanham um contingente de pessoas para sair às ruas e se manifestar. E no dia seguinte, o que ocorre? Qual a reivindicação básica? Quem são os representantes que vão levar a pauta para os governos?

IHU On-Line – Mas apesar de não ter uma hierarquia e uma pauta muito clara, as pessoas aderiram às manifestações. O que as motivou participar?

Marcio Pochmann – Isso tem a ver com as características da sociedade de serviços, uma sociedade pós-industrial: não estamos mais falando da sociedade urbano-industrial, que tinha características muito claras, que identificava a pluralidade entre capital e trabalho, a pluralidade entre esquerda e direita. Esses eram marcos divisores que não existem mais. Essa dualidade, praticamente, está cada vez mais distante na nova sociedade de serviços, em que se tem, crescentemente, um movimento de autosserviços.

Trabalho imaterial

Por exemplo, ao invés de irmos ao banco pagarmos as contas, pagamos as nossas próprias contas via o uso de tecnologias digitais. Nesse sentido, os serviços hoje dizem respeito a um trabalho que é imaterial: não se percebe mais o concreto, o tangível que resultou do esforço físico e mental da pessoa. Não é como o trabalhador da construção civil ou da indústria automobilística, em que o esforço pode ser comprovado através de uma ponte, uma casa, um automóvel ou uma roupa; a maior parte do trabalho imaterial não resulta em algo concreto, tangível.

O que vemos hoje é a efervescência de uma nova classe trabalhadora de serviços em que não se apresenta tão clarividente a dualidade esquerda X direita e capital X trabalho, que dá a ela um sentido claro. Sem falar no distanciamento das instituições da antiga sociedade urbana-industrial para os novos anseios, problemas e desafios que a classe trabalhadora de serviços vive: ela está submetida a jornadas extensas de trabalho, porque com as tecnologias de informação e comunicação, como celular e a internet, ela leva o trabalho para a casa. O trabalho tornou-se portátil, diferentemente do trabalho urbano-industrial, em que a pessoa, para construir uma casa ou uma ponte, tinha de estar no canteiro de obras; não dava para levar o trabalho para casa.

Na classe trabalhadora de serviços, as tecnologias de informação fazem com que o trabalhador leve a preocupação e o trabalho para casa, porque em qualquer horário ele está respondendo a uma demanda que tem a ver com seu próprio trabalho. Portanto, estamos diante de um segmento que está plugado praticamente 24 horas por dia no trabalho: ele dorme, sonha e está preocupado com o trabalho.

Essa dualidade, polaridade entre proprietário e não proprietário, patrão e empregado, não está clara nas relações de trabalho dos serviços. Os serviços, hoje, operam em forma de “parceria”, em que cada um se apresenta como prestador de serviços e será contratado por alguém que, muitas vezes, nem sabe quem é. Vamos verificar algo mais significativo sobre o que quero dizer: veja o avanço da prestação de serviços do Uber. Quem emprega quem? Isso não está claro, logo é muito difícil querer cobrar desse segmento uma percepção ou valores que são comparáveis à classe trabalhadora tradicional e organizada. Na construção civil, por exemplo, tem hierarquia, ou seja, quem manda e quem obedece, quem é o patrão e quem é o empregado, quem fala defendendo os patrões e quem fala defendendo os trabalhadores. Isso era muito claro na sociedade urbana industrial, na velha classe trabalhadora, mas agora estamos diante de uma nova classe trabalhadora de serviços, em que essas identidades não são tão óbvias. Reconhecer isso é importante para que seja possível, inclusive, mudar a atuação nas instituições que acreditam que esses segmentos dos trabalhadores podem, de fato, liderar um projeto de nova sociedade, porque criticam valores que são muito próximos aos da esquerda, não necessariamente da direita ou do liberalismo.

O liberalismo se fundamentou nas instituições como partidos, em instituições com esse espírito de representação de interesses, mas o anarquismo era contra os partidos. O que estamos vendo hoje é uma crítica contundente aos partidos. Assim, quero chamar a atenção de que não é muito clara essa perspectiva de que agora o liberalismo reina na pobreza. Pelo contrário, há sinais que apontam para uma perspectiva mais radical, mais à esquerda do que os partidos existentes hoje no Brasil se propõem a fazer.

