Uma politização desnecessária em torno da Coronavac e memórias da Revolta da Vacina…

Revolta da Vacina no Rio de Janeiro/1904. Foto Casa de Rui Barbosa/Divulgação

Por Elissandro Santana, para Desacato.info.

Uma narrativa antiga está prestes a ser ressuscitada, aliás, já ressurgiu – a Revolta da Vacina. Não dá para comparar o que aconteceu no Rio em 1904 com o que está em curso no Brasil atual, mas, em alguns pontos, é possível tecer e perceber semelhanças, em especial, em relação ao cenário de confusão e de desinformação entre o que vivemos hoje no desgoverno de Bolsonaro e o que o Rio viveu nos primeiros dois anos do governo de Rodrigues Alves. Concernente ao grito dos insanos que rejeitam a vacina chinesa, tais atores sociais não se parecem em quase nada com os do Rio variolado, pois as bases fundantes da revolta não se dão na divergência com o presidente, mas na convergência com o campo das ideias com Ele, diferentemente dos revoltosos do Rio de Janeiro do fim do Império e início da República que estavam na contramão do que queria o governo daquele período.

No tangente à Revolta do Rio, dentre os vários motivos para a recusa à vacina contra a varíola, uma doencinha que foi um presentinho maldito dos colonizadores, ou seja, não era um produto do início do século XX, o povo se viu acuado diante de uma lei de vacinação obrigatória, sem desconsiderar a insatisfação popular com os serviços públicos, as estruturas de poder com base na desinformação e, até mesmo, na percepção de que havia violência em um discurso de obrigatoriedade justamente nos pontos mais pobres da cidade, o que gerou desconfiança social. Já os desconfiados de hoje, ao contrário dos revoltosos amedrontados pela vacina contra a varíola, apoiam o discurso do Presidente da República e seus paradoxos. Digo paradoxos, pois assim como Ele se mostra contra a Coronavac, insistentemente, ao longo dos meses pandêmicos, se mostrou favorável e um marqueteiro alinhado ao insano despenteado loiro dos EUA, na promoção do uso de medicamentos como a cloroquina, comprovadamente, ineficaz contra a Covid-19, mesmo diante dos pareceres e relatórios da OMS e de diversas autoridades da área da saúde do Brasil e de outros países.

Mas voltando à Revolta da Vacina, para um paralelo com o que está em operação no Brasil na guerra insana do líder do poder executivo contra a Coronavac, só porque esta é um produto chinês ou por pressões internas e externas de seus sequazes adeptos de fake news donos de um complexo vira-lata em relação ao amor doentio aos ianques bélicos, é importante entender o que foi, de fato, a tal da revolta no Rio. Pois bem, [entre os dias 10 e 18 de novembro de 1904, a cidade do Rio de Janeiro viveu o que a imprensa chamou de “a mais terrível das revoltas populares da República”. O cenário era desolador: bondes tombados, trilhos arrancados, calçamentos destruídos — tudo feito por uma massa de 3 000 revoltosos. A causa foi a lei que tornava obrigatória a vacina contra a varíola… E o personagem principal, o jovem médico sanitarista Oswaldo Cruz.]1

Sobre 1902, nas ruas da Cidade Maravilhosa, tão cantada em verso e prosa por artistas do Brasil e do exterior, as condições ambientais no tangente à questão do lixo eram terríveis e aí vocês já podem até imaginar – onde há lixo há doença. Pois então, este era o triste quadro do Rio de Janeiro em 1904 e a coisa ficou feia! Naquele contexto, há quem diga, em especial, alguns historiadores ambientais e interessados no tema, que, na época, toneladas e mais toneladas de lixo se espalhavam pela antiga Capital do Brasil e, em meio a este cenário de crise ambiental, dado que o lixo é um problema que desencadeia problemas de saúde pública, a varíola tomou fôlego e se alastrou.

Estabelecendo uma ponte comparativa de cenários, ou seja, entre o Rio de 1904 e o país como um todo nos dois últimos meses de 2019 e três primeiros meses de 2020, mesmo diante dos alertas da OMS e de autoridades médicas do mundo inteiro sobre o fato de que o coronavírus não ficaria restrito à China e à Europa, dado que o vírus possuía, aliás, possui, um alto poder de contaminação, o Brasil seguia alienado na espécie de ilha mesmo fazendo parte das peripécias da Globalização. Diante dessa posição equivocada, nenhuma agenda ou projeto de contingência e de combate ao vírus foi montada, ao contrário, o carnaval aconteceu, as portas do país se abriram para a virulência dançante vinda do Além Mar por onde a elite do atraso retornou ao país para contaminar a nação. O carnaval passou e os primeiros casos começaram a surgir. O Presidente, em vez de se comportar como um líder que deveria cuidar da saúde do povo brasileiro, mobilizando toda a força médica e estrutura sanitária necessária, fez o contrário, minimizando o vírus, banalizando a vida e a morte, só tomando as primeiras medidas necessárias quando o vírus já havia ganhado terreno, mas, mesmo diante das ações básicas, continuou a se comportar como se nada houvesse no país, indo a público sem máscara, cumprimentando os suicidas apoiadores e contribuindo para a proliferação viral. Diante deste retrato bizarro, o vazio do pensar se deu em latência e os apoiadores começaram a repetir os discursos do chefe do executivo, por isso, atualmente estamos oficialmente com mais de cinco milhões de contaminados e mais de 150 mil mortos, números que podem ser bem maiores, dado que pouco se testou no país, ainda que muitos discordem dessa informação.

O pior de tudo, a meu ver, é que mesmo com o resultado catastrófico na gestão da pandemia, muitos seguem apoiando o Presidente e se comportando como se a pandemia fosse coisa do passado ou nunca tivesse existido. São estes, ou grande parte destes, que se mostram contrários a tomar a Coronavac. O motivo maior para a recusa é a ideologia reacionária, mas isso vai além desta questão. O comportamento desta parcela do povo brasileiro demonstra que estamos contaminados pelo vírus da ignorância e que isso pode complicar ainda mais o nosso quadro pandêmico. Esta situação de recusa à vacina pelos extremistas apoiadores de Bolsonaro e de suas agendas lacunares, dado que não há projeto para a nação, não é algo simples. É a ponta do iceberg de um monstro que está em gestação. Nossa saúde corre ainda mais perigo, pois estamos não somente sob a égide do coronavírus, mas expostos a uma política assassina geradora de suicidas, uma verdadeira panaceia de insanidades que pode nos levar ainda mais ao fundo do poço.

No mais, não podemos perder de vista que na condição de ignorância os indivíduos não percebem o óbvio (ou se percebem, agem na base do ódio e da maldade), que nenhuma vacina, dentre elas a Coronavac, jamais seria disponibilizada à população se não passasse pelo rigor de órgãos como a ANVISA e aval de instituições de pesquisa no campo das ciências biomédicas.

Enfim, tudo isso só corrobora que a politização em torno da compra ou não da Coronavac revela um Brasil que está fadado a reviver os pesadelos político-sanitários do passado, com a banalização de algo tão sério como a saúde do povo. Nesse sentido, mais uma vez encontramos um ponto de comparação entre o que está ocorrendo no Brasil atual e o que ocorreu no Rio no início da República, em que [a oposição política, ao sentir a insatisfação popular, tratou de canalizá-la para um plano arquitetado tempos antes: a derrubada do presidente da República, Rodrigues Alves. Mas os próprios insufladores da revolta perderam a liderança dos rebeldes e o movimento tomou rumos próprios. Em meio a todo o conflito, com saldo de 30 mortos, 110 feridos, cerca de 1 000 detidos e centenas de deportados, aconteceu um golpe de Estado, cujo objetivo era restaurar as bases militares dos primeiros anos da República.]2. Evidentemente que a politização no não à vacina em 2020 não possui o caráter das intenções do movimento em 1904, pois os revoltosos de agora não querem a vacina não por medo, mas justamente para fortalecerem a política negacionista do presidente.

No contexto dos revoltosos atuais contra a vacina chinesa, reitero, há um cunho ideológico reacionário que beira a tônica da barbárie e nos colocará em mais riscos diante da maior crise político-sanitária de nossa história. Diferente da Revolta no Rio de 1904, hoje nós temos acesso à informação a partir de fontes diversas e, mesmo assim, muitos seguem na contramão da racionalidade. A recusa de parte dos brasileiros que dita o ódio e controla o governo Bolsonaro em relação à confusão em torno da vacina produzida pela chinesa Sinovac em conjunto com o Instituto Butantan conseguiu estremecer até parte dos militares no tangente ao apoio aos devaneios do Presidente abrindo mais um capítulo bizarro de crise nesse país pandêmico, evidenciando que são eles que estão no controle da situação e provando uma antiga ideia de que o problema nunca foi a marionete que ocupa a cadeira da presidência, mas quem o elegeu, já que este é apenas um ser ególatra em busca de poder, mas comandado pelas crias do extremismo e do fascismo do qual também faz parte!

Elissandro Santana é professor, membro do Grupo de Estudos da Teoria da Dependência – GETD, coordenado pela Professora Doutora Luisa Maria Nunes de Moura e Silva, revisor da Revista Latinoamérica, membro do Conselho Editorial da Revista Letrando, colunista da área socioambiental, latino-americanicista e tradutor do Portal Desacato.

A opinião do/a autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

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