IHU On-Line – Dada essa mudança no mundo do trabalho, há uma modificação na percepção de classe também, já que os entrevistados não entendem que há um confronto de classes entre ricos e pobres, mas um conflito entre cidadãos e o Estado? Segundo a pesquisa, eles justamente admiram pessoas como Lula, Doria e Silvio Santos, que eram pobres e enriqueceram.

Marcio Pochmann – Eles sabem perfeitamente que o Estado não os representa, que o Estado não lhes serve, mas eles sabem que o Estado arrecada recursos e os recursos não vão para eles, que são os segmentos que constituem a base da pirâmide social. Então, a crítica ao Estado não deixa de ser uma crítica contundente aos ricos, aos beneficiados por esse Estado.

IHU On-Line – Mas essa associação entre os ricos e o Estado não aparece diretamente na visão de mundo deles, ao menos segundo a pesquisa.

Marcio Pochmann – Não, porque eles têm um conceito mais amplo de sociedade, que não é uma sociedade de classe tradicional. É uma sociedade que tem um Estadoopressor, um Estado constituído daqueles que o completam. O Estado não chega à periferia de forma decente. Eles sabem que a coleta de lixo onde moram é imperfeita, é mal feita, mas não é o que ocorre no bairro rico; eles sabem que no bairro rico o Estado atende muito bem e, muitas vezes, os moradores do bairro rico pagam pouco imposto. Desse modo, não diria que se trata de uma condição alienante; pelo contrário, há ali evidências de que esse segmento percebe muito bem que hoje os patrões e os ricos se confundem com o Estado.

É justamente por isso que esse segmento está muito mais próximo da percepção anarquista do que da liberal. Não que sejam anarquistas ou que estejam organizados de forma anarquista, mas estou chamando a atenção de que há elementos que eram fortes no final do século XIX e começo do século XX. Os próprios partidos atuais poderiam ter uma atividade mais descentralizada e de serviços, como é a das igrejas neopentecostais; não há nada que os impeça.

Se nós tivemos, nos anos 2000, 20 milhões de empregos formais abertos no Brasil e isso não implicou elevação da taxa de sindicalização, é sinal de que algo está errado. Mas do ponto de vista de quem? Dos trabalhadores ou dos sindicatos? Se nós tivemos, nos anos 2000, mais de quatro milhões de novas vagas abertas por uma política de ampliação do ensino superior, e as pessoas que ingressaram no ensino superior eram originárias de segmentos pauperizados e só entraram na universidade porque houve política pública, quem está errado, são esses jovens que ingressaram ou as instituições que operam de forma tradicional?

Nós tivemos mais de um milhão e meio de novas habitações sendo criadas nos segmentos pauperizados através do Programa Minha Casa Minha Vida. Esse avanço, do ponto de vista habitacional para segmentos pauperizados, não redundou na ampliação e na organização de associações de bairro e de moradores. Será que não tiveram problemas nessas habitações? São todas boas e as pessoas estão tranquilas morando nelas? Pelo contrário. E por que isso não convergiu para o fortalecimento das associações de bairro e de moradores? Porque, talvez, essas instituições estejam atuando de forma distante e tradicional dos anseios dessa nova classe trabalhadora de serviços.

IHU On-Line – A pesquisa parte da hipótese de que os valores identificados entre os entrevistados foram gestados nas camadas populares durante o período de expansão econômica do país, nos governos Lula. Por que se parte dessa hipótese? Se as pessoas ascenderam justamente por conta de uma política pública, o resultado não deveria ser o contrário, de valorização do coletivo, por exemplo?

Marcio Pochmann – O coletivo só pode se sobressair se houver um movimento em torno disso. Esse é o problema quando se faz uma política focada nos mais pobres, como o Programa Minha Casa Minha Vida. Isso porque, ao entregar a chave da casa às pessoas, se diz que o que o governo fez não foi nada além de um direito, mas não se explica para as pessoas que isso só foi possível porque houve uma opção pelos pobres, e que se não houver uma continuidade desse governo, esse tipo de programa não será possível. Quando houve uma elevação do salário mínimo, essa também foi uma opção política, que poderia ter sido outra, se não houvesse uma preocupação e uma opção pelos mais pobres.

Quando não se tem uma política cultural que valoriza a cidadania e se abre apenas a oportunidade da cidadania pelo consumo, é natural que a avaliação das pessoas seja de que a ascensão depende somente delas. Se o governo diz que a ascensão é um direito delas, que a oportunidade que elas têm de participar do consumo é importante para o crescimento do mercado interno, então, no fundo, a razão essencial dessa ascensão deriva, no entendimento delas, de uma avaliação individual, que consiste em dizer: “Eu me esforcei, eu trabalhei, eu fui à igreja etc.”, e assim não se percebe o coletivo.

IHU On-Line – Essa é uma autocrítica do modo como as políticas públicas têm sido tratadas no país nos últimos anos?

Marcio Pochmann – Estou descrevendo como foi, ou seja, as pessoas, em vez de entenderem que o que aconteceu no Brasil foi um projeto político em curso, entenderam o contrário: que foi o resultado individual de uma opção delas.

IHU On-Line – Diante da identificação desses valores na população que vive na periferia, diria que o projeto político do PT ou da esquerda em geral precisaria ser atualizado em algum sentido para atender essa população?

Marcio Pochmann – Estamos falando de um segmento que foi beneficiado pelo crescimento das políticas públicas, e no passado não há registro de participação desse segmento. Ou seja, é um segmento que era excluído, usado como massa de manobra pelos partidos políticos tradicionais em época eleitoral e que, inclusive, não fazia parte da base do Partido dos Trabalhadores. O PT avançou tendo como base social os trabalhadores organizados e os sindicatos, a Igreja católica, e a classe média e as universidades de modo geral. Esses três segmentos não incluíam a parte da pirâmide social mais empobrecida, a qual foi envolvida por políticas públicas e mesmo assim demonstrou um grande deslocamento dos partidos em geral. Se quisermos avançar no mesmo projeto que se iniciou em 2003, não seria preciso uma mera continuidade, mas uma reprogramação a partir de uma modificação profunda da forma de atuação do PT, com a constituição de uma agenda que incorporasse esse segmento não apenas como consumidores, mas como agentes políticos relevantes.

IHU On-Line – No próximo dia 18 de abril, dirigentes teóricos do PT e do PSDB se encontrarão para um debate político. A pauta do encontro, segundo divulgação na mídia, será a pesquisa qualitativa feita pela Fundação Perseu Abramo. O que propriamente se pretende com esse encontro? Ele tem um significado político também?

Marcio Pochmann – Essa pesquisa que realizamos está sendo utilizada por diferentes instituições, entre elas instituições religiosas, políticas, sociais, o que demonstra a credibilidade do trabalho da Fundação Perseu Abramo, que ajuda não só o partido ao qual ela é ligada, o PT, mas a sociedade como um todo. A nossa preocupação é difundir essa pesquisa para entender se o que se identificou no município de São Paulo pode ser identificado em outras cidades. Por isso, estamos organizando uma série de debates, os quais serão feitos em várias cidades do Brasil.

No dia 18 faremos esse debate com o professor Sérgio Fausto, da USP, que também é pesquisador do Instituto Fernando Henrique Cardoso. Nós não convidamos as instituições, mas os pesquisadores que estão trabalhando com o tema; a ideia é organizar um debate mais eclético, e não somente com as pessoas que são próximas ao PT.

O importante é que se consiga reunir a inteligência do Brasil a partir dessa discussão no entendimento da realidade brasileira, para poder oferecer uma visão de médio e longo prazo, porque o que se percebe hoje é um aprisionamento no curtíssimo prazo, com o risco de não haver, inclusive, eleições em 2018. Estamos diante de um processo de ruptura democrática, e o Brasil não é um país de tradição democrática, porque a democracia é basicamente uma exceção no Brasil. Nesse sentido, a inteligência é bem-vinda para pensarmos o Brasil, a situação que estamos vivendo hoje, e também pensar o projeto de futuro.

IHU On-Line – Por que vislumbra a possibilidade de não se realizar a eleição presidencial em 2018?

Marcio Pochmann – No meu modo de ver, guardada a devida proporção, não temos uma ditadura aberta como a que se instalou em 1964, mas há sinais de ruptura democrática. Lembro que em 64 tivemos importantes democratas apoiando o golpe militar, porque se tinha a expectativa de que o golpe se daria em 64 e em 65 teríamos eleições presidenciais. Nomes como o de Ulysses Guimarães e Juscelino Kubitschek – JK apoiaram o golpe de 64, inclusive JK era um dos interessados na disputa de 65. Mas o fato concreto é que não houve eleição em 65.

Os governos de 1985 até o governo Dilma foram governos que praticaram a conciliação de classes, mas o que estamos vendo no governo Temer é um governo classista, ou seja, não há uma diversidade de classes a partir das decisões que estão sendo tomadas; é um governo anticlasse trabalhadora. Quero chamar a atenção de que, nesse movimento de reformas que só oferecem à sociedade resultados negativos, seria difícil entender que esse governo só faria o mal e deixaria para a eleição democrática uma vitória de um governo centro-esquerda. Tenho dúvidas, portanto, de que a democracia irá permitir que tenhamos eleições gerais em 2018.

IHU On-Line – O que seria uma saída para a crise brasileira?

Marcio Pochmann – Eu associo este momento que estamos vivendo, guardadas as devidas proporções, às décadas de 1880 e 1930, porque essas duas décadas foram períodos em que houve uma grande crise no centro dinâmico. De 1873 a 1896, houve uma grande depressão que atingiu fortemente a Inglaterra, por várias razões. Mais tarde, ocorreu a crise de 1929, que atingiu os EUA. Em 2008, também ocorre uma crise sem resolução, a qual vem levando a um processo de desglobalização, permeado com políticas mais nacionalistas, protetoras e com ênfase no gasto militar.

Entre essas décadas também ocorreram derrocadas, como foi a Lei Saraiva de 1881, que reduziu a participação da população nas eleições; ou seja, naquele tempo houve uma redução da democracia em que se decidiu que os analfabetos não poderiam votar. A outra derrocada ocorreu em 1932, com a Guerra Civil provocada em São Paulo, a qual pretendia reverter o projeto urbano de Getúlio Vargas. Esses dois movimentos condicionaram e impuseram acordos que não estavam inicialmente previstos, mas que resultaram num Brasil superior em comparação ao que o país era anteriormente.

Ao meu ver, o golpe do ano passado se assemelha a esses períodos de 1932 e 1881, porque são contrapontos a um projeto que ganhava força desde a vitória do presidente Lula em 2002. Ali se tinha um projeto de livre associação não com os EUA, mas com os BRICs, um projeto de autonomia internacional, um projeto de crescimento no mercado interno, ou seja, o Brasil juntou um projeto de democracia, crescimento e redistribuição de renda. Ocorre que um conjunto de forças inviabilizou esse projeto. Resta agora saber o que vamos fazer: vamos acreditar que os que deram o golpe vão aceitar a legitimidade democrática e se expor à eleição? Ou eles vão continuar seu projeto de sufocação da democracia? Como vamos reagir diante disso? No meu modo de ver, radicalizando a democracia e unindo os fragmentos que já são majoritários e contrários a esse governo. O que falta é grandiosidade para reunir as grandes frentes de oposição ao atual governo Temer.

IHU On-Line – Por radicalizar a democracia, você entende uma possível união de vários segmentos de esquerda?

Marcio Pochmann – Exatamente, é a capacidade de absorver diferentes segmentos que estão em oposição ao atual projeto classista de Temer. A grandiosidade da esquerda seria saber convergir forças em torno de um projeto de médio e longo prazo para o Brasil, o que tornaria impossível a interrupção da democracia.

IHU On-Line – A esquerda está aberta a essa possibilidade ou está preocupada com disputas internas?

Marcio Pochmann – Enquanto ficarmos prisioneiros do curtíssimo prazo e acreditando que a democracia não foi atacada, estaremos fazendo o jogo do governo Temer.

Fonte: IHU-Unisinos.

